Luísa Lacerda

Nina Pencak

Raquel de Andrade Vieira Alves

Em 12 de abril de 2017, foi promulgada a Lei nº 13.457/2017, que, em seu art. 1º, instituiu o mês de agosto como o mês do aleitamento materno, cujo objetivo é dar enfoque à intensificação das ações intersetoriais de conscientização e esclarecimento sobre a importância do aleitamento materno.
O parágrafo único do dispositivo traz rol exemplificativo de medidas que podem ser adotadas para atingir os referidos objetivos, quais sejam: realização de palestras e eventos, divulgação da necessidade de aleitamento nas diversas mídias, reuniões com a comunidade, ações de divulgação em espaços públicos e iluminação ou decoração de espaços com a cor dourada. A proteção à maternidade e à infância caracteriza-se como direito fundamental social, expressamente previsto no art. 6º da CRFB.
Tendo a lei entrado em vigor 180dias após a sua publicação, o Agosto Dourado, na prática, encontra-se em seu terceiro ano de existência. No entanto, pouco tem sido efetivamente feito no sentido de promover a amamentação como direito da mãe e do bebê. Sem a intenção de exaurir o assunto, com abordagem crítico-informativa, e com enfoque na mulher empregada, trataremos das principais normas trabalhistas que regem o tema, e recentes decisões do STF, bem como apresentaremos nossas reflexões e números que comprovam o reiterado descaso com (e pela) legislação trabalhista e a completa dissociação do direito à amamentação de sua dimensão de direito à vida. Vejamos.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Sabe-se que a Organização Mundial da Saúde recomenda que o aleitamento materno seja iniciado ainda na primeira hora de vida e seja a fonte exclusiva de nutrição, atendendo à livre demanda, até que o bebê atinja os 6 meses, com a manutenção da amamentação de forma complementar até, pelo menos, os 2 anos de idade.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A fim de possibilitar a implementação dessas diretrizes, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) conferiu o seguinte tratamento à matéria:
(i) desde 1967, em cada estabelecimento em que trabalhem mais de 30 mulheres com mais de 16 anos, devem ser assegurados locais adequados para as lactantes amamentarem seus filhos, exigência essa que poderá ser suprida com a manutenção de creches diretamente pelo empregador ou em convênio com outras entidades (arts. 389, § § 1º e 2º, e 400 da CLT);
(ii) no texto original da CLT, consta que, durante o período de amamentação, inclusive em caso de adoção (alteração legislativa de 2017), a mulher tem direito a 2 intervalos de meia hora cada um, já incluídos na jornada de trabalho, até que o bebê complete 6 meses, podendo esse período ser dilatado quando exigir a saúde do filho (art. 396, caput, e §1º). Após a Lei nº 13.467/2017, os horários dos intervalos deverão ser definidos por acordo individual entre a mulher e o empregador.
Duas recentes decisões do STF comprovam a relevância do tema e seu status de direito fundamental. Destacamos:
(i) o STF, na ADI 5.938 (DJe 23.09.2019), assegurou às mulheres gestantes e lactantes o direito de serem afastadas do exercício de atividades insalubres em qualquer grau, mantido o recebimento do respectivo adicional (art. 394-A da CLT). Caso não seja possível que a mulher seja realocada em local salubre, a hipótese será considerada como gravidez de risco, com a percepção do salário-maternidade, durante todo o período de afastamento;
(ii) também em sede de ADI, o STF determinou que o tempo de contagem da licença-maternidade em caso de nascimento prematuro se inicia da alta hospitalar do bebê (ADI 6.327, DJe 19.06.2020), uma vez que somente a partir deste momento, a mãe poderá iniciar os cuidados pós-nascimento, dentre eles a amamentação.
Considerando essas informações, verificamos a primeira incoerência legislativa: apesar de o período mínimo de amamentação recomendado pela OMS ser de 6 meses, os arts. 392 da CLT e 71 da Lei nº 8.213/1991 determinam a obrigatoriedade da concessão de licença-maternidade por apenas 4 meses (120 dias). Aqui, há clara proteção insuficiente do direito à vida e à saúde do nascituro, uma vez que o leite materno deve ser a alimentação exclusiva do bebê até os 6 meses e que, durante esse período, a mãe deve amamentar de acordo com a livre demanda.
<blockquote class="jota-article__eye">Chega-se à conclusão lógica de que o tempo mínimo de licença-maternidade obrigatório às mães empregadas deveria ser de 6 meses.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Destacamos, ainda, que a previsão legal de exigência de locais de amamentação não supre a necessidade de atendimento à livre demanda nos 60 dias após o encerramento da licença, já que o retorno físico ao ambiente de trabalho e às atribuições profissionais impede, na maior parte das vezes, que se atenda às necessidades da criança.</blockquote>
O segundo ponto, que também reforça a proteção insuficiente e, principalmente, o descumprimento deliberado e reiterado do direito à amamentação, é o de que as normas dos art. 389, §§ 1º e 2º, 396 e 400 da CLT são pouco conhecidas, inclusive pelas mulheres empregadas, que se veem obrigadas ou a interromper a amamentação no retorno às suas atividades laborais ou a rescindir seu contrato de trabalho<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Além disso, a lei impõe a manutenção de local para a guarda dos filhos durante o período de amamentação apenas às empresas com mais de 30 funcionárias mulheres acima de 16 anos. E os bebês filhos de mães que trabalham em empresas pequenas não merecem tutela jurídica? Além dessa questão, tem-se ainda a manifesta falta de cumprimento dos dispositivos citados.
Em julho/2019, havia apenas 228 salas de apoio à amamentação credenciadas pelo Ministério da Saúde em todo o país, salas essas que não se confundem com os berçários/creches assegurados pela legislação trabalhista.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> As salas de apoio à amamentação são locais em que a mulher pode retirar o leite durante a jornada de trabalho e armazená-lo corretamente, para que ao final do dia, possa levá-lo para casa e alimentar o bebê.
Portanto, essas salas pressupõem que os filhos das empregadas já não se alimentam mais do leite materno de forma exclusiva, ou seja, já possuam mais de 6 meses de idade. Além de existirem em número baixíssimo, esses locais não suprem a demanda das mulheres que são obrigadas a retornar ao trabalho após 4 meses de licença-maternidade, nem de seus bebês, de modo que se faz necessário o cumprimento dos referidos dispositivos da CLT a fim de que possam dar continuidade à amamentação.
Já sobre o número de empresas que cumprem a legislação trabalhista e disponibilizam berçários/creches para os bebês de suas funcionárias, não foram localizadas pesquisas recentes ou satisfatórias, e reportagens sobre o tema fazem menção a levantamento feito pela consultoria Hewitt, que sinalizou, em 2011, que apenas 5% das empresas cumpriam a lei.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
No entanto, os números que conhecemos são irrefutáveis: o aleitamento materno é a melhor fonte de nutrição infantil, sendo capaz de reduzir em 13% a mortalidade por causas evitáveis em crianças menores de cinco anos; protege a criança de doenças como diarreia, infecções respiratórias e alergias; e reduz o risco de a criança desenvolver hipertensão, colesterol alto, diabetes, sobrepeso e obesidade na vida adulta. Sem falar nos benefícios para a mulher: Amamentar até os seis meses diminui o risco de câncer de mama na mulher e ajuda no pós-parto, já que o útero se contrai e volta ao tamanho normal mais rapidamente.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Ademais, um relatório da International Finance Corporation, braço do Banco Mundial, de 2017 (“Tackling Childcare – The business case for employer-supported childcare”), desenvolvido com base em estudos de caso de dez empresas, situadas em países diferentes, incluindo o Brasil, mostrou que políticas de suporte e cuidado infantil em geral postas em prática pelos empregadores – v.g. áreas de amamentação, creches no trabalho e parcerias, horários flexíveis para pais e mães, etc. – se revertem em ganhos de produtividade para a própria empresa, reduzindo o número de faltas e aumentando o foco e a motivação das trabalhadoras e trabalhadores envolvidos. Ou seja, ao investir em políticas como essa todos ganham.
Desse modo, questionamos: o direito à amamentação é descumprido porque é desconhecido ou é desconhecido para facilitar o descumprimento? Muito além de configurar clara infração trabalhista, o desrespeito ao direito da mãe e do bebê afronta a garantia fundamental do direito à vida. E esse debate precisa ser expandido para diversas frentes, tais como: (i) a das mães estudantes, que também merecem o direito à amamentação efetivado pelas suas instituições de ensino, a fim de diminuir a evasão escolar feminina; (ii) a das mães cujas relações de trabalho não são regidas pelas CLT, como as advogadas associadas ou sócias de bancas de advocacia; e (iii) a efetivação do HC Coletivo nº 143.641 (DJe 09.10.2018), concedido pela 2ª Turma do STF, sobretudo no que se refere às custodiadas lactantes.
A ideia é que o Agosto Dourado seja mais do que uma cor projetada em um prédio público, mas que leve à reflexão quanto à necessária e urgente implementação das garantias legais e como ampliá-las para que não confiram uma proteção insuficiente, em abstrato, e reiteradamente descumprida na prática. Afinal, conforme comprovado, com políticas de suporte pós-maternidade, todos ganham.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “WHO and UNICEF recommend that children initiate breastfeeding within the first hour of birth and be exclusively breastfed for the first 6 months of life – meaning no other foods or liquids are provided, including water.  Infants should be breastfed on demand – that is as often as the child wants, day and night. No bottles, teats or pacifiers should be used.  From the age of 6 months, children should begin eating safe and adequate complementary foods while continuing to breastfeed for up to 2 years and beyond.” Informações retiradas de: &lt;<a href="https://www.who.int/health-topics/breastfeeding#tab=tab_2">https://www.who.int/health-topics/breastfeeding#tab=tab_2</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Atualmente, apenas as empresas que aderirem ao Programa Empresa Cidadã, criado pela Lei nº 11.770/2008, e forem tributadas por imposto de renda no lucro real recebem incentivos tributários para a extensão da licença-maternidade por mais 60 dias. Estão excluídas, portanto, empresas tributadas pelo lucro presumido e empresas optantes do Simples Nacional. Recordamos que as micro e pequenas empresas são responsáveis pela geração de 54% dos empregos formais do país (informações retiradas de: &lt;<a href="https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-10/pequenos-negocios-geraram-75-dos-empregos-formais-em-setembro#:~:text=Segundo%20levantamento%20feito%20pelo%20Servi%C3%A7o,do%20mesmo%20m%C3%AAs%20de%202018.">https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-10/pequenos-negocios-geraram-75-dos-empregos-formais-em-setembro#:~:text=Segundo%20levantamento%20feito%20pelo%20Servi%C3%A7o,do%20mesmo%20m%C3%AAs%20de%202018</a>&gt;)
Sobre o assunto, importante trecho de matéria veiculada na coluna Celina do jornal O Globo: “O Instituto Great Place to Work, em 2019, das 244 empresas questionadas, 47% não oferecem nenhum tipo de auxílio nesse sentido. Além disso, a mesma pesquisa mostra que das 150 melhores empresas para se trabalhar no Brasil, somente 49% oferecem licença-maternidade de seis meses ou mais, enquanto 39% oferecem licença-paternidade de 20 dias ou mais.” Disponível em: &lt;<a href="https://oglobo.globo.com/celina/de-licenca-estendida-creche-por-que-empresas-devem-investir-em-politicas-para-funcionarios-que-sao-maes-pais-23843392">https://oglobo.globo.com/celina/de-licenca-estendida-creche-por-que-empresas-devem-investir-em-politicas-para-funcionarios-que-sao-maes-pais-23843392</a>&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A pesquisa “Licença maternidade e suas consequências no mercado de trabalho do Brasil”, realizada pela Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV EPGE), analisou a trajetória profissional de 247.455 mulheres entre 2009 e 2012. O estudo constatou que 48% das mães têm o contrato de trabalho rescindido nos primeiros 12 meses após o nascimento dos seus filhos, por diversos motivos, como a falta de espaço para amamentação, horários rígidos, ausência de vagas em creches e renda insuficiente para contratar uma babá. Disponível em: &lt;<a href="https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos">https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Números retirados de: &lt;<a href="https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45633-saude-lanca-campanha-amamentacao-e-amplia-rede-de-assistencia">https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45633-saude-lanca-campanha-amamentacao-e-amplia-rede-de-assistencia</a>&gt;.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Informações retiradas de: &lt;<a href="https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2014/07/14/creche-na-empresa-da-seguranca-aos-pais-e-facilita-amamentacao.htm">https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2014/07/14/creche-na-empresa-da-seguranca-aos-pais-e-facilita-amamentacao.htm</a>&gt;.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Informações retiradas de: &lt;<a href="https://saudebrasil.saude.gov.br/eu-quero-me-alimentar-melhor/a-importancia-do-leite-materno-nos-primeiros-seis-meses-da-crianca">https://saudebrasil.saude.gov.br/eu-quero-me-alimentar-melhor/a-importancia-do-leite-materno-nos-primeiros-seis-meses-da-crianca</a>&gt;.

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JOTA

O Agosto Dourado e a desconhecida tutela jurídica das lactantes

Direito à amamentação é direito à vida

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