Fabiana de Menezes Soares

Lívia Lima Costa

Sofia Ayres da Cunha

O presente artigo tem como objetivo partir da garantia de um Direito à Alimentação, estabelecido no art. 6º da Constituição Federal, em seu sentido amplo de um acesso de todos à uma alimentação suficiente e com valor nutritivo, e contrastar a efetividade de tal direito frente à vulnerabilidade da qualidade da produção agropecuária em decorrência da atual situação dos resíduos plásticos, e, mais especificamente, dos microplásticos, no meio ambiente.
Pretende-se, então, chamar atenção para a necessidade de uma legislação que trate com eficiência a questão do despejo de microplásticos nos corpos de água e no solo, tendo em vista as consequências nocivas trazidas por este tipo de resíduo, dentre as quais está a inobservância do direito à alimentação nutritiva e apropriada.
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Excesso de leis e legislações de baixa qualidade causam danos e ônus ao sistema normativo brasileiro e têm sido a tônica de diversos artigos no JOTA. Mas existe, ainda, um outro lado da moeda: quando uma legislação estratégica é necessária.
O caso a ser abordado hoje, através deste artigo, se encaixa nesta segunda questão, ou seja, a oportunidade de se ter uma legislação de alcance transgeracional, cuja necessidade é justificada por dados e evidências.
Problemas como o aqui trabalhado, cujo alcance é global, requerem uma análise conjuntural dentro de um contexto internacional que vem tratando, por meio de políticas públicas, ancoradas às legislações, a questão da poluição das águas, do solo e, até mesmo, do ar, por plásticos. Tais esforços procuram elaborar medidas capazes de realizar as metas e ações no curto, médio e longo prazo.
Portanto, trata-se de modelos de legislação complexos que precisam coordenar seus planos e efeitos com as necessidades e metas dos mais diversos setores da sociedade, sobretudo do agronegócio.
O Direito à Alimentação, implementado como Direito Social pela Emenda Constitucional nº 64/2010, é, também, um direito humano fundamental, consagrado no art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Trata-se da garantia de acesso não a alimentos pura e simplesmente, mas sim à uma alimentação balanceada, em quantidade e, principalmente, em qualidade apropriada. É definido pelo preceito do mínimo existencial, ligado à ideia da garantia da dignidade humana e da garantia do imprescindível para a fruição da participação social do indivíduo em sociedade.
Os plásticos jogados ao meio-ambiente, oriundos das mais diversas formas de ação humana, acabam por sofrer exposições às condições exógenas e intemperismo físico-químicos.
Tais transformações, assim, dão-se na formação de microplásticos, pequenas partículas alteradas pela força mecânica e pela absorção de organismos contaminantes, tais como cádmio, zinco e níquel, além de organismos microbianos, possíveis vetores patogênicos, como demonstra a pesquisa desenvolvida pelo <a href="https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S0048969720352050?token=CAFC642514688B990C6ACEE69621C528A202B786266552AE6198006112DFA7A54FFBCAEAD4065C2C5541ADFB7D8D60E7" target="_blank" rel="noopener noreferrer">programa da Universidade de São Paulo (USP)</a>. A presença dos detritos plásticos nas águas já é apontada como causa da morte de organismos marinhos.
Entretanto, para além da morte de animais no ambiente aquático, devido à acumulação de microplásticos ao longo da cadeia alimentar, preocupações acerca da ingestão dessas partículas por seres humanos, através da alimentação, tornam-se uma preocupação tão grande quanto àquela acerca da questão ambiental.
Para Amato-Lourenço, em razão do tardio começo de pesquisas em relação ao tema, ainda são incertos os malefícios acarretados à saúde humana, sendo possíveis problemas de nível toxicológico e respiratório.
Tal visão é compartilhada pela dra. Heather Leslie, especialista em microplásticos da Universidade Livre de Amsterdã, que explica que partículas minúsculas, incluindo plásticos, podem causar o que se chama de estresse oxidativo, o que pode levar a inflamações crônicas.
Nesse sentido, <a href="http://promo.wwf.org.br/solucionar-a-poluicao-plastica-transparencia-e-responsabilizacao" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o estudo recente da WWF</a> aponta para a necessidade premente de legislação e políticas públicas com o fim de controlar a poluição das águas e a ingestão de diminutas partículas, oriundas dos mais diversos tipos de embalagens não biodegradáveis.
Como é apontado pelo mencionado estudo, o plástico foi criado para ser um item durável, mas que, com o desenvolvimento humano, tornou-se descartável aos nossos olhos.
Os estudiosos apresentam gráficos relativos à produção e à presença de plásticos no mundo, além de condições socioeconômicas que escancaram desafios de planejamento, regulamentação e financeiros, principalmente em países subdesenvolvidos.
O plástico ainda não conta com um sistema circular de recuperação efetivo. Sua utilização em perfil virgem ainda é, significativamente, preferida à sua forma reciclável, devido às alterações químicas que pode sofrer após seu uso.
<blockquote class="jota-article__eye">Ademais, engloba-se, também, a falta de robustos dispositivos legais e comerciais, que atribuam as devidas responsabilidades no ciclo de vida de um objeto plástico, a nível mundial, regional, nacional e local.</blockquote>
O setor agro é o mais impactado por normas de cunho ambiental e cabe a ele concretizar o direito à alimentação e toda a sua transversalidade que perpassa a vida de todos os brasileiros e brasileiras, além da vida alimentar de outras nações para as quais o Brasil é o grande produtor de commodities.
Uma agricultura sob risco de permanecer sem água de qualidade não será apta a efetivar o ditame constitucional do fornecimento de comida saudável. E, para além da irrigação, o consumo de alimentos que contenham partículas plásticas pode ser ainda mais nocivo para a saúde humana.
De acordo com dados apresentados pela UN Environment, em 192 países examinados, apenas 27 possuíam alguma forma de regulamentação para banir o uso de plásticos virgens, e 63 Estados regulamentavam para atribuir responsabilidades aos produtores.
A União Europeia disciplinou, por meio de diretivas, no sentido de uma economia circular, na qual os produtos são recolocados no ciclo para poderem permanecer em uso por um período maior de tempo. O marco regulatório europeu que abriu caminhos para a normatização em tratamento dos resíduos remonta de 1994, e estabelece metas para recuperação e reciclagem, instituindo aos países membros a tomada de ações legislativas nacionais quanto ao tema.
Outras diretivas vieram com o intuito de complementar a primeira, definindo medidas para que os resíduos sejam valorizados ou eliminados de forma a não pôr em risco a saúde humana e o meio-ambiente.
Outrossim, há uma grande importância dada à introdução do “princípio do poluidor-pagador” e da “responsabilidade alargada do produtor”, que designa às empresas a responsabilidade de disponibilizar meios de coleta de materiais plásticos e da necessária redução de uso desse material virgem, devendo os Estados notificar as medidas nacionais tomadas para esse fim de 3 em 3 anos à Comissão Europeia.
Diversos Estados-membros da União Europeia, como Portugal, França, Alemanha e Noruega, já apresentam um histórico legislativo com o objetivo de dar fim ao uso exacerbado de plásticos não reutilizáveis. É imprescindível destacar as atitudes tomadas pelo país norueguês, por meio do “Programa de Desenvolvimento Norueguês para Combater Lixo Marinho e Microplásticos”, o qual implementa atitudes e busca por acordos multilaterais para o combate ao problema.
Na América Latina, o Chile foi o primeiro país a eliminar as sacolas plásticas em todo o território nacional, através da Lei nº 21.100, que entrou em vigência em 2018. Além desta, o país conta também com a Lei nº 20.920, conhecida como "LEY REP", que segue o princípio do poluidor-pagador, semelhante às legislações europeias e àquilo que aparece no Art. 6º da Lei Federal Brasileira nº 12.305/10, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos.
No que tange à legislação em território brasileiro, ressalta-se, em âmbito federal, o Programa Nacional de Resíduos Sólidos, marco-regulatório supracitado, que além de seguir o princípio do poluidor-pagador, reconhece o resíduo sólido reciclável como bem econômico e de valor social.
E, em consonância com tal programa, o Decreto nº 7.404/10, que inaugura a logística reversa, caracterizada por ações que viabilizam a coleta dos sólidos pelas empresas, com o intuito da reciclagem, como é feito em diversos países europeus, anteriormente apontados.
No entanto, diferentemente do Chile, que dispõe de duas leis federais centrais que regulam a questão de resíduos plásticos em todo o território, o Brasil se vê em situação bastante diferente, com mais de 150 normas que dispõem sobre o tema, como aponta o <a href="http://monografias.poli.ufrj.br/monografias/monopoli10030034.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">levantamento realizado por Arnaldo Mailes Neto em sua tese pela UFRJ</a>.
É verdade que o assunto é de relevância exacerbada, principalmente por estar diretamente ligado ao direito à alimentação saudável. No entanto, o excesso de leis mais prejudica o sistema normativo do que resolve a situação por completo.
Cabe ressaltar aqui que dentre a legislação existente, nenhuma é de abrangência nacional, menos de 10 normativas são estaduais, que é o caso das Leis 7957/18 e 8090/18 do Rio de Janeiro, a Lei 17727/19, de Santa Catarina, as Leis 6266/19 e 6297/19, do Distrito Federal e a Lei 10439/18, do Rio Grande do Norte, e todo o restante, dentre as mais de 150, são legislações municipais, como é o exemplo da Lei nº 17.261/20, de São Paulo, que entrou em vigor ainda nesta semana, no dia 1º de Janeiro de 2021.
Essa inflação legislativa poderia ser minimizada por uma boa gestão legislativo-regulatória, através da elaboração de uma legislação estratégica, a nível federal, que abarque a regulação de resíduos plásticos de maneira abrangente, uniforme e harmônica em todo o território nacional.
É importante apontar que existem alguns projetos de lei, cuja abrangência seria federal, que estão ainda em trâmite, que é o caso do PL 6528/16, que trata de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumaria que contenham a adição intencional de microesferas de plástico, do PL nº 263/2018, que trataria do mesmo assunto, além de abarcar questões envolvendo sacolas e utensílios plásticos, e, também, do PL 1181/2019, que se refere à canudos plásticos.
No entanto, além de não estarem aprovados ainda, estes projetos não abrangem a questão como um todo, tratando de pontos específicos, tal como mencionado.
A pandemia da Covid-19 escancarou a relevância do direito de acesso ao alimento, e enfatizou o fato de que uma alimentação saudável, nos moldes daquilo que é garantido pelo Direito Humano à Alimentação, integra de maneira central as ações de saúde pública, principalmente quando se busca minimizar os gastos com a atenção primária.
Se a alimentação adequada e saudável é um pilar da saúde pública como um todo, reforça-se a justificativa de legislações específicas e estratégicas sobre assuntos que circundam a qualidade dos alimentos, como é o caso do controle da poluição por plásticos.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

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JOTA

Pandemia escancarou relevância do direito ao alimento e a uma alimentação saudável

Direito à alimentação e microplásticos: por que precisamos legislar?

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