Beatriz Kira

Diogo R. Coutinho

Na noite da última quinta-feira (24/3), representantes do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu chegaram a um acordo histórico: após 16 meses de negociações, foram acertados os detalhes finais do texto do Digital Markets Act (DMA), uma lei criada para regular plataformas de internet e fomentar a concorrência em mercados digitais. O texto aprovado agora segue para votação final pelo Parlamento e por representantes dos 27 países que compõem a União Europeia, uma etapa vista como mera formalidade, antes da efetiva entrada em vigor <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
A nova lei afeta diretamente os modelos de negócios das <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/o-futuro-das-big-techs-25062019">Big Tech</a> – empresas gigantes de tecnologia – pois disciplina o modo como devem se comportar, vedando o uso de algumas das estratégias que as ungiram à dominância dos mercados. Mas o que diz a lei e por que ela inaugura uma nova era para a regulação de mercados digitais no mundo todo?
<h3>Qual a natureza jurídica do DMA?</h3>
Um aspecto central do DMA é que essa peça normativa introduz um regime pró-competitivo diferenciado, que se aplica apenas a algumas plataformas de internet. O DMA se apresenta, assim, como um primeiro exemplo concreto do que já chamamos de “<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/antitruste-assimetrico-em-mercados-digitais-08102021">antitruste assimétrico</a>.” O conceito descreve um conjunto de regras lastreadas na aplicação de pressupostos, teorias, presunções, testes ou remédios de natureza regulatória ou quase-regulatória, que têm como objetivo o fomento ou promoção da concorrência. Isto é, um conjunto de regras que busca atingir um fim típico do antitruste, mas que para tanto fazendo uso de conceitos e estratégicas típicos de regulação setorial.
O DMA incorpora essa natureza híbrida. A lei parte do diagnóstico de que o direito da concorrência tradicional não oferece ferramentas eficazes para evitar condições competitivas injustas nos mercados digitais. Para contornar a morosidade e as limitações desse antitruste convencional, estabelece novas obrigações ex ante (predefinidas) e visa a robustecer o escrutínio e a regular o comportamento de empresas dominantes para garantir que os mercados permaneçam abertos e competitivos.
Outra característica central do DMA que ilustra exemplo típico do antitruste assimétrico é o fato de que cria regras pró-competitivas aplicáveis apenas a alguns agentes do mercado. No antitruste assimétrico as obrigações são proporcionais ao risco representado pelo agente econômico sobre quem elas recaem: quanto maior e mais poderosa a empresa ou o conglomerado, maiores os riscos à livre concorrência, o que justifica regras mais duras. O DMA, nessa toada, visa a regular de forma diferenciada e proporcional plataformas com grande poder de mercado, diferenciando-as de demais atores econômicos. Para isso, estabelece um conjunto de normas cuja intensidade e rigor dependem do porte ou do poder de mercado da empresa ou conglomerado em questão.
Quais empresas devem estar sujeitas a obrigações mais severas? Quais atributos justificariam a adoção de tal tratamento diferenciado? No caso do DMA, as obrigações diferenciadas se aplicam apenas às grandes plataformas de internet que identificadas como gatekeepers.
<h3>Quais plataformas estão sujeitas ao DMA?</h3>
O DMA não se aplica a todas as plataformas de internet, apenas às plataformas que forem consideradas <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ecossistemas-e-gatekeepers-29102021">gatekeepers nos ecossistemas digitais</a>. O termo gatekeeper (guardiã) tem sido usado na literatura para descrever firmas que ocupam uma posição privilegiada nos mercados digitais – as empresas que controlam infraestruturas ou insumos-chave, capazes de, em última análise, determinarem como o mercado é organizado e estruturado e que, por isso, podem influenciar a entrada e produzir efeitos distributivos de valor entre os participantes do ecossistema.
Ou seja, empresas gatekeepers são atores econômicos com poder para estabelecerem as regras do jogo aplicáveis a todos os grupos de usuários que dependam das estruturas por eles controladas – incluindo não apenas usuários finais, mas também usuários corporativos, como, por exemplo, comerciantes que vendem produtos em plataformas de comércio eletrônico e desenvolvedores de aplicativos que vendem seus produtos em lojas de app. Nesse sentido, gatekeepers detêm os meios e incentivos para abusarem de suas posições estratégicas, são mais propensas a práticas desleais e podem distorcer a concorrência em benefício próprio – por exemplo, negando o acesso de outras empresas ao ecossistema – o que justificaria escrutínio regulatório assimétrico em relação a outras de menor porte e poderio.
No caso do Digital Markets Act, as empresas gatekeepers sujeitas às obrigações estabelecidas na lei são identificadas por meio de uma combinação de critérios quantitativos e qualitativos. A lei se aplica a agentes que oferecem ao menos um serviço central de plataforma (Core Platform Service) – incluindo redes sociais, ferramentas de busca, serviços de mensageria, entre outros – e que tenham uma capitalização de mercado de pelo menos € 75 bilhões ou um faturamento anual de € 7,5 bilhões. Gatekeepers devem, ainda, oferecer serviços a pelo menos 45 milhões de usuários finais mensais na União Europeia e 10 mil usuários corporativos anuais.
<h3>Quais as obrigações e as penalidades estabelecidas pelo DMA? </h3>
As obrigações previstas no Digital Markets Act para empresas tidas como gatekeeper visam a garantir que os ecossistemas digitais permaneçam abertos, assegurando que competidores tenham acesso e possam oferecer serviços à plataforma, podendo ainda com ela contratar.
Para tanto, a lei introduz regras para garantir que plataformas gatekeepers assegurem, seguindo critérios equânimes, a interoperabilidade com outros serviços e atores econômicos, bem como regras que facilitem a portabilidade de dados e a migração de usuários de um serviço para o outro. Por exemplo, serviços de mensageria como o WhatsApp ou o iMessage deverão ser interoperáveis com plataformas de mensagens menores, possibilitando que usuários enviem e recebam mensagens ou realizem videochamadas por meio de diferentes aplicativos de mensagens.
O DMA também inclui regras de não discriminação para impedir que gatekeepers dificultem a entrada e a expansão de agentes em diferentes níveis do ecossistema digital. A lei introduz um requisito para permitir que os usuários escolham livremente seu navegador, assistentes virtuais ou mecanismos de pesquisa em seus dispositivos. Isso exigirá, por exemplo, entre outras coisas, que o Google ofereça aos usuários de Android a escolha de provedores de e-mail alternativos ao Gmail ao adquirirem um novo smartphone.
Para assegurar o cumprimento das obrigações estabelecidas, o DMA também dá ao regulador poderosas ferramentas de investigação e prevê penalidades onerosas em caso de descumprimento das regras, incluindo multas de 10% do faturamento global por infrações, de 20% em caso de infrações repetidas e a possibilidade de imposição de remédios estruturais em casos de violações sistêmicas da lei – introduzindo, desse modo, a possiblidade de ‘quebrar’ ou cindir as linhas de negócio das empresas infratoras. 
<h3>O 'antitruste assimétrico' no cenário internacional: quais as implicações da aprovação do DMA para outras jurisdições?</h3>
Preocupações semelhantes as que deram origem ao Digital Markets Act têm levado outras jurisdições a discutirem a adoção de obrigações adicionais para empresas que ocupam posições estratégicas e que sejam dominantes em seus mercados, fornecendo outros exemplos de antitruste assimétrico.
Nos EUA, o projeto de lei American Choice and Innovation Act conta com apoio bipartidário e visa a introduzir uma variante de antitruste assimétrico ao estabelecer regras para proibir plataformas digitais muito grandes de discriminarem concorrentes e para impedir que forneçam tratamento preferencial a seus próprios produtos.
De forma similar ao DMA, a proposta dos EUA estabelece critérios quantitativos para designação dos serviços de plataforma cobertos pela lei – que inclui redes sociais, aplicativos de celular, sistemas operacionais, assistentes digitais e ferramentas de busca, entre outros. As obrigações estabelecidas no projeto de lei se aplicam apenas a empresas com pelo menos 50 milhões de usuários ativos mensais nos EUA ou 100 mil usuários corporativos ativos mensais no país, e que tenham uma capitalização de mercado ou vendas anuais líquidas de mais de US$ 550 bilhões.
Já no Reino Unido, está em discussão a introdução de um regime regulatório pró-concorrencial para os mercados digitais. Esse regime introduziria regras diferenciadas para empresas de tecnologia que se valem de posição de mercado estratégico (strategic market status – SMS) – empresas detentoras de poder de mercado substancial e entrincheirado que confere à empresa uma “posição estratégica” no mercado. No caso do Reino Unido, a proposta não prevê critérios quantitativos para a designação das empresas cobertas pelo escopo da lei, mas sim uma análise qualitativa caso-a-caso. A definição das plataformas SMS e a aplicação do novo regime regulatório ficaria sob responsabilidade de uma nova Unidade de Mercados Digitais (Digital Markets Unit - DMU), subordinada à autoridade antitruste britânica (Competition and Markets Authority – CMA), que criaria códigos de conduta personalizados para cada empresa SMS, estabelecendo, assim, regras acerca de como devem se comportar em relação a outras empresas e aos usuários finais.
No Brasil, também estão em tramitação propostas que visam a introduzir regras assimétricas para regular plataformas e ecossistemas de internet. O <a href="https://valor.globo.com/opiniao/coluna/uma-oportunidade-de-acesso-nao-discriminatorio-a-internet.ghtml">PL 2630/2020</a>, apelidado de PL das Fake News, não chega a ser uma proposta de antitruste assimétrico, já que seu objetivo principal não é a promoção da concorrência. No entanto, a proposta vai muito além do propósito de coibir a circulação de informações falsas em plataformas de internet.
Espera-se que o PL em análise pelo Congresso Nacional (cuja aprovação urge por conta das eleições que se avizinham), regule os modelos de negócios das grandes plataformas digitais, incluindo regras sobre as estratégias de monetização empregadas pelas empresas e vedando o tratamento discriminatório de usuários. De forma equivalente ao DMA, a proposta brasileira também lei inclui também um critério quantitativo: as regras propostas se aplicariam apenas às redes sociais, ferramentas de busca, e serviços de mensageria cujo número de usuários registrados no Brasil seja superior a 10 milhões.
Como se pode ver, o antitruste assimétrico veio para ficar. Sua linhagem remete à regulação assimétrica, isto é, definição de regras diferenciadas para agentes de um mesmo setor ou cadeia setorial com a finalidade de assegurar condições equânimes ou isonômicas acesso a infraestruturas ou redes e, com isso, fomentar concorrência e a inovação em mercados regulados.
O antitruste assimétrico veio, também, para diversificar e robustecer a caixa de ferramentas do direito econômico contemporâneo que, dentre outros muitos desafios, terá de se haver com novos temas associados ao vertiginoso ritmo do avanço e da convergência tecnológica e com as novas (e peculiares) questões que surgem na economia política da regulação e do antitruste das plataformas digitais e dos ecossistemas que estas habitam.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Uma vez aprovada pelo Parlamento e pelo Conselho, a lei entrará em vigor 20 dias após a sua publicação no Jornal Oficial da UE. As regras serão aplicadas seis meses depois.

antitruste

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JOTA

O que diz o DMA e por que ele é considerado um marco histórico na regulação de plataformas de internet?

O Digital Markets Act e o antitruste assimétrico na Europa

O que diz o Digital Markets Act (DMA) e por que ele é considerado um marco histórico na regulação de plataformas de internet?