Luiz Alexandre Souza da Costa

A conceituação e os objetivos das milícias fluminenses, apresentados no artigo anterior, são extremamente importantes para as identificarmos corretamente e podermos, agora, entender outros fenômenos históricos de dominação territorial e social no Brasil.
Bem estudado pela ciência política, o coronelismo teve como marco de sua dissecação o clássico trabalho do professor e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Victor Nunes Leal. Os coronéis eram, em regra, os donos das grandes propriedades rurais, mantendo, sob sua autoridade, tanto seus próprios trabalhadores quanto os moradores do entorno.
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O nome coronelismo surge com a criação da Guarda Nacional em 1831, durante a Regência. Sem dispor de recursos para implantá-la em todo o país, o governo central autorizou que particulares pudessem organizar localmente essas tropas. Dessa forma, grandes latifundiários compravam ou recebiam títulos militares do governo - o qual o mais elevado era o de coronel -, a fim de montarem seus próprios Corpos de Guardas locais. Os títulos militares serviam para oficializar um poder coercitivo que já era, de fato, exercido há muito tempo pelas elites regionais. Quando não por tropas formais, pelo jaguncismo.
Esse período, que vai até a Proclamação da República, ainda não representa o que foi o sistema político do coronelismo, pois, por não haver uma oposição política que pudesse contrapor o poder dos coronéis, ele se caracterizava pelo mandonismo puro desses indivíduos. Segundo José Murilo de Carvalho, o mandonismo é exercido por um sujeito que controla algum recurso estratégico, normalmente a posse da terra, e impede, através da força, que os indivíduos acessem tanto a sociedade política quanto o mercado.
Já o coronelismo propriamente dito surge com a Primeira República, devido ao fortalecimento – e não ao enfraquecimento - dos entes federativos estatais. Afinal, se antes, nas Províncias do Império, era o Imperador quem nomeava ou destituía livremente seus presidentes, com a República e a implantação do pleito eleitoral para os futuros governadores, isso se altera. O governador do estado, agora eleito, possuía maior autonomia e poderes, enfraquecendo o mando dos coronéis. Entretanto, isso traz ao governador a necessidade de votos, que eram, segundo os estudos de Nunes Leal, arregimentados pelos coronéis nas suas respectivas áreas de dominação. E mesmo que os votos não tivessem um peso tão grande, em eleições que à época eram facilmente fraudadas, o apoio dos coronéis às elites políticas do Estado, já que ainda exerciam um mandonismo mesmo que menos potente, era necessário para manter a estabilidade do sistema oligárquico, característica do período.
Assim, o coronelismo foi um sistema surgido na República, onde indivíduos que já possuíam o poder econômico, desejavam a manutenção do poder de mando nas regiões que controlavam desde o período imperial. Dessa forma, se estabeleceu uma relação de barganha entre os coronéis e o poder político (governadores). Os coronéis conseguiam votos e a manutenção da estabilidade local, enquanto os governadores lhes concediam o poder de indicar pessoas a cargos públicos relevantes, como delegados de polícia e professores, além de destinar recursos do erário para melhorias das regiões controladas. O coronelismo veio a termo com o fim da Primeira República e a sua política oligárquica.
Em relação ao clientelismo, este é um vínculo entre partes assimétricas que verifica-se durante todo o decorrer da história brasileira. Uma dessas partes possui determinado poder, possibilitando barganhar, através da concessão de benesses, com uma outra parte, que tem sua lealdade ou o seu voto como moeda de troca. O clientelismo substituiu completamente o coronelismo após 1930, retirando a intermediação do coronel entre os políticos e o povo. Essa relação de clientela na política pode se caracterizar de várias formas, como a troca entre votos e nomeação de cargos públicos, cestas básicas, atendimento médico, cessão de terrenos do Estado etc, sendo feita de forma individual ou coletiva, como nas associações comunitárias.
Diferentemente do coronelismo, as milícias fluminenses, compostas inicialmente por agentes da segurança pública, em geral pertencentes a uma classe média baixa, almejam os lucros financeiros. Sua ascendência deve-se não ao fortalecimento, mas ao enfraquecimento do poder estatal, que sem condições de estabelecer a segurança em áreas dominadas por traficantes, apostou que a ação desses grupos paramilitares pudesse auxiliar uma retomada dos territórios urbanos.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, o uso do poder político clientelista pelos milicianos, o mandonismo, a grilagem, o domínio territorial e os homicídios são meios para um retorno monetário. Aliás, essa afirmação pode ser demonstrada pelo abandono, ou mesmo a venda a traficantes de drogas, de territórios já dominados por milicianos que não geravam os lucros esperados.</blockquote>
Com um quadro histórico de expropriação do espaço público, de corrupção policial e política, o Rio de Janeiro está acostumado com a violência oriunda de criminosos, de agentes públicos e daqueles que exercem ambas as funções simultaneamente. Exemplos disso não faltam.
Tenório Cavalcante, pistoleiro e político da Baixada Fluminense, eleito vereador, deputado estadual e federal, além de candidato aos governos do Rio e da Guanabara, exerceu, por décadas, o controle paraestatal no município de Duque de Caxias. Os Esquadrões da Morte, no final dos anos 50, compostos pelos chamados “policiais corajosos”, grupo da Polícia Civil criado pelo então Chefe do Departamento Federal da Segurança Pública, general Amaury Kruel, para eliminar criminosos. Posteriormente o grupo foi recriado em 1969, já durante a Ditadura Militar, pelo general Luís França de Oliveira, com os chamados “Os 12 Homens de Ouro”. Não por menos, ambos os grupos tiveram diversos de seus agentes envolvidos com o crime.
As disputas pelo controle dos pontos do jogo do bicho, que irriga(va) delegados, policiais e militares corruptos; os grupos de extermínio nos anos 70, 80 e 90, compostos por policiais, pagos por comerciantes para eliminar pequenos criminosos das redondezas; e os narcotraficantes nas favelas, que se tornaram, além dos novos inimigos número 1 das polícias, mais uma fonte de suborno e plataforma eleitoral de muitos políticos. Esse nível de insegurança pública, ao longo de décadas, gerou na população fluminense uma letargia em relação à violência e um sentimento de impotência e desesperança.
As milícias surgem nesse cenário como um amálgama quase que natural entre crime e poder público, ocupando um espaço deixado pelo Estado de forma lucrativa. Assim, não é incomum que as populações que vivem sob o domínio de milicianos elogiem sua atuação, agradecidas por não haver, nas regiões em que vivem, os crimes que ocorrem no restante do estado.
Curiosamente, diferente do narcotráfico, que atuando no mercado ilícito de drogas não impõe sua mercadoria aos moradores de onde operam, as milícias fluminenses submetem a todos, comerciantes e residentes, indistintamente, às suas taxas de “segurança” e de outros serviços que disponibilizem. Ou seja, os grupos milicianos têm um alcance ainda maior na ingerência da vida da população do que os traficantes de drogas, exercendo, ainda assim, métodos similares de coerção através da violência.
Mas não foi só o clã Bolsonaro que se encantou com essa aparente solução da segurança para o Rio de Janeiro. Políticos tradicionais e menos radicais também já se posicionaram de forma a aprovar ou minimizar a periculosidade dessa modalidade criminosa. César Maia (DEM), ex-prefeito da cidade do Rio por três vezes e pai do ex-Presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, teve como seu administrador regional e cabo eleitoral Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho. Nadinho foi presidente da associação de moradores de Rio das Pedras, sendo suspeito de planejar a morte do inspetor da Polícia Civil Félix Tostes, seu sócio e chefe da milícia local, para tomar seu lugar na quadrilha.
Rio das Pedras, uma favela na Zona Oeste do Rio, próxima à Cidade de Deus, foi criada por migrantes nordestinos. A comunidade se destacou como o primeiro caso de sucesso na implantação do modelo de “administração terceirizada miliciana” da segurança pública, numa época em que ainda era chamada de “polícia mineira”. Enquanto prefeito, César Maia afirmava que as milícias seriam uma espécie de autogestão particular da segurança, realizada por policiais e moradores das regiões cansados com a ausência do Estado. Em declaração em 2007, já no seu terceiro mandato, Maia afirmou que “As milícias são melhores que o tráfico”.
Seu ex-pupilo e atual alcaide do Rio, Eduardo Paes (DEM), também já foi um defensor da gestão miliciana. Paes, em entrevista ao RJTV, da TV Globo, em 2006, enquanto candidato a governador, afirmou que o Estado havia perdido a soberania em diversas regiões, sendo preciso recuperá-la. Como exemplo de recuperação da soberania citou Jacarepaguá: “um bairro que a tal da polícia mineira, formada por policiais e por bombeiros, trouxe tranquilidade para a população. O morro São José operário, que era um dos lugares mais violentos do estado, agora é um dos lugares mais tranquilos”.
Paes foi acusado, em 2009, durante sua primeira gestão como prefeito, de ter se reunido com milicianos, entre eles o ex-vereador Cristiano Girão, chefe da quadrilha que dominava o bairro de Gardênia Azul, em Jacarepaguá, para discutir sobre o modelo de licitação de linhas de transporte público alternativo, uma fonte de renda para as milícias. Novamente, em 2011, o subprefeito de Eduardo Paes, também da mesma área de Jacarepaguá, Tiago Mohamed, teria solicitado um encontro do prefeito com a presidente da associação de moradores de Gardênia Azul, com o intuito de conseguir apoio eleitoral, fato relatado por ela a Girão, preso à época.
Mas diversos outros políticos fluminenses, como os ex-deputados Coronel Jairo (pai do vereador Jairinho, acusado de matar o enteado), Domingos Brazão, Álvaro Lins e Marcelo Itagiba (ex-secretário de segurança pública do Governo de Anthony Garotinho), dentre outros, foram acusados, na Comissão Parlamentar de Inquérito das milícias da Assembleia Legislativa, em 2008, de terem alguma ligação com essas quadrilhas. À época, nenhum dos Bolsonaros foi citado pela CPI.
Para finalizar esse segundo artigo, cabe lembrar que em meados dos anos 2000 parte da imprensa também tinha dificuldade de entender o risco que as milícias representavam. Em reportagem do jornal O Globo, de 20 de março de 2005, ao narrar a atuação de grupos paramilitares na Zona Oeste do Rio, era dito, com ares de esperança, que: “Na contramão da violência produzida em áreas pobres controladas por traficantes de drogas, 11 grupos, seis deles chefiados por policiais militares, estão impondo uma nova ordem que conseguiu banir o tráfico de 42 favelas do Rio, em Jacarepaguá e na Barra. [...] Apesar do volume de denúncias contra os policiais, no interior das favelas o clima é de tranquilidade. Crianças brincam o dia inteiro, inclusive à noite. Famílias ficam conversando nas ruas e becos bem iluminados até bem tarde da noite.  – Isso aqui era um inferno. Meu filho não conhecia nem a rua direito, quando os traficantes estavam aqui. [...] Hoje temos paz – disse uma moradora da Vila do Sapê.”.
Três anos mais tarde, uma equipe do Jornal O Dia, que fazia uma reportagem numa área dominada por uma milícia, seria sequestrada e torturada por mais de sete horas por milicianos. Esse ato demonstrou que a paz nunca havia sido realmente implantada.
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