Ariane Costa Guimarães

Desde a expansão do varejo em alta escala no Brasil (e no mundo), os centros de distribuição e pontos de venda foram estrategicamente alocados no país para melhor atendimento dos clientes, principalmente em razão das compras pelo canal eletrônico. Os estados destinatários de mercadorias passaram a questionar o modelo de tributação na origem, adotado pela Constituição Federal no texto original de 1988, segundo o qual era adotada a alíquota interna do estado de origem nas operações e prestações que destinassem bens ou serviços a consumidor final localizado em outro estado, quando este não fosse contribuinte do imposto (art. 155, § 2º, incisos VII e VIII, da Constituição Federal).
Os estados destinatários de mercadorias iniciaram, portanto, movimento de captura dessa receita, questionando a regra constitucional. O primeiro ato oficial desse grupo foi a edição de um protocolo, articulado entre alguns estados, para permitir a cobrança do Difal-ICMS nos destinos (Protocolo ICMS 21/2011).
Esse ato normativo, editado à margem da Constituição Federal, foi questionado no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal (STF)</a>, que, à unanimidade, o derrubou, por afrontar a clara regra constitucional de tributação na origem. Segundo a Corte, por mais justa que fosse a medida, a forma de se implementar a nova regra deveria ser via edição de emenda à Constituição. Na oportunidade, o ministro Luiz Fux afirma que “a estreita observância dos imperativos constitucionais relativos ao ICMS se impõe como instrumento de preservação do pacto federativo” e “somente poderia emergir pela promulgação de emenda constitucional, operando uma reforma tributária, e não mediante a edição de qualquer ato”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Foi, então, promulgada a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc87.htm">EC 87/15</a>, que estabeleceu nova relação jurídico-tributária, é importante frisar, entre o remetente do bem ou do serviço e o estado de destino nas operações com bens e serviços destinados a consumidores finais não contribuintes do ICMS. O ICMS incidente sobre essas operações e prestações deixou de ser devido totalmente aos estados de origem e passou a ser dividido: ao estado de origem competia o ICMS resultado da aplicação da alíquota interestadual e ao de destino o diferencial entre a alíquota interestadual e a sua alíquota interna. Como o próprio STF assinala, nas palavras do ministro Toffoli, “nas operações e prestações interestaduais com consumidor final não contribuinte do ICMS, o remetente passou com a EC 87/15, a ter mais uma obrigação tributária”.
Assim que promulgada, sem lei complementar que estabelecesse as diretrizes gerais desse novo imposto, o Convênio 93/2015 foi editado dispondo sobre as características da obrigação tributária, contribuintes, bases de cálculo, alíquotas e créditos de ICMS. Em 2021, o STF reconheceu a inconstitucionalidade do convênio, eis que caberia à lei complementar disciplinar as regras gerais e estabelecer as mecânicas de solução de conflitos de competência, tanto com base no que especificam o art. 146, incisos I e III, como no 155, § 2º, inciso XII, alíneas “a”, “b”, “c”, “d” e “i”, todos da Carta Republicana. O STF modulou os efeitos da decisão para janeiro de 2022 e definiu: “As leis estaduais ou do Distrito Federal editadas após a EC 87/15 que preveem o ICMS correspondente ao diferencial de alíquotas nas operações ou prestações interestaduais com consumidor final não contribuinte do imposto são válidas, mas não produzem efeitos enquanto não for editada lei complementar dispondo sobre o assunto”.
No plano federal, não houve normatização do tema em 2021. Em outras palavras, o ano de 2021 encerrou sem a publicação da lei complementar exigida por esse STF como condição para a exigência do Difal-ICMS. Apenas em 5 de janeiro de 2022 sobreveio a LC 190/22, que instituiu a cobrança do Difal. Seu art. 3º estabeleceu que a entrada em vigor de tal diploma se daria apenas após o transcurso da anterioridade: “Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art150iiic">alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal</a>”.
A “alínea 'c' do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal” a que se refere o art. 3º acima transcrito dispõe a impossibilidade de cobrança de tributo antes de transcorridos 90 dias, “observado o disposto na alínea b”, que trata da inviabilidade de exigência no mesmo ano em que publicada a lei.
A remissão ao texto constitucional traz duas conclusões: a LC 190/22 reconhece haver disciplinado regras gerais do novo tributo e o termo de vigência dessa LC 190/22 atribui eficácia das novas regras para 1º de janeiro de 2023.
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agu">Advocacia-Geral da União (AGU)</a> e a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pgr">Procuradoria-Geral da República (PGR)</a> chegaram exatamente à mesma conclusão: “O dispositivo impugnado deve submeter-se à anterioridade, nos termos das alíneas ‘b’ e ‘c’ do inciso III do art. 150 da CF/88”. A redação é clara e a interpretação dos dispositivos não deixa dúvidas sobre o alcance. A questão é saber se o legislador pode disciplinar este prazo.
Diferentemente do que o ministro Alexandre de Moraes afirma em seu voto já proferido no julgamento das ADIs 7066, 7070 e 7078, não há criação de novo princípio a ser observado pelos estados, não sendo prudente se falar em excesso de poder normativo.
É prerrogativa do legislador optar pelo termo de vigência que entenda adequado para a produção de efeitos, principalmente em regras gerais de ICMS, que é um tributo que gera uma série de dúvidas. Isso é regra advinda da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp95.htm">LC 95/98</a>, que estabelece justamente a fixação do termo de vigência de uma lei. É o caso, por exemplo, da disciplina atribuída na LC 190/22 quanto à base de cálculo do imposto e da definição do sujeito passivo (destinatário).
Esse imbróglio não revela um problema complexo do ponto de vista normativo. É claro e evidente que o conjunto de regras constitucionais não impede que o Congresso Nacional estabeleça esse prazo de vigência. Como afirma Luis Schoueri em parecer, a LC 190/22 condiciona a produção de seus efeitos a 2023, muito no propósito de assegurar cobrança uniforme no território nacional (já que o Difal-ICMS é um dos componentes relevantes no comércio eletrônico, por exemplo).
Assistindo a todo o filme dessa discussão, desde 2011, é possível enxergar um notório e espantoso desrespeito ao “pacto federativo” e à regra do jogo democrático, que vem sendo absolutamente desconsiderada pelos estados para a exigência adequada do Difal-ICMS.
Essa insurgência contra as regras do jogo democrático e do pacto federativo é um problema sistêmico, que reflete a insubordinação dos entes estatais quanto à regra constitucional originária de cobrança do ICMS na origem, desrespeitada pelo Protocolo 21/2011, à lei complementar, quando da edição de regras gerais por Convênio 93/2015, ato do Confaz e não do Congresso Nacional e, agora, à deliberação do Congresso Nacional quando estabeleceu termo de vigência como o estabelecido pelos princípios da noventena e da anterioridade de exercício na LC 190/22.
A justificativa para o descumprimento das regras se dá pela necessidade de receita dos estados. E certamente essa demanda não pode ser olvidada, mas há um espaço constitucionalmente estabelecido para isso: as regras de como se perseguir e exigir receita estão subordinadas ao pacto federativo constitucional, o qual exige a edição de uma lei complementar prévia e com aptidão para produzir efeitos para dar suporte a qualquer exigência tributária estadual.
Boa ou não, esta é a regra do jogo político que aprovamos na Constituição Federal. E claramente as empreitadas dos estados, sempre balizado pela necessidade de incremento de receita, estão surrupiando as diretrizes e estabelecendo estado paralelo, à margem da Constituição Federal.
Não é demais lembrar que, em nossa estrutura federativa, há algumas ordens de descentralização: a legislativa, a administrativa, a política e a judiciária. No campo da definição de regras gerais sobre o ICMS, a definição constitucional atribui à lei complementar essa competência, cabendo aos estados, de forma descentralizada, portanto, a tutela dos aspectos da hipótese de incidência.
Para Loewnstein<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, a classificação de um sistema político como democrático constitucional depende da existência de instituições por intermédio das quais o “exercício do poder político esteja distribuído entre aqueles que exerçam o poder, e por meio dos instrumentos aos quais os detentores do poder estejam submetidos”.
Democracia implica, portanto, em se submeter a regras de exercício do poder. No jogo democrático, marcado por conflitos, a disputa e o contraste, por mais tensos que sejam, entre as organizações demandam aceitação de algumas regras do jogo democrático: a combinação de embates e conciliação é facilitada quando há aceitação da autoridade hierárquica das organizações<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o que certamente está em xeque no Brasil.
No entanto, a dificuldade do diálogo para estabelecimento de consenso entre estados e União não pode justificar o descumprimento das nossas regras constitucionalmente asseguraram para o bom desempenho da federação.
Admitir a flexibilização dessas diretrizes constitucionais compromete a própria força da Constituição Federal e, se o Supremo Tribunal Federal não impuser limite de modo a resguardar as claras regras do jogo político federativo, legitimará a subversão levada a efeito pelos estados, agora via resistência, seja por interpretação, seja por insubordinação, e não à União Federal, mas ao próprio pacto normativo que rege a dinâmica do exercício de poder.
Comprometidos estarão pacto federativo e as regras democraticamente estabelecidas.
Mais do que uma disputa de poder entre União e estados, a questão do prazo previsto na lei complementar (LC 190/22) é um tema típico de garantia e preservação da Constituição Federal na sua essência mais sensível, a do pacto firmado no Brasil enquanto sociedade submetida a uma constituição.
E, se há uma iniciativa oblíqua de drible da competência constitucionalmente outorgada à lei complementar, que aqui tem função de lei nacional, é função do Supremo Tribunal Federal, como instituição com compromisso contra majoritário, fazer valer a essência normativo que rege o exercício do poder.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4.628. Rel. Min. Luiz Fux. DJ
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> LOEWSENSTEIN, Karl. Teoria da Constituição. 2. ed. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970, p. 51.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 141.

ICMS-Difal

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JOTA

Necessidade de receita dos estados é usada como justificativa para descumprimento das regras constitucionais

Difal-ICMS e a missão do STF de preservar o pacto federativo e o Estado democrático

Necessidade de receita dos estados é usada como justificativa para descumprimento das regras constitucionais no caso do Difal