Diogo Ferraz

Gabriel Demetrio Domingues

No direito tributário brasileiro, após sucessivas décadas de reformas adiadas e de outras tantas pseudorreformas, as ineficiências e fricções ocasionadas por falhas e desatualizações no desenho da nossa legislação, tanto de índole material quanto processual, acumulam-se por toda a parte, como um imenso atoleiro normativo, complicado por gargalos procedimentais graves, que absorvem tempo e recursos escassos da administração e dos contribuintes. Trata-se aqui, em verdade, de uma espécie de tributo adicional: o reconhecido “custo Brasil”, contra o qual ninguém está imune, pois todos, direta ou indiretamente, acabam suportando o seu encargo.
Nesse contexto, há de se saudar e considerar como dotado de um elevado senso de urgência e oportunidade o <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9087234&amp;ts=1651775912310&amp;disposition=inline">Ato Conjunto nº 1/2022</a>, dos presidentes do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado-federal">Senado</a> e do <a href="https://www.jota.info/stf">Supremo Tribunal Federal (STF)</a>, o qual instituiu comissão de juristas visando à elaboração de anteprojetos para a uniformização e modernização dos processos administrativo e tributário (<a href="https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2507">CJADMTR</a>), sob a presidência da ministra Regina Helena Costa.
Com o objetivo de tentar contribuir para o debate, publicaremos três textos: este primeiro, em que procuraremos estabelecer os temas que, na nossa opinião, poderiam ser objeto de uniformização por meio de Lei Complementar; um segundo, em que detalharemos algumas propostas concretas visando à modernização do processo administrativo tributário; e um terceiro, no qual sugeriremos uma mudança de paradigma no processo administrativo tributário, por meio de um modelo experimental de arbitragem tributária.
<h3>Uniformização e o papel da Lei Complementar</h3>
Um dos principais pontos a serem endereçados por qualquer reforma do processo administrativo tributário reside nas significativas diferenças entre os sistemas adotados pelos diversos entes federativos (União, estados e municípios). A existência de sistemas distintos, decorrente do modelo de federação adotado no Brasil, pode parecer algo essencial à garantia de autonomia de cada ente.
Por outro lado, essa multiplicidade de sistemas tem impactos sensíveis para todas as partes envolvidas da relação tributária: geram um óbvio ônus ao contribuinte, que tem de conhecer (e se adaptar) a tantos sistemas quanto forem os entes com os quais ele se relaciona; faz com que contribuintes tenham mais ou menos direitos a depender da sua localização geográfica; impede que se teste e se desenvolva um sistema até que este alcance o seu nível ótimo, pois, em vez de uma experiência imersiva em uma mesma estrutura, tem-se incontáveis experiências separadas e diferentes entre si.
Surge, então, a necessidade de se buscar algum equilíbrio entre a autonomia dos entes federativos (que exige, por exemplo, adaptações às suas próprias realidades) e a eficiência do contencioso administrativo tributário, não só sob a ótica organizacional e de funcionamento, mas também da promoção de uma atividade administrativa que seja capaz de gerar a arrecadação que a aplicação da legislação tributária deve proporcionar e, ao mesmo tempo, prestigie os direitos e garantias conferidos aos contribuintes pelo ordenamento jurídico.
Felizmente, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal">Constituição Federal de 1988</a> indica a ferramenta jurídica adequada para esse equilíbrio: a Lei Complementar. Muito embora editada pelo Parlamento federal, trata-se de diploma legal de índole nacional, ao qual foram atribuídas funções tendentes, precisamente, a conferir alguma uniformidade a matérias tributárias que também possuam índole nacional (em oposição a local).
De fato, em um país continental como o Brasil e em um sistema tributário que distribui competências entre diversos entes federativos, há de existir alguma mínima racionalidade sistêmica naquelas matérias que potencialmente tenham um alcance nacional, sob pena de inviabilizar a atuação tributária de fiscos (e.g., pelos incontáveis conflitos de competência que poderiam surgir) e de contribuintes (e.g., pela absoluta imprevisibilidade acerca das regras aplicáveis a cada operação).
Não obstante, há duas perguntas cruciais a serem enfrentadas: o processo administrativo tributário constitui matéria de competência da Lei Complementar, à luz da Constituição? Caso positivo, qual é o espaço da Lei Complementar para a regulação dessa específica matéria? As respostas a ambas as indagações estão logicamente relacionadas.
A CF/88 atribui à lei complementar a competência para “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre (...) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”. Este, na nossa visão, é o dispositivo-chave para responder às duas perguntas acima e, no que importa ao nosso tema, devemos focar duas expressões contidas na norma: para a primeira pergunta, “lançamento” tributário; para a segunda, “normas gerais”.
No que se refere à primeira questão, há de se ter em mente que o art. 142 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">Código Tributário Nacional</a> (CTN) define que o lançamento tributário é o “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”, do qual resulta a constituição do crédito tributário. Já o art. 145, I e II, estabelece que o lançamento pode ser modificado por “impugnação do sujeito passivo” e “recurso de ofício”.
A partir dessas normas, parece-nos evidente que a menção constitucional ao lançamento tributário alcança o processo administrativo nele implicado, por pelo menos duas razões: a uma, porque a verificação da “ocorrência do fato gerador”, a determinação da “matéria tributável”, o cálculo do “montante do tributo devido”, a identificação do “sujeito passivo” e a “aplicação da penalidade cabível”, em conjunto ou isoladamente, constituem matérias que naturalmente são objeto do processo administrativo tributário; a duas, porque não faria sentido a CF/88 atribuir à Lei Complementar a regulação do lançamento em si, mas não a do instrumento para a sua revisão (impugnações e recursos).
A intrínseca relação entre o processo administrativo tributário e o lançamento é confirmada pelo pacífico entendimento jurisprudencial no sentido de que a constituição do crédito tributário (consequência do lançamento) só é definitiva com o encerramento do processo administrativo. Tal posição é tão constante que, por exemplo, levou à edição da Súmula nº 622 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estabelece que o prazo prescricional (contado da “constituição definitiva” do crédito tributário, a teor do art. 174 do CTN) somente começa a correr quando “exaurida a instância administrativa com o decurso do prazo para a impugnação ou com a notificação de seu julgamento definitivo e esgotado o prazo concedido pela Administração para o pagamento voluntário”. Definitivamente, se o lançamento é o meio pelo qual se constitui o crédito tributário e se o crédito tributário só é definitivamente constituído ao fim do processo administrativo, não parece haver margem para dúvidas de que o processo administrativo faz parte do lançamento.
Uma vez constatado que o processo administrativo tributário está entre as matérias cujas normas gerais devem ser estabelecidas por Lei Complementar, impõe-se definir quais poderiam ser os conteúdos dessas “normas gerais”. Este é o ponto mais delicado para o equilíbrio entre o princípio federativo e a determinação de uma regulação nacional para o processo administrativo tributário, pois estes dois desígnios constitucionais precisam ser ponderados e acomodados. E se o sinal que se extrai do princípio federativo é razoavelmente simples (deve-se preservar algum grau de autonomia dos entes federativos na estruturação dos respectivos processos administrativos tributários), o mesmo não ocorre com o escopo da norma que atribui a competência uniformizadora à Lei Complementar.
Nesse contexto, parece-nos que tal escopo tem de ser identificado a partir da premissa de que a norma geral de processo administrativo do direito tributário deve concretizar com proporcionalidade os objetivos constitucionais dentro da sua esfera de influência, realizando uma adequada ponderação entre a autonomia federativa e o núcleo mínimo de uniformidade requerido pelos direitos e garantias constitucionais, além da própria promoção da integridade e racionalidade do Sistema Tributário Nacional.
Essa concretização, por sua vez, somente será levada a efeito se o processo administrativo tributário for estruturado de forma a não privilegiar este ou aquele interesse, isto é, nem a máxima arrecadação nem o garantismo excessivo, mas sim a dirimir, em cada caso concreto e à luz do ordenamento jurídico vigente, situações pontualmente litigiosas que envolvam fisco e contribuinte (notadamente divergências acerca da ocorrência de fatos geradores, da quantificação da obrigação tributária etc.).
Ganha força, assim, o pensamento de que o processo administrativo fiscal, mais do que voltado unicamente à constituição do crédito tributário (arrecadação), tem como objetivo maior tornar-se cada vez mais um instrumento voltado à concretização de uma tributação justa, i.e., aquela adequada aos ditames constitucionais, o que, em um Estado democrático de Direito, exige a participação do cidadão, a busca pelo consenso e pela consequente legitimação da tributação.
Um dos grandes exemplos dessa mudança de paradigma é o alargamento do princípio da ampla defesa na esfera administrativa promovido pela CF/88, com o objetivo de lhe dar uma maior efetividade. Alguns corolários dessa extensão são o direito irrestrito de petição e recurso (Súmula Vinculante nº 21 do STF), o duplo grau de jurisdição, a motivação de toda e qualquer decisão e a busca inegociável da verdade material. Disso também resulta a necessidade de publicidade e de transparência, como instrumentos viabilizadores de um efetivo contraditório, incluindo a imposição de “informação geral” ao contribuinte sobre os fatos do processo, a liberdade de acesso aos documentos e elementos do processo e a vedação do uso de elementos que não constam dos autos.
Com tudo isso em mente, pode-se concluir que as normas gerais de processo administrativo tributário a serem reguladas por lei complementar são aquelas que garantem a observância dos preceitos constitucionais, ou seja, aquelas que imponham princípios e regras mínimos, que todo e qualquer processo administrativo tem de adotar para estar em conformidade com a Constituição Federal de 1988.
Estabelecidas as premissas sobre o papel da Lei Complementar na definição de normas gerais de processo administrativo tributário, nos próximos textos especificaremos o que poderia (e não poderia) ser uniformizado por meio dela e algumas propostas específicas para cada um desses temas.

tributário

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JOTA

Normas reguladas por Lei Complementar garantem preceitos constitucionais, ou seja, princípios e regras mínimos

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