Erik Gottlieb Martins

Lucas C. Barion

Na arbitragem, espera-se dos árbitros que procedam em suas funções com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, de maneira a salvaguardar a integridade do procedimento. Como forma de promover a referida higidez ética, impõe-se aos árbitros, dentre outros, o “dever de revelação”. Trata-se, precipuamente, de um dever de informação (duty of disclosure), igualmente presente no direito estrangeiro.
O árbitro, antes mesmo de aceitar a função precisa informar às partes qualquer fato capaz de suscitar uma dúvida justificada quanto à sua imparcialidade ou independência<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Busca-se, assim, garantir que as partes tenham o esclarecimento necessário para avaliar a idoneidade do sujeito escolhido. Isto porque, sendo proferida a sentença arbitral por indivíduo inepto, poderá ser pleiteada a sua nulidade perante o Poder Judiciário<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
É precisamente sobre essas linhas que surge a presente questão. Em março, foi proposta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) pelo partido União Brasil, solicitando-se pronunciamento do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal </a>(STF) acerca dos critérios objetivos aplicáveis à determinação do dever de revelação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Alegou-se que tal obrigação estaria sendo sistematicamente desvirtuada pelos árbitros, que omitiriam informações para não deixarem de ser escolhidos para decidir certos litígios. Essa opacidade seria possibilitada, em tese, pela incapacidade do Judiciário de harmonizar a jurisprudência, a qual seria dissonante ao decidir sobre os padrões a serem seguidos na interpretação e aplicação do dever de informação.
Para o autor da ação, os tribunais teriam dificuldade em alinhar seus entendimentos sobre: (i) a extensão e a profundidade do conceito do “dever de revelar”; (ii) o escopo e a definição de “dúvida justificada”, e sob que perspectiva deve ser analisada; (iii) a não taxatividade das regras do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm">CPC</a> de suspeição e impedimento (de juízes) para o exame da adequação dos árbitros indicados; (iv) a não aplicação automática das soft laws; e (v) o momento adequado para suscitar-se o impedimento e a suspeição. Destarte, pediu-se ao STF que fixasse, em abstrato, parâmetros mais rígidos para o dever de revelação.
Entretanto, os pedidos realizados na ADPF 1050 vão na contramão do entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre a matéria. Não se verifica, em verdade, o “caos hermenêutico” alegado pelo autor da ação, inexistindo a suposta ofensa aos preceitos constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV), do juiz natural (art. 5º, XXXV) e à segurança jurídica (art. 5º, XXXVI). A propósito, o que se pode apurar é uma questionável seleção de trechos de acórdãos, por meio da qual tentou-se criar a percepção de que existiria uma divergência interpretativa nos tribunais. Contudo, fato é que os excertos escolhidos sequer mantêm relação com os resultados dos julgamentos, ou mesmo com o próprio tema em questão, o que demonstra a improcedência da tese acerca da dissonância entre as cortes.
Vale reforçar que, há mais de 25 anos, os contornos interpretativos trazidos pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-arbitragem">Lei de Arbitragem</a> têm sido suficientes, o que se comprova tanto pela crescente validação social do instituto no país quanto pela proeminência da arbitragem brasileira no panorama internacional. Nos termos da pesquisa Arbitragem em Números, realizada pela professora Selma Lemes, o número ínfimo de impugnações de árbitros que se verifica (&lt; 0,6%, em 2021) seria “um dos principais motivos pelos quais o Brasil é um dos maiores líderes em arbitragem, ocupando o segundo lugar mundial nas estatísticas da CCI de 2021”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Para que se possa ter uma melhor noção da magnitude da arbitragem no Brasil, cabe trazer que, em 2022, cerca de R$ 60 bilhões foram objeto de disputa, em aproximadamente 1.000 processos arbitrais<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
No tocante ao tema central da demanda, é preciso enxergar que a conotação aberta dos termos presentes no art. 14 da Lei de Arbitragem não é fortuita. Existe um objetivo específico: o de ser capaz de abarcar as diferenças de cada caso concreto. Os parâmetros intencionalmente pouco restritivos servem para realizar a autonomia da vontade das partes, às quais se garante a possibilidade de escolher livremente os profissionais que julgarem mais apropriados<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Restringir o universo de possíveis árbitros através do estabelecimento de rígidos critérios frustra, nesse sentido, um dos princípios fulcrais do processo arbitral enquanto meio privado de resolução de disputas, pondo em xeque a sua capacidade de se adaptar às demandas e às circunstâncias das partes. O critério da “dúvida justificada” e o “dever de revelar” são conceitos jurídicos indeterminados que podem ser – não por acaso – modulados às mais diversas circunstâncias particulares<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Concomitantemente, impende reconhecer que a fixação pelo STF de um padrão interpretativo não teria outro resultado senão o aumento da insegurança jurídica, a contrario sensu do que se postula. Ao invés de alcançar-se o objetivo pretendido de garantir previsibilidade via uniformização da jurisprudência – que, é importante ressaltar, sequer se encontra desuniformizada – comprometer-se-ia a segurança das decisões arbitrais, tornando-as mais suscetíveis à impugnação. Seria criado um espaço para que partes insatisfeitas com o resultado de sua lide abrissem pleitos de nulidade em virtude de qualquer informação que deixou de ser prestada, independentemente do seu impacto concreto na imparcialidade arbitral.
Note-se, aqui, que o dever de revelação deve estar em consonância com o princípio da instrumentalidade das formas<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, i.e., deve ser entendido como “uma norma instrumental, que serve de verdadeiro meio para evitar que haja alguma violação à independência e imparcialidade do árbitro”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Assim, diferentemente do que se sustenta na ADPF, a simples inobservância desse dever não leva automaticamente à nulidade do procedimento. A questão já foi, inclusive, analisada pelo Conselho da Justiça Federal, que estabeleceu em seu Enunciado 110 que “a omissão do árbitro em revelar às partes fato que possa denotar dúvida quanto à sua imparcialidade e independência não significa, por si só, que esse árbitro seja parcial ou lhe falte independência, devendo o juiz avaliar a relevância do fato não revelado para decidir ação anulatória”.
A insegurança jurídica surtida pela ADPF repercute não só dentro como fora do ordenamento jurídico. Isso se evidencia pelo impacto negativo em contratos das mais diversas áreas e os custos transacionais gerados para as partes em decorrência da eventual anulação da sentença arbitral. Diante desse cenário, seria provável que empresas, em especial as multinacionais, deixassem de buscar as câmaras locais de arbitragem, sendo elas substituídas por seus pares mundo afora.
Isso porque a abertura semântica do dever de revelação encontra-se não só no Brasil, como também nas mais reconhecidas práticas arbitrais internacionais<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Alterá-la então representaria um afastamento do arcabouço legal brasileiro de todos os congêneres no mundo. Nessa direção, André Abbud, presidente do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), em entrevista para o Jornal Correio Braziliense, afirma que: “[s]eparar o Brasil das regras e práticas adotadas internacionalmente comprometeria o funcionamento da arbitragem no país. Esse é o grande risco que a gente quer evitar”<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
No entanto, esta não seria a primeira tentativa, no Brasil, de restringir a atividade dos árbitros. Há pouco, foi proposto o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2300144">PL 3293/2021</a>, que também tinha como propósito disciplinar e limitar o mecanismo. Não obstante, devido a mobilização contrária, conseguiu-se conter o seu prosseguimento. E não diferentemente deve ser feito agora. Cabe, portanto, ao Supremo Tribunal Federal, reconhecer que pronunciar-se nos termos da ADPF 1050 seria desferir um golpe nocivo ao sistema de justiça arbitral como hoje o conhecemos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 13, § 6º, Lei 9.307/1996.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 14, § 1º, Lei 9.307/1996.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 32, II, e art. 33, caput, Lei 9.307/1996.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> V. ADPF 1.050, STF.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> LEMES, Selma. Arbitragem em Números. 2022. Disponível em: <a href="https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/10/78B3FD4545063E_pesquisa-arbitragem.pdf">https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/10/78B3FD4545063E_pesquisa-arbitragem.pdf</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> LEMES, Selma. Arbitragem em Números. 2022. Disponível em: <a href="https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/10/78B3FD4545063E_pesquisa-arbitragem.pdf">https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/10/78B3FD4545063E_pesquisa-arbitragem.pdf</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Art. 13, § 3º, Lei 9.307/1996.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Em relação à “dúvida justificada”, dispõe o Enunciado 97, do Conselho da Justiça Federal, que “o conceito de dúvida justificada na análise da independência e imparcialidade do árbitro deve observar critério objetivo e ser efetuado na visão de um terceiro que, com razoabilidade, analisaria a questão levando em consideração os fatos e as circunstâncias específicas”.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> LIEBMAN, Manual de direito processual civil, v. I, 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 328.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> MURTA, Tatiana. FERREIRA, Daniel. Contornos do dever de revelação: Análise do caso “Halliburton v. Chubb”. 2022. Disponível em: <a href="https://www.fgvblogdearbitragem.com.br/post/contornos-do-dever-de-revela%C3%A7%C3%A3o-an%C3%A1lise-do-caso-halliburton-v-chubb">https://www.fgvblogdearbitragem.com.br/post/contornos-do-dever-de-revela%C3%A7%C3%A3o-an%C3%A1lise-do-caso-halliburton-v-chubb</a>
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> A título de exemplo, o próprio art. 14 da LArb se inspira na Lei Modelo da Uncitral, adotada como guia por inúmeros países.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> CORREIO BRAZILIENSE. Atuação de árbitros em litígios empresariais motiva processo no STF. Correio Braziliense, Brasília, 2  mai. 2023. Disponível em: <a href="https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/05/5091448-atuacao-de-arbitros-em-litigios-empresariais-se-torna-processo-no-stf.html">https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/05/5091448-atuacao-de-arbitros-em-litigios-empresariais-se-torna-processo-no-stf.html</a>. Acesso em: 14 mai. 2023.

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JOTA

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