Caio Ferrari de Castro Melo

As transformações recentes pelas quais vem passando o mundo dos negócios no sentido de adotar práticas de sustentabilidade têm fortalecido a agenda de políticas ambientais e ensejado uma série de discussões sobre economia verde e de baixo carbono.
Ainda mais no contexto pandêmico, do qual não nos livraremos tão cedo, tem se defendido a importância dos princípios ESG<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e a possibilidade de uma retomada verde na economia pós-pandemia de Covid-19.
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Em que pese a legitimidade e a importância desses esforços, não será possível avançar significativamente se não começarmos a discutir de modo mais específico como é possível adotar tais princípios e o que nos impede de atingir o almejado resultado de uma retomada verde.
Nessa discussão voltada à prática, o direito como um todo tem um relevante papel. Isso porque as iniciativas inovadoras que possam ajudar a construir o desenvolvimento sustentável só podem ser levadas a cabo se conhecermos o contexto institucional em que elas devem se dar. Isso significa que devemos conhecer as regras jurídicas por meio das quais é possível construir o desenvolvimento sustentável hoje.
O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo, com mais de 116.000 espécies animais e 46.000 espécies de plantas conhecidas. Estamos falando de uma enorme quantidade de recursos genéticos com funcionalidades úteis a todo tipo de pesquisa científica ou desenvolvimento tecnológico, desde novos tratamentos para doenças até biocombustíveis.
<blockquote class="jota-article__eye">Uma grande quantidade das características funcionais dessa biodiversidade só nos são conhecidas por meio da disseminação do conhecimento tradicional dos povos indígenas e das comunidades tradicionais.</blockquote>
Essa biodiversidade, se usada com inteligência e tecnologia, tem potencial para gerar desenvolvimento vigoroso e sustentável para o nosso país. No entanto, mesmo que isso pareça básico, os meios jurídicos para poder pôr em prática iniciativas que utilizam o patrimônio genético nacional e o conhecimento tradicional associado ainda não estão plenamente estabelecidos.
A legislação brasileira sobre o uso da nossa biodiversidade é, ainda, muito nova. Em que pese a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) tenha entrado em vigor no Brasil em 1998 e que o nosso país tenha editado sucessivas Medidas Provisórias para regulamentar o uso do nosso patrimônio genético, fato é que apenas em 2015 foi promulgada uma lei geral que regulasse o acesso ao patrimônio genético brasileiro.
A Lei de Acesso ao Patrimônio Genético (LAPG), Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, tem como objetivo dar segurança jurídica e parâmetros mínimos para o acesso e a exploração econômica sustentável do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado (CTA).
A LAPG criou o atual Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), um órgão colegiado que integra o Ministério do Meio Ambiente. O CGen pode criar normas técnicas sobre patrimônio genético, diretrizes e critérios para elaboração e cumprimento de acordos de repartição de benefícios, por exemplo.
Ele também pode responder a consultas, gerir os registros de acesso e as notificações de produtos no SisGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado), decidir sobre recursos de multas e emitir certificado de cumprimento de obrigações, além de outras competências.
A LAPG estabelece procedimentos administrativos para viabilizar a exploração econômica de patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado que variam conforme o tipo, a finalidade e outras circunstâncias de acesso. O fluxo ideal das etapas para a exploração econômica exitosa de um conhecimento tradicional associado de origem identificável, por exemplo, seria o seguinte:
1) Consentimento livre, prévio e informado de povo indígena ou comunidade tradicional;
2) Cadastro de acesso ao conhecimento tradicional associado perante o CGen;
3) Emissão de comprovante de cadastro pelo CGen;
4) Protocolo de notificação de produto e acordo de repartição de benefícios;
5) Emissão de comprovante pelo CGen;
6) Início da exploração econômica pelo empreendedor.
No fluxo descrito, vemos dois dos mecanismos jurídicos mais relevantes para a garantia de que a exploração econômica do patrimônio genético brasileiro seja justa e sustentável: a) o consentimento livre, prévio e informado e b) o acordo de repartição de benefícios.
O primeiro mecanismo consiste em uma espécie de autorização do povo indígena ou tradicional que detém um conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. A obtenção do consentimento desses povos e comunidades deve ser realizada previamente ao acesso ao CTA, oferecer informações claras e em linguagem acessível sobre os impactos sociais, culturais e ambientais envolvendo o acesso do conhecimento tradicional, bem como os direitos e responsabilidades de ambas as partes, assim como o direito do povo ou comunidade de recusar o acesso ao seu CTA.
O acordo de repartição de benefícios, por sua vez, é uma forma de contrato que se dá entre o provedor do patrimônio genético ou CTA e o empreendedor que comercialize produto acabado oriundo de acesso a patrimônio genético ou CTA. Nesse acordo, são estabelecidas as regras de compartilhamento de benefícios auferidos da exploração econômica do produto acabado.
No caso de o CTA possuir origem identificável, a população indígena, comunidade tradicional ou o agricultor tradicional é quem deve assinar esse acordo com o empreendedor. Caso este conhecimento tradicional não tenha origem identificável, é a União Federal, representada pelo Ministério do Meio Ambiente, quem deverá assinar esse acordo.
Os dois mecanismos comentados anteriormente pretendem garantir que a exploração da biodiversidade brasileira se dê de maneira justa para as partes interessadas, o que constitui fundamento para qualquer empreendimento sustentável. No entanto, a falta de clareza de como pô-los em prática ainda é um desafio.
Em que pese haja virtudes nas definições, instrumentos e nos procedimentos adotados pela LAPG, há uma falta de experiências jurídicas que garantam aos envolvidos que a exploração econômica sustentável da biodiversidade é um negócio viável, benéfico a todos os envolvidos e seguro a longo prazo.
Há um déficit de experiências jurídicas que é claramente verificado na jurisprudência, a qual ainda não forneceu parâmetros interpretativos claros para a LAPG, de modo que, atualmente, se tem muita incerteza de como o Poder Judiciário pode interpretar essa legislação com relação aos riscos e responsabilidades dos envolvidos.
No entanto, essa escassez de experiências jurídicas com relação à LAPG não se restringe à jurisprudência dos tribunais. Ela pode ser identificada também na atuação de agentes interessados: detentores do conhecimento tradicional associado, empreendedores e Ministério Público, por exemplo.
No caso dos povos indígenas e comunidades tradicionais, especificamente, é preciso ainda muito investimento para que eles criem, se quiserem, seus próprios protocolos de consulta. Ajudar a prepará-los para decidirem se querem ou não permitir o acesso a seus conhecimentos e, querendo, que possam negociar termos justos para repartição de benefícios, é um dos maiores desafios para o desenvolvimento sustentável baseado na biodiversidade.
Da parte dos empreendedores, é preciso estabelecer práticas contratuais que comprovem para todos os interessados que a sua vontade de empreender na área da biodiversidade tem como pilar uma atuação ética, que respeita o consentimento de indígenas e comunidades tradicionais e, por fim, leva a termos de repartição de benefícios justos para com os provedores de CTA.
Por fim, quanto ao Ministério Público, é preciso que ele trabalhe fiscalizando e recomendando parâmetros mínimos mais específicos para a formatação jurídica do consentimento prévio, livre e informado e acordos de repartição de benefícios, de modo a evitar a proposição desnecessária de soluções adversariais de conflitos.
Sabendo da importância do consentimento livre, prévio e informado e, também, do acordo de repartição de benefícios, não é possível avançarmos na discussão e na construção do desenvolvimento sustentável no Brasil sem investirmos em maior consenso na formatação desses instrumentos jurídicos.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sigla para Environmental, Social and Governance.

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JOTA

Não é possível avançarmos sem investirmos em maior consenso na formatação de instrumentos jurídicos

Destravar a biodiversidade

Não é possível avançarmos sem investirmos em maior consenso na formatação de instrumentos jurídicos