Camilla Cavalcanti Rodrigues Cabral

Herta Rani Teles Santos

Um domingo ensolarado. Um belo dia para o aniversário da minha querida afilhada. Na loja de brinquedos escolho o patinete lilás (ela adora lilás). Olho para o lado e vejo o mesmo patinete da cor verde, 50 reais mais barato. Será? Uma curiosidade me invade. Começo a reparar em todas as prateleiras e vejo vários produtos direcionados para as meninas mais caros do que os voltados para os meninos, apesar de serem do mesmo tipo. Estranho. No aniversário da Isadora, comento com minha irmã a situação. Ela me conta que as empresas costumam cobrar mais caro pelos produtos femininos.
Às vezes justificam que seria a lei da oferta e da demanda, às vezes dizem que a propaganda dos produtos femininos seria mais cara, às vezes simplesmente dizem que os brinquedos masculinos teriam mais saída que os femininos. Eu, consumidora atenta que sou, começo a pesquisar mais e não acho explicação suficiente em lugar algum.
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Analiso mais o assunto e percebo que o Departamento de Defesa do Consumidor (DCA) de Nova York havia divulgado uma pesquisa na qual detectara que o valor dos produtos femininos é, via de regra, 7% mais caro para brinquedos e acessórios; 4% a mais para roupas infantis; 8% a mais para roupas para adultos; 13% a mais para produtos de cuidados pessoais; 8% a mais para produtos de saúde para idosos/ domiciliares do que os masculinos.
No total, o DCA constatou ainda que os produtos femininos custam mais do que os masculinos em 42% dos casos.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> No Brasil, a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) também realizou um estudo em 2018 e descobriu que os produtos e serviços femininos são em média 12,3% mais caros do que os masculinos.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Daí percebo que se o produto feminino é mais caro, a porcentagem de imposto pago também tende a ser maior do que seria no cobrado pelo mesmo produto masculino, e olhe que ainda ganho menos no meu trabalho, em comparação ao meu colega homem na mesma função, como é o caso de várias mulheres.
Afinal, segundo estudo divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em março desse ano, mulheres ganharam, em média, 22% menos que os homens. Nos cargos de gerência, a diferença salarial é de 29% para as mulheres em relação a seus pares masculinos nas mesmas funções.
Descubro vários artigos a tratar do assunto, dentre eles um a apontar que, embora o rendimento tributável dos homens seja 1,5 vezes o das mulheres, eles possuem rendimentos isentos 2,2 vezes superiores, justamente porque estão em cargos ou exercem certos tipos de trabalhos nos quais recai menor tributação, como, por exemplo, são maioria entre os sócios de empresas e, portanto, maioria entre os que recebem dividendos (percentual dos lucros de uma empresa que é distribuído aos acionistas).
É o que mostra um levantamento da BigData Corp. realizado por meio de dados públicos coletados sobre as empresas brasileiras. Um exemplo claro nesse sentido é a distribuição das empresas que têm faturamento anual acima de R$ 100 milhões.
Nesse grupo, as mulheres detêm a sociedade total de apenas 6,9% das empresas, enquanto as que contam apenas com homens em seu quadro societário representam mais de 44,45%, um percentual mais de seis vezes maior.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Esse dado ganha relevância quando se observa que no Brasil não existe cobrança de imposto de renda sobre dividendos recebidos pelos sócios.
Já as mulheres, maioria nos empregos mais subalternos, seguem pagando os impostos comuns, o que me leva à reflexão semelhante à de Chiara Capraro<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, no sentido de que as mulheres são afetadas pelos impostos de maneiras específicas devido aos seus padrões de emprego, incluindo salários, à participação no trabalho de cuidado não remunerado, aos padrões de consumo e à sua posse de bens e propriedades, justamente por estarem em trabalhos ou precisarem de produtos que, por sua natureza, decisões empresariais e  políticas, envolvem um pagamento de tributos em alíquotas ou valores mais altos. Tudo isso a gerar uma proporção maior de rendimentos tributáveis do que a dos homens.
Para tentar entender melhor o problema, leio os estudos de Janet Gale Stotsky<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> sobre as desigualdades de gênero e os sistemas tributários dos países em desenvolvimento.
Para a autora, a análise do viés de gênero da tributação deve observar tanto a forma explícita quanto a implícita de discriminação. O viés explícito geralmente apresenta um tratamento diferenciado entre homens e mulheres na própria legislação, direcionando tratamentos diferentes para cada um; já o viés implícito, mais difícil de ser percebido, são as implicações das leis que, em razão de determinado contexto social e econômico daquele local, país ou momento histórico, impactarão homens e mulheres de forma diferente (caso brasileiro).
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, a tributação brasileira, tal como existente hoje, pelas opções que faz nos métodos, alíquotas e incidências, pode reforçar, implicitamente, as desigualdades de gênero e o processo de feminização da pobreza.</blockquote>
Já que a tributação concentrada sobre o consumo, indireta e regressiva, pode onerar mais as mulheres do que os homens, seja pelo impacto tributário sofrido apenas por elas (alta tributação para cosméticos/tributação de bens exclusivamente femininos, como absorventes), seja pela tributação da renda recair mais sobre quem se encontra nos cargos mais subalternos, nos quais há mais mulheres do que homens.
Em minhas reflexões, ainda lembro que Constituição Federal de 1988 positivou a igualdade e a justiça social como compromissos estatais e incluiu, dentre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza, da marginalização, das desigualdades sociais e regionais, tendo como fim a igualdade.
Indo além no meu raciocínio, lembro que, na consecução desses objetivos, a tributação possui uma função relevante pois, além de ser a principal fonte arrecadatória do Estado, possui o caráter extrafiscal, ao induzir ações e estimular ou desestimular comportamentos para atender à política tributária estatal.
Justamente para alcançar a justiça social, o princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 145, §1º, da Carta Magna prevê que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. 
Não deixo de pensar como as desigualdades de gênero afetam toda a sociedade, como as disparidades são ostensivas e muitas vezes sequer nos damos conta, e como é importante buscar critérios mais justos e igualitários.
Embora a tributação explicitamente não faça distinção de gênero, a distorção existe na medida em que as mulheres recebem salários menores, pagam os mesmos tributos indiretos e muitas são responsáveis pela única fonte de renda dos seus lares.
Nesse contexto, a igualdade, em sua perspectiva material, prevista na legislação, afasta-se dos objetivos Constitucionais. Por tudo isso, é necessária a consecução de uma política tributária que diminua as assimetrias de gênero.
Volto a lembrar da minha sobrinha e a imagino no futuro, depois de ter brincado bastante com o patinete que ganhara, e começo a me perguntar: será que daqui a uns vinte anos ela será sócia de alguma empresa, diretora, gerente ou algo semelhante?
Será que continuará a pagar mais caro pelos produtos femininos e a ganhar menos do que algum colega homem no seu mesmo posto ou função? Será que continuará sob a vigência de uma legislação tributária que não olhe para ela e para outras mulheres com cuidado e cautela? Penso alto: até quando? E minha irmã, ouvindo minhas indagações responde: querida, até quando nós mulheres continuarmos desatentas e em silêncio.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> YAZICIOĞLU, Alara Efsun. Pink Tax and the Law : Discriminating against Women Consumers. Abingdon, Oxon [UK] ; New York, NY, 2018. PETROU, I., M.D. (2017). The Pink Tax. Dermatology Times, 38(9), 2-1,41. NYC Consumer Affairs. From Cradle to Cane: The Cost of Being a Female Consumer – A Study of Gender Pricing in New York City. Disponível em: &lt;https://www1.nyc.gov/site/dca/partners/gender-pricing-study.page&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: &lt;https://notaalta.espm.br/o-assunto-do-dia/mulheres-pagam-mais-por-produtos-rosa/&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;https://www.terra.com.br/noticias/dino/as-mulheres-ja-sao-mais-de-42-dos-empreendedores-do-brasil,bb555f292dd657599e3f7339450b70968kkar1qh.html&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>  CAPRARO, Chiara. Direito das mulheres e justiça fiscal: Por que a política tributária deve ser tema da luta feminista.Sur International Journal on Human Rights 13.24 (2016). Disponível em: &lt;https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2017/02/1-sur-24-por-chiara-capraro.pdf&gt;. Acesso em 01 de novembro de 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> STOTSKY, Janet G. Gender bias in tax system. International Monetary Fund. 1996. p.64.

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JOTA

Embora a tributação explicitamente não faça distinção de gênero, a distorção existe

Desodorantes, brinquedos, salários e mulheres

Embora a tributação explicitamente não faça distinção de gênero, a distorção existe