Bruno Galvão

Roland M. Stein

O Brasil surpreendeu a todos quando da assinatura do <a href="https://ukcop26.org/glasgow-leaders-declaration-on-forests-and-land-use/">Forest Deal</a> juntamente com mais de 100 países durante a COP 26. Mas, ao que parece, o governo brasileiro leu no acordo uma palavra que não está em seu curto texto (leia sobre <a href="https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59256578">aqui</a>). Entendeu que o Forest Deal visa a coibir somente o desmatamento ilegal.
Ocorre que, independentemente da posição do governo brasileiro, o tema ganhou mais um contorno que deixa claro a intenção do mercado internacional em barrar todo e qualquer desmatamento, desconsiderando eventuais autorizações locais.
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A Comissão Europeia apresentou em 17 de novembro de 2021 a "Proposta de regulamento sobre produtos sem desmatamento" (Regulamento sobre Desmatamento, cujos documentos relevantes podem ser encontrados <a href="https://ec.europa.eu/environment/publications/proposal-regulation-deforestation-free-products_en">aqui</a>), com o objetivo de proibir a comercialização em seu território de produtos associados ao desmatamento ou degradação florestal.
A lista de produtos é definida pelo artigo 1º do Regulamento sobre Desmatamento, a saber: gado (seja o gado vivo, carne ou couro), cacau, café, óleo de palma, soja e madeira, bem como subprodutos, produtos que contenham ou resultem dos mesmos (em conjunto, Produtos Relevantes). O Anexo I do regulamento apresenta a lista exaustiva dos subprodutos e derivados sujeitos a suas regras.
<blockquote class="jota-article__eye">Uma das definições mais importantes constante do artigo 2º do Regulamento sobre Desmatamento é o conceito de desmatamento, determinado como "a conversão de floresta em uso agrícola, seja ocasionado pelo homem ou não".</blockquote>
Floresta, por sua vez, é entendida pela definição amplamente utilizada da <a href="http://www.fao.org/home/en/">FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação)</a>, como: terreno medindo mais de 0,5 hectare com árvores maiores do que 5 metros de altura e cobertura de copa superior a 10%, ou árvores capazes de alcançar estes parâmetros in situ [no local], "excluindo terras predominantemente sob uso agrícola ou urbano”.
De acordo com o artigo 3º do Regulamento sobre Desmatamento, a introdução ou disponibilização dos produtos relevantes no mercado da UE só será permitida se forem:
<ul>
<li>livres de desmatamento;</li>
<li>produzidos de acordo com a legislação relevante do país de produção (tais como legislação ambiental, legislação trabalhista, direitos humanos etc.);</li>
<li>objetos de uma declaração de "due diligence" (melhor descrito abaixo).</li>
</ul>
O Regulamento sobre Desmatamento, caso aprovado, terá um impacto profundo no comércio internacional de commodities agropecuárias, pois a proibição mencionada acima se aplicaria independentemente de o desmatamento ser legal ou ilegal no país de produção. Além disso, o Regulamento sobre Desmatamento visa a criar obrigações para qualquer pessoa que introduza os produtos relevantes no mercado (operador), bem como para qualquer outra pessoa que disponibilize esses produtos (comerciante).
Antes de comercializar os produtos relevantes no mercado da UE, tanto os operadores como os comerciantes terão que cumprir o seguinte procedimento:
<ul>
<li>realizar uma "due diligence" para garantir que os produtos cumpram com o artigo 3º do Regulamento sobre Desmatamento;</li>
<li>disponibilizar às autoridades competentes uma declaração de "due diligence" afirmando a conformidade analisada, assumindo a responsabilidade pela legalidade do produto relevante.</li>
</ul>
A "due diligence" terá que incluir informações detalhadas sobre o local de produção e o produtor, documentos e dados que demonstrem a conformidade com o Regulamento, bem como uma avaliação de risco e medidas de mitigação de risco, quando aplicável. Resta claro, portanto, que operadores e comerciantes terão que estruturar e implementar um minucioso programa de compliance com políticas de controle e procedimentos para mitigar e gerenciar riscos de não conformidade, que deverá, inclusive, ser auditado por monitores independentes.
A extensão e escopo da "due diligence" a ser conduzida pelos operadores e comerciantes irá variar de acordo com o país de origem dos produtos relevantes, que serão classificados pela Comissão Europeia como de baixo ou alto risco, conforme o artigo 27 do Regulamento sobre Desmatamento que apresenta os seguintes critérios:
<ul>
<li>taxa de desmatamento e degradação;</li>
<li>taxa de expansão das terras agrícolas;</li>
<li>tendências da produção;</li>
<li>se a contribuição determinada nacionalmente (em inglês, nationally determined contribution ou NDC) consoante o Acordo de Paris leva em consideração as emissões de oriundas de desmatamento;</li>
<li>eventuais acordos celebrados com a UE que tratam a respeito de desmatamento e que facilitem o cumprimento do regulamento; e</li>
<li>se o país tem leis nacionais que busque evitar o desmatamento e apresente sanções suficiente severas.</li>
</ul>
Percebe-se que as empresas europeias afetadas pelo regulamento terão que exigir de seus fornecedores um volume significativo de informação. Certamente irão exigir, também, a implementação pelos produtores de um sistema de "due diligence" que espelhe suas próprias obrigações, para que seja possível cumpri-las e ter segurança nas informações necessárias.
Qualquer país não incluído na lista a ser publicada pela Comissão Europeia será classificado como de risco padrão. Se o país de origem for classificado como de baixo risco, o operador e comerciante se beneficiarão de uma obrigação de "due diligence" simplificada estabelecida pelo artigo 12 do Regulamento sobre Desmatamento.
No entanto, embora um país possa ser definido como de baixo risco no que se refere a desmatamento, o operador ou comerciante ainda precisarão ter em vigor um sistema de avaliação e mitigação de riscos que lhes permitam atestar em sua declaração de "due diligence" que o produto relevante foi produzido em conformidade com a legislação relevante do país de produção.
Se o país for classificado como de alto risco, cada Estado-Membro da União Europeia deverá conduzir fiscalizações anuais rigorosas, nos termos do artigo 20 do regulamento. As autoridades competentes de cada país deverão fiscalizar ao menos 15% do total de operadores e comerciantes participantes do mercado relativo a cada produto relevante, cobrindo 15% do quantitativo comercializado de cada produto relevante em seu território.
É difícil prever quais países serão classificados como de alto risco, dada a complexidade do procedimento e a quantidade de dados necessários para esta avaliação. De qualquer forma, é preciso observar que a Comissão Europeia tem dado ênfase na cadeia de produção de carne bovina do Brasil, bem como na produção da soja em vários países da América do Sul (Brasil, Argentina e Paraguai). Tais países foram objeto dos estudos de casos apresentados no <a href="https://ec.europa.eu/environment/system/files/2021-11/SWD_2021_326_1_EN_impact_assessment_part2_v2.pdf">Anexo 6</a> do documento de trabalho da equipe técnica da Comissão: <a href="https://ec.europa.eu/environment/system/files/2021-11/SWD_2021_326_1_EN_impact_assessment_part1_v4.pdf">Relatório de Avaliação de Impacto</a> (documento assessório ao Regulamento sobre Desmatamento).
O mercado da carne no Brasil é esmiuçado pela Comissão Europeia no estudo de caso 2 do Anexo 6. A correlação do setor com o desmatamento e emissão de CO2 é colocada em destaque ao relatar que dois terços das áreas desmatadas da Amazônia e do cerrado são convertidas em pasto, sendo o Brasil responsável por um quinto de todas as emissões oriundas da produção de commodities em zonas desmatadas nos trópicos.
A complexidade da cadeia é também um elemento de destaque e preocupação. A variedade de locais por onde o gado passa do nascimento ao abate faz com que, em média, a transação com um fornecedor direto implique em compras com 15 outros fornecedores indiretos. Tal circunstâcia é dificultada ainda mais por práticas de “lavagem” de gado, onde produtores irregulares vendem sua produção a produtores regulares para que estes últimos levem o gado a comércio. Esse será o desafio do setor, o rastreamento de toda a cadeia, direita e indireta, para que seja possível cumprir com as exigências do Regulamento.
A produção da soja é tratada no estudo de caso 4 do Anexo 6 como um dos maiores impulsionadores do desmatamento global. Dos 24 milhões de hectares desmatados na América do Sul entre 2000 e 2010, 80% deste total pode ser atribuída a produção de soja, direta ou indiretamente (com a substituição de pasto em área desmatada por plantações). A Comissão Europeia identifica a área do cerrado como maior impactada pela produção de soja, sendo estimado que, para sua expansão, seja necessário o desmatamento de 2,2 milhões de hectares do bioma até 2030.
Considerando as informações apresentadas nos estudos de casos, é provável que os países envolvidos sejam classificados como de alto risco.
É importante ressaltar que o Regulamento sobre Desmatamento ainda é uma proposta da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu, a ser discutida e votada. Entretanto, o esmagador apoio público à proposta desempenhará uma pressão política significativa. Com mais de 1,2 milhão de respostas, a consulta pública da proposta é a segunda mais popular na história da UE.
O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Carlos França, <a href="https://www.poder360.com.br/meio-ambiente/chanceler-acusa-ue-de-protecionismo-e-miopia-em-lei-contra-desmatamento/">se posicionou</a> rapidamente contra a proposta de regulação, chamando a medida de “protecionismo” e “miopia”, o que leva a crer na possibilidade de o Brasil levar a discussão para a Organização Mundial do Comércio (OMC).
O setor produtivo, especialmente o da soja, também se colocou de forma contundente contra o regulamento. Em <a href="https://brasil.elpais.com/economia/2021-11-23/produtores-de-soja-dizem-que-restricoes-da-ue-a-importacao-e-protecionismo-disfarcado-de-preservacao-ambiental.html">manifestação</a> da Associação Brasileira dos Produtos de Soja (Aprosoja) o presidente da entidade chamou a proposta de “protecionismo comercial disfarçado de preocupação ambiental”.
O Brasil se encontra em uma situação difícil, principalmente após o compromisso firmado na COP 26 com mais de 130 países de acabar com o desmatamento em 2030. Os países signatários do Forest Deal não irão ter a mesma leitura de que apenas o desmatamento ilegal deva ser combatido. Esse movimento da União Europeia parece ser um caminho sem volta.
Entretanto, certamente há espaço para ajustes e pressão para que todo o território brasileiro não seja tratado da mesma forma, ou para a articulação de mecanismos de certificação individualizados de empresas, para que estas possam atestar boas práticas e evitar serem consideradas de alto risco.
Neste contexto, é possível ao governo brasileiro levar a discussão à OMC e o setor produtivo buscar um posicionamento de diálogo em Bruxelas com os parlamentares europeus. De toda forma, é importante não esperar que o regulamento seja repelido por completo, sendo prudente que as partes interessadas se preparem desde já para cumprirem com as exigências futuras.

DESMATAMENTO MT

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JOTA

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