Tempos estranhos. Nada de novo, afinal. Certamente todos os viventes de todas as épocas em algum momento vociferaram ocupar o planeta em “tempos estranhos”. Não sei, atrevo-me a afirmar que a internet tornou a política ainda mais estranha. Tendo me enfronhado, pelo ILD, em pesquisa sobre decisões do TSE para as eleições de 2022 (spoiler: vem mais pesquisa aí!), vi o jogo sujo das mentiras e acusações de candidatos de todos os espectros políticos. Espantoso. Fiquei imaginando os algozes, as vítimas, os juízes, os defensores, todos os envolvidos na busca desenfreada por aquilo que, para muitos, é um sonho: a verdade. Na verdade, talvez não.
O recente Decreto cujo artigo 47 outorga à novel Procuradoria de Defesa da Democracia (o nome é imponente, mas reservo-me o direito de observar) a competência para adotar medidas contra a desinformação sobre políticas públicas é objeto de muitas críticas, algumas acertadas, outras nem tanto. Arrisco-me afirmar que o problema da luta contra a desinformação é um problema de fundo, nodal: não se quer com isso descobrir a verdade, mas apenas se defender de ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas, como definiu a AGU. Parece-me, pois, que a iniciativa em comento é encampada como resposta às nefastas estratégias de colocar tudo e todos sob dúvida, naquilo que Giuliano da Empoli definiu como os engenheiros do caos. Isso é arriscado.
Arriscado porque, se isso for verdade (olha ela aqui novamente), o propósito revanchista da legislação pode levar a excessos. Não é distante o risco de censura, como dizem alguns. Também sou simpático à analogia da Polícia do Pensamento, de Orwell, e há em “1984” muitas mais relações com a atualidade que se possa imaginar. Agora há uma política judicial de combate ao que os atores de justiça da vez entenderem ser desinformação capaz de atingir pessoas – note-se que embora o artigo 47, II do Decreto tenha como objeto a defesa das políticas públicas, a definição da AGU tem como objeto a defesa dos integrantes do Poder Público. Alguém duvida que a coisa pode desenrolar para uma cassação da palavra de quem criticar um candidato ou agente público? E aí os bons motivos são diversos: a dignidade da pessoa humana, a capacidade de influenciar artificialmente a escolha do eleitor, a defesa da democracia ou dessa ou daquela ideologia.
É evidente que aquele que, por si ou terceiro, espalha mentiras com a finalidade de provocar o caos deve ser responsabilizado. Os principais ordenamentos sancionam a má-fé, a malícia ou o dolo em tecer declarações que possam prejudicar as pessoas. Mas isso já é assim. Não é com a criação de um órgão, com o devido respeito, e os holofotes do Estado voltados à caça à desinformação que ela cessará. É igualmente notável a ausência de um conceito de desinformação, o que permite, em regra, um amplo espectro de situações que possam se amoldar à regra do Decreto. A desinformação cessará com mais informação. O antídoto da desinformação, como um soro antiofídico, é a própria informação, não a mão pesada do Estado.
O problema é que essa solução é trabalhosa, exige esmero e aplicação, com resultados mais robustos colhidos no longo prazo. Nesse sentido, a educação midiática – desenvolvimento de métodos e processos para ensinar indivíduos a se comportar diante da mídia – é imperiosa. As pessoas no Brasil muitas vezes não conseguem interpretar adequadamente uma frase, como elas se defenderão de uma mentira propalada na internet, em praça pública ou, ainda, pelo vizinho? Certamente é necessário, como afirmou meu amigo Diogo Rais, um passo atrás, mas, em verdade (mais uma!), passo dirigido à educação. A mudança não está em equipar o aparato de Justiça para caçar a desinformação, usando a velha estratégia do command-and-control, mas, de fato, em preparar as pessoas, elas por si somente, a, diante de uma mentira, defenderem-se dela. E isso só se faz com educação, cidadania e trabalho.