Aline Lícia Klein

Não é raro verificar a desestatização do ente que ocupa a posição de contratante em diversos contratos administrativos. E a tendência é de que isso ocorra cada vez mais.
Trata-se da hipótese de ente integrante da Administração indireta ser privatizado ou ter a sua posição de operador substituída por um ente da iniciativa privada. O ente privado passa a deter uma concessão para exploração de certa atividade, por prazo determinado.
Apenas para se mencionar alguns exemplos, foi o que se verificou na privatização dos aeroportos. A posição então ocupada pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/infraero">Infraero</a> nos contratos passou a ser detida por uma concessionária. A desestatização das autoridades portuárias, que teve início com a privatização da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), também produz esse efeito em relação aos arrendatários. A privatização das centrais de abastecimento que está sendo modelada acarreta a mesma problemática para aqueles que detêm contratos de permissão ou concessão de uso da área.
Em termos de contratos, a alteração é bastante significativa. Do regime de direito público, aplicável aos contratos detidos por entidades da Administração indireta que prestam serviço público, passa a vigorar o regime de direito privado, expressamente previsto na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm">Lei 8.987/95</a>, art. 25, §2º. Assim, ainda que os contratos sejam mantidos, é necessária a alteração das suas condições, para adaptá-las ao regime de direito privado.
As soluções que têm sido adotadas são no sentido de manutenção dos contratos existentes, com a alteração do regime jurídico para o de direito privado e renegociação das suas cláusulas. Mas nem sempre isso é suficiente para aliar a segurança jurídica dos atuais detentores de contrato à atratividade do novo negócio para o operador privado.
Os editais têm procurado evitar conflitos de interesse mais diretos entre o novo concessionário e os atuais detentores de contratos mediante a inclusão de “cláusulas de barreira”. Por exemplo, o edital da Codesa restringiu, sem vedar, a participação no leilão de empresas e seus acionistas que já atuam no porto. Nos leilões de aeroportos, tem sido vedada a participação de empresas aéreas isoladamente, sendo permitida a sua participação em consórcio com um limite percentual de participação bastante reduzido.
Os editais também procuram disciplinar a transição dos contratos.
Para a privatização da Codesa, previu-se que as empresas privadas que já operavam terminais poderão renegociar os seus contratos, de modo a alterar o prazo e as obrigações contratuais, por exemplo. No entanto, inseriu-se no edital de privatização a garantia de que, no caso de insucesso nas negociações, deverão prevalecer as condições originais dos contratos.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Porém, como nem todas as condições de exercício das atividades são contratualizadas, pela incidência das disposições regulamentares sobre a prestação dos serviços, mesmo com a garantia de manutenção das condições contratuais os atuais operadores não deixam de se sujeitar a possíveis alterações nas condições de utilização dos portos, sem poder contar com as garantias do regime de direito público dos contratos.
Em relação à Ceasaminas, foi disponibilizada aos atuais permissionários minuta de aditivo ao Contrato de Concessão de Uso, para que avaliassem a conveniência de aderir aos seus termos. Trata-se de iniciativa decorrente da <a href="https://www.imprensanacional.gov.br/web/dou/-/resolucao-cppi-n-220-de-16-de-dezembro-de-2021-379520195">Resolução CPPI nº 220, de 16.12.2021</a>. O termo aditivo dispõe que a privatização da Ceasaminas não implicará a rescisão de pleno direito dos contratos, que continuarão válidos e vigentes. Revoga, assim, previsão contratual então existente de extinção do contrato na hipótese de privatização da central.
Ainda que o termo aditivo esclareça que não serão extintos os contratos em razão da privatização, não se esclarece como será a convivência com outros particulares que vierem a celebrar contratos após a privatização. Não se define, por exemplo, se estes estarão sujeitos às mesmas regras dos atuais concessionários. Prepondera, no caso, o risco de interface entre operadores.
No caso dos aeroportos, houve sub-rogação integral para as concessionárias dos contratos de utilização dos espaços que haviam sido celebrados com a Infraero.
Apesar disso, a percepção inicial foi a de aumento dos valores de locação, que poderia ser parcialmente atribuída à defasagem dos valores cobrados pela Infraero em <a href="https://jornaldebrasilia.com.br/noticias/economia/aeroportos-privados-mudam-de-cara/">alguns casos</a>. Por outro lado, os lojistas dos aeroportos já privatizados podem ter se beneficiado da maior flexibilidade nas negociações em face da queda de demanda no pico da pandemia da Covid-19, em relação às maiores <a href="https://economia.uol.com.br/todos-a-bordo/2020/11/18/crise-lojas-aeroportos.htm">dificuldades enfrentadas por aqueles que negociaram diretamente com a Infraero</a>.
Além de eventuais questionamentos sobre a transição dos contratos e a sua concorrência com novos entrantes, que já ingressam com contratos de direito privado, outra problemática também com viés concorrencial diz respeito à escolha dos contratados. Por exemplo, nos portos administrados pelo governo, a seleção de interessados em celebrar contrato de arrendamento faz-se por meio de licitação, da qual podem participar todos os interessados que preenchem os requisitos. Com a desestatização, essa contratação passa a ser privada, sem a obrigatoriedade de procedimento competitivo. A concessionária poderá contratar livremente os operadores.
Na privatização da Codesa, foi previsto um Código de Conduta a ser elaborado pela concessionária e aprovado pelo Poder Concedente, para orientar as negociações com os interessados em explorar as áreas do porto organizado. Apesar de os termos do contrato a ser celebrado serem livremente pactuados pelas partes, o Código de Conduta a ser adotado pela concessionária deverá observar os princípios da probidade e da boa-fé e estabelecer que as negociações deverão ser baseadas em minuta-padrão referencial de contrato de exploração de áreas.<a href="#_ftn2" name="_ftnref4">[2]</a> No entanto, não há regras mais específicas acerca da isonomia ou igualdade de condições quando houver vários interessados.
Os exemplos acima indicados apenas ilustram a necessidade de serem aprofundadas as discussões, por ocasião das desestatizações, acerca dos contratos de uso de áreas, atuais e futuros, celebrados com terceiros. Os editais e contratos têm procurado disciplinar a questão, mas as regras previstas não tem sido suficientes para promover a segurança jurídica e assegurar a concorrência de um lado e, de outro, garantir a atratividade do ativo a ser desestatizado.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “1.4.2. Na ausência de acordo para adaptação dos Contratos de Uso das Áreas na forma e no prazo indicados no item 1.4. deste Anexo, os termos originalmente pactuados permanecerão válidos, naquilo em que não conflitarem com as regras de direito privado.” (Anexo 6 da minuta do Contrato de Concessão, anexo ao Edital do Leilão nº 01/2022 – PPI/PND).<a href="#_ftnref2" name="_ftn2"></a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn4">[2]</a> Anexo 9 da minuta do Contrato de Concessão, anexo ao Edital do Leilão nº 01/2022 – PPI/PND.

infraero

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JOTA

Privatizações como Codesa e aeroportos implicam substituição do ente público pelo privado em contratos já existentes

Desestatização e transição de contratos de uso de área

Privatizações como a da Codesa e dos aeroportos implicam substituição do ente público pelo privado em contratos já existentes