“[A] província legítima [dos advogados internacionalistas] é e deve permanecer a exposição e a interpretação progressiva da lei existente nos termos do propósito permanente do Direito das Nações.”
Na próxima segunda-feira, dia 20 de setembro, inicia-se o período das audiências públicas do caso “Violações Alegadas de Direitos Soberanos e de Espaços Marítimos no Mar do Caribe” (Nicarágua v. Colômbia). Até a sexta-feira da semana seguinte, dia 1º de outubro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ouvirá as sustentações orais das partes, com vistas a proferir uma decisão de mérito sobre a questão.
O caso é de extremo interesse para o Direito Internacional Público, uma vez que a sua conclusão trará importantes esclarecimentos sobre as possibilidades de procedimentos disponíveis para garantir a efetividade das decisões da CIJ. Todos os caminhos levam à Haia.
O caso guarda relação com a decisão da CIJ de 2012, proferida no caso “Disputa Territorial e Marítima” (Nicarágua v. Colômbia). Nessa sentença, a corte deu ganho de causa para a Colômbia que, não sendo parte da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla em inglês), teve, contudo, seu direito reconhecido pelo Costume Internacional.
Assim, a CIJ reafirmou a soberania da Colômbia sobre 7 ilhas marítimas e demarcou uma linha limítrofe única entre os dois países, delimitando suas respectivas plataformas continentais e zonas econômicas exclusivas.[1]
Além disso, a corte rejeitou o pedido da parte autora para editar uma declaração de que a Colômbia estaria em ofensa ao Direito Internacional por pretensamente negar à Nicarágua acesso aos recursos naturais à leste do meridiano 82.[2] A geografia, ao contrário da história, não permite interpretações.
No ano seguinte, 2013, a Nicarágua protocolou duas petições perante a CIJ. Na primeira, referente ao caso em tela de “Violações Alegadas de Direitos Soberanos e de Espaços Marítimos no Mar do Caribe”, a Nicarágua alega que a Colômbia teria desrespeitado a delimitação das zonas marítimas estabelecidas na Decisão de 2012 e que, além disso, teria ameaçado empregar o uso da força.
Na segunda petição, por sua vez, a Nicarágua solicita à CIJ que determine o curso preciso das fronteiras marítimas entre os dois países para além das áreas da plataforma continental delimitadas na Decisão de 2012, e, também, que defina os direitos e deveres das partes nas áreas sobrepostas, até a delimitação final além das 200 milhas náuticas.[3]
A Colômbia, então, apresentou 5 objeções preliminares, entre as quais destaca-se o argumento de res judicata, uma vez que o mérito já haveria sido julgado pela Decisão de 2012 e que, por conseguinte, qualquer questão relativa à execução dessa sentença não deveria ser promovida pela própria CIJ, mas sim pelo Conselho de Segurança, em atenção ao art. 94(2) da Carta das Nações Unidas.[4]
A Nicarágua, por sua vez, fez uma distinção entre um pedido de execução de sentença e um pedido de declaração de descumprimento de sentença[5], alegando que a CIJ teria uma jurisdição inerente para avaliar casos de descumprimento, a qual seria de todo compatível com o procedimento do art. 94(2) da Carta da ONU.[6]
Além disso, sustentou a Nicarágua que, alternativamente, a CIJ teria jurisdição sobre a questão com base no art. 31 do Pacto de Bogotá[7] e que o procedimento junto ao Conselho de Segurança seria facultativo e que o seu país não teria a intenção de usá-lo.[8] Touché.
A CIJ, assim, emitiu uma Decisão Preliminar no dia 17 de março de 2016, rejeitando as objeções colombianas e determinando que o caso prosseguisse para o mérito.
Com relação à objeção específica acima apresentada, a Corte entendeu que não se tratava realmente de um pedido de execução de sentença por parte da Nicarágua, mas sim, de um mero pedido declaratório, para cuja jurisdição a CIJ encontrou fundamento no art. 31 do Pacto de Bogotá.
A Corte declarou, assim, que não teria de se pronunciar sobre a questão da existência ou não de uma jurisdição inerente, nem sobre os procedimentos do art. 94(2) da Carta da ONU.[9]
Ficou no ar, assim, um pronunciamento judicial sobre uma importante questão para a efetividade plena das decisões de tribunais internacionais: haveria ou não uma jurisdição inerente às cortes para acompanhar o cumprimento de suas decisões? E, em caso positivo, como essa jurisdição se relaciona com o procedimento do art. 94(2) da Carta da ONU?
O juiz brasileiro, Antônio Augusto Cançado Trindade – que foi meu professor no Instituto Rio Branco –, em atenção à importância do tema, apensou uma opinião em apartado sobre o ponto acerca da existência ou não de uma jurisdição inerente à corte.
Recomendo fortemente, cara leitora, a apurada opinião do professor Cançado Trindade, cuja relevância para operação dos tribunais internacionais não pode ser minimizada. Seguindo as premissas jusnaturalistas e a opinião dos fundadores do Direito Internacional contemporâneo, o professor Cançado Trindade, reconhece a existência de uma jurisdição inerente às cortes internacionais, baseada no primado da razão sobre a vontade estatal:
“Parece muito lamentável que, ainda em nossos dias, a obsessão com a necessidade do consentimento do Estado continue presente na prática jurídica e na adjudicação internacional, aparentemente por força de inércia mental. A meu ver, é difícil evitar a impressão de que, se continuarmos a privilegiar o voluntarismo estatal, não iremos além da pré-história da solução judicial de controvérsias entre Estados, na qual ainda vivemos. Posso aqui reiterar que a recta ratio está acima da voluntas, a consciência humana está acima da 'vontade'”[10]
Já com relação ao procedimento previsto no art. 94(2) da Carta da ONU, o Juiz Cançado Trindade entende que esse dispositivo não confere uma prerrogativa exclusiva ao Conselho de Segurança para garantir o cumprimento das decisões da CIJ.[11]
Segundo o professor, o Conselho de Segurança raramente tem se ocupado do tema[12] e “o cumprimento das sentenças e das decisões permanece como uma preocupação da CIJ bem como de todos os outros tribunais”. “Nenhum tribunal pode ficar indiferente ao não cumprimento dos seus próprios julgamentos”,[13] conclui. Do contrário, nada mais seriam do que um maço de papel.
O período de audiências que se inicia na próxima semana, em suma, deve ser acompanhado com intensa atenção por todos aqueles que se interessam pelo Direito Internacional. Uma via alternativa de declaração judicial do cumprimento ou não dos julgamentos de um tribunal internacional pode ver-se aberta, com um aumento da eficácia do sistema de adjudicação internacional como um todo.
Vale lembrar, cara leitora, que em caso de declaração de descumprimento, surge o “dever de não reconhecimento” do ato ou situação ilegal por toda a comunidade internacional, o que seria equivalente a uma sanção não-militar.[14] Como bem remarcou o juiz Cançado Trindade, “o caminho para justiça é longo”.[15] Longo e tortuoso, cara leitora.
[1] DESIERTO, D. “A New Theory for Enforcing ICJ Judgments? The World Court’s 17 March 2016 Judgments on Preliminary Objections in Nicaragua v. Colombia.” EIJIL:TALK!, 6 abr. 2016.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Dispõe o Art. 94(2): Se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença.
[5] Written Statement of the Republic of Nicaragua to the Preliminary Objections of the Republic of Colombia, 20 abr. 2015, para. 5.24.
[6] Idem, para. 5.25.
[7] Dispõe o Art. 31. De conformidade com o inciso 2º do artigo 36 do Estatuto da Côrte Internacional de Justiça, as Altas Partes Contratantes declaram que reconhecem, com relação a qualquer outro Estado Americano, como obrigatória, ipso facto, sem necessidade de nenhum convênio especial, desde que esteja em vigor o presente Tratado, a jurisdição da citada Côrte em tôdas as controvérsias de ordem jurídica que surjam entre elas e que verssem sôbre: a) A interpretação de um tratado; b) Qualquer questão do Direito Internacional; c) A existência de qualquer fato que, se comprovado, constitua violação de uma obrigação internacional; ou d) a natureza ou extensão da reparação a ser feita em virtude do desrespeito a uma obrigação internacional.
[8] Written Statement of the Republic of Nicaragua to the Preliminary Objections of the Republic of Colombia, 20 abr. 2015, para. 5.26.
[9] Alleged Violations of Sovereign Rights and Maritime Spaces in the Caribbean Sea (Nicaragua v. Colombia), Preliminary Objections, Judgment, I.C.J. Reports 2016, para. 109.
[10] Alleged Violations of Sovereign Rights and Maritime Spaces in the Caribbean Sea (Nicaragua v. Colombia), SEPARATE OPINION OF JUDGE CANÇADO TRINDADE, para. 41. Tradução livre.
[11] Ibid, para. 69.
[12] Ibid, para. 68.
[13] Ibid, para. 72.
[14] BROWLIE, I. Principles of Public International Law. 6ª ed. Oxford: OUP, 2003, p. 492.
[15] Alleged Violations of Sovereign Rights and Maritime Spaces in the Caribbean Sea (Nicaragua v. Colombia), SEPARATE OPINION OF JUDGE CANÇADO TRINDADE, para. 75.