Marília Barros Xavier

A desconsideração da personalidade jurídica no processo administrativo não é novidade para nós, ao contrário, está representado, na verdade, em um dos principais mecanismos para a responsabilização tributária na realização do crédito fiscal, quando praticados atos “com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”, como determina o art. 135 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">Código Tributário Nacional (CTN)</a>.
Um novidade, entretanto, chama atenção no tema: a regra introduzida na <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.133-de-1-de-abril-de-2021-311876884">Lei 14.133/2021</a>, para a nova disciplina das sanções na Lei Geral de Licitações e Contratos.
Antes, é preciso fazer uma aproximação da Lei 14.133/2021 com a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-anticorrupcao">Lei Anticorrupção</a> (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm">Lei 12.846/2013</a>); desde que as sanções na esfera das licitações e contratos não deixam de fazer parte de um sistema amplo de combate à corrução.
No combate à corrupção que, por assim dizer, mira as licitações e contratos administrativos, o primeiro aspecto que chamamos atenção é que tanto a Lei Anticorrupção como a Lei Geral de Licitações e Contratos têm por objeto a responsabilização, prioritariamente, de pessoas jurídicas.
A Lei Anticorrupção foi elaborada para atender ao compromisso internacional assumido pelo Brasil, na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, em 2003 (promulgada pelo Decreto nº 5.687/2006), que exigia a adequação legislativa dos países signatários para a responsabilização de pessoas jurídicas por atos de corrupção.
Decorrência dessa proteção jurídica “partilhada”, os tipos infracionais a respeito das contratações públicas e licitações ficaram repetidos ou têm elementos em comum – como círculos concêntricos – nos dois diplomas: Lei Anticorrupção e Lei de Licitações.
A Lei 12.846/2013, entre os tipos infracionais, dedica um inciso somente à tipicidade de condutas “no tocante a licitações e contratos”, em seu art. 5º, inciso IV, alíneas “a” a “g”; e a Lei 14.133/2021, por sua vez, constrói, em seu art. 155, inciso XII, um tipo infracional por remissão à Lei Anticorrupção: “praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013”.
Os mesmos fatos, portanto, nessas e em outras hipóteses, podem dar origem à responsabilização cumulada entre a Lei Geral de Licitações e Contratos e a Lei Anticorrupção.
Diante disso, o art. 159 da Lei 14.133/2021 determina que, em havendo identidade de tipos, nela ou em outras leis de licitações e contratos, e a Lei Anticorrupção, sejam observadas a competência e o procedimento desta, para o julgamento conjunto das infrações (e aplicação cumulada das sanções).
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-licitacoes">Lei de Licitações</a> incluiu no seu procedimento mecanismo antes presente na Lei Anticorrupção: a desconsideração da personalidade jurídica.
A diferença está em uma percepção sutil, mas de grande impacto prático: as sanções restritivas de direitos presentes na Lei de Licitações.
É preciso notar que a Lei Anticorrupção reúne duas espécies de responsabilidades punitivas: uma realizada em sede do processo administrativo sancionador e outra realizada em sede de um processo jurisdicional de competência cível.
A previsão da regra de desconsideração da personalidade jurídica na Lei Anticorrupção realiza-se no processo administrativo sancionador, para o qual estão tipificadas somente as sanções de multa e publicação extraordinária da decisão condenatória (art. 6º).
As demais sanções da Lei Anticorrupção são aplicadas no âmbito do processo civil e dizem, estas sim, respeito a restrições de direitos (art. 19).
Veja-se, para se alcançar um sócio na sanção restritiva de direitos, por exemplo, de perdimento dos bens, direitos ou valores (art. 19, I), aplica-se o regramento da desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137): um incidente processual (salvo se requerida na petição inicial), no qual estão garantidos, para a responsabilização da pessoa física (i) a suspensão do processo, (ii) a citação do sócio para, no prazo de quinze dias, se manifestar e requerer provas, (iii) a resolução do pedido por decisão interlocutória e (iv) o cabimento de agravo de instrumento, sendo a decisão proferida pelo relator.
A desconsideração da personalidade jurídica da Lei 14.133/2021 (art. 160), alcança, por sua vez, as sanções de: (i) o impedimento de licitar e contratar, por até três anos, junto ao ente federativo que aplicou a sanção; e (ii) a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar, pelo prazo de três a seis anos, diante da Administração Pública de todos os entes federativos.
O mecanismo originário da Lei Anticorrupção representa na Lei de Licitações uma ampliação (relevante) em seu uso, capaz de, em sede de processo administrativo sancionador, aplicar graves penalidades restritivas de direitos contra pessoas físicas.
Foram incluídos no regramento geral das licitações e contratos também parâmetros para o processo administrativo sancionador, com a determinação do prazo para defesa quando da presença da pena de multa (art. 157), e um “processo de responsabilização” (art. 158) para as hipóteses em que seja possível a aplicação das penas de impedimento de licitar e contratar e de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar – há a exigência de uma comissão competente para o processo; a definição do prazo para apresentação de defesa e produção de provas; e a possibilidade de produção de provas novas ou indispensáveis, por meio de alegações finais.
Entretanto, não há previsão de um procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica, diz-se, somente, para esta hipótese, dever serem “observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia” (art. 160).
A Lei 14.133/2021 não inaugura a responsabilização de pessoas físicas com sanções restritivas de diretos, no processo administrativo – lembrando que cabe à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-improbidade-administrativa">Lei de Improbidade Administrativa</a>, pelo processo civil, a responsabilização das pessoas físicas por atos de corrupção.
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-das-estatais">Lei das Estatais</a> (Lei 13.303/2016) responsabiliza direta e conjuntamente (art. 38) a pessoa física, sócio ou administrador, com sanções de impedimento de licitarem e serem contratados por empresa pública e sociedade de economia mista, quando hajam integrado quadro de empresa suspensa, impedida ou declarada inidônea, no período dos fatos que deram ensejo à penalidade; além de sanções de suspensão para participar em licitações e impedimento de contratar (art. 83, III) contra empresas ou profissionais (art. 84) condenadas por: (i) fraude fiscal, (ii) atos ilícitos com fins contrários a licitações e (iii) ilícitos outros que demonstrem a pessoa “não possuir idoneidade para contratar”.
A gravidade das sanções sobre pessoas físicas, no âmbito das licitações e contratos, é relevantíssima, pois recai sobre a liberdade para o exercício do trabalho (art. 1º, IV, e art. 5º, XIII, da Constituição Federal).
É preciso, entretanto, perceber a racionalidade de tais sanções: suas funções e justificativas – empíricas, especialmente, o que nos parece dizer respeito à prevenção e gestão do risco na Administração Pública.
Então, desde que, admitidas no sistema punitivo restrições de direitos a pessoas físicas aplicadas no processo administrativo sancionador, eis, agora, a questão: que procedimento as realiza, ou, como se realiza processualmente a desconsideração da personalidade jurídica no processo administrativo sancionador? Melhor oportunidade para o debate do tema está na honrosa Comissão de Juristas, presidida pela ministra Regina Helena Costa, para a reforma dos processos administrativo e tributário brasileiros.

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JOTA

Reforma da Lei de Licitações traz novas perspectivas sobre a questão

Desconsideração da personalidade jurídica no processo administrativo sancionador

Lei 14.133/21, a nova Lei de Licitações, trouxe novas perspectivas para a questão das sanções às personalidades jurídicas