Juliana Fukusima Sato

Arthur Alves Silveira

O tema reorganização empresarial nunca esteve tão em voga no país. Seja pela crise sistêmica deflagrada a partir da pandemia da Covid-19 (cujos efeitos ainda estão sendo experimentados economicamente), seja pela universalização e a própria evolução das ferramentas para a reestruturação empresarial, os empresários brasileiros têm procurado cada vez mais alternativas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> para lidar com as instabilidades econômicas.
Um dos grandes desafios de uma reestruturação bem sucedida é a conciliação dos diversos interesses de todos os envolvidos: sócios, empregados, credores, fisco, sociedade (e a função social), dentre outros. E isso que ocorreram avanços significativos na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-recuperacao-e-falencias">Lei de Recuperação de Empresas e Falências</a>, introduzidos pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14112.htm">Lei 14.112/2020</a>. Ainda assim, incentivos como os métodos alternativos de resolução de conflitos empresariais e o fomento dos demais mecanismos extrajudiciais para a recuperação de empresas, não afastam as dissinergias inerentes aos procedimentos de turnaround (dissensos societários, risco de inadimplência, supressão de garantias atreladas a credores etc.) judiciais ou extrajudiciais. A efetividade do cumprimento de qualquer tipo de plano de reestruturação empresarial está intimamente ligada à governança de controle e pagamento dos diversos credores, o que também é um ponto polêmico ante a pluralidade de envolvidos no procedimento.
Para além das dificuldades econômico-financeiras (principais fatores da crise empresária), uma reestruturação empresarial também deve perpassar pela adoção de medidas reorganizionais estruturais. O caráter multifacetado e complexo do processo de turnaround (que corriqueiramente passa por providências plurais como cessões de créditos, desmobilização do ativo, constituição de UPI, dentre outras), exige um controle efetivo do ponto de vista fiscalizatório e de gestão, tanto das próprias sociedades recuperandas como dos demais stakeholders, que ofereça segurança jurídica as operações de remodelagem corporativa.
Mas como ter este nível de governança, se ainda somos apegados às instituições tradicionais que, por um lado, conferem confiança aos procedimentos, mas, por outro lado, são centralizadoras, custosas e burocráticas? E se tivéssemos uma nova roupagem estrutural, acompanhando esta disrupção tecnológica que vivemos a partir da Quarta Revolução Industrial<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>? É o que pretendemos propor.
Atualmente, muito tem se falado sobre blockchain<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> (a mãe da tecnologia descentralizada), criptoativos, metaverso, para se restringir apenas às disruptecnologias mais conhecidas. Dentro dessas inovações relacionadas, há a figura da Decentralized Autonomous Organizations (DAO)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> (em tradução livre, “Organizações Autônomas Descentralizadas”), que representa verdadeiras estruturas de “sociedade”, cujas decisões são tomadas de forma descentralizada e em formato de votação dos seus membros, os quais detém tokens de governança<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Esses tokens de governança (também chamados de tokens de utilidade) visam conceder ao seu portador determinados direitos políticos, de acordo com as regras pré-definidas através de protocolos criptografados na blockchain. A partir dos smart contracts<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, pode-se estabelecer criptograficamente diversos níveis de governança aos tokens e seus portadores, escalonando as deliberações através de hierarquia tokenizada tematicamente, enquanto detentores de níveis inferiores teriam apenas a visibilidade do que um determinado grupo decidiu.
A ideia de trazer esses conceitos neste artigo não tem o propósito de discutir utopicamente sobre os mainstreams, até porque, tecnicamente, foram criados dentro de um contexto de mundo não analógico e com conceitos de uma sociedade diferente da que estamos inseridos, em estruturas de comunidades borderless e descentralizadas.
A relação que se propõe entre as ferramentas para reorganização de empresas em crise e DAOs é a de que, em ambas, a decisão é tomada com base na manifestação de vontade dos seus participantes. São os interesses coletivos que legitimam as decisões em um procedimento de reestruturação. Admitir a utilização de tokens de governança em processos de turnaround é automatizar uma etapa essencial para a eficiência dos procedimentos de insolvência, concedendo permissões e acessos de governança para cada um dos envolvidos, de acordo com a sua classificação ou qualidade dentro do procedimento de recuperação (recuperanda, credores, administrador judicial).
Por lidar com múltiplos interesses, é frequente um processo de recuperação judicial (por exemplo), enfrentar obstáculos para o seu regular andamento em razão de discussões que dizem respeito a determinado credor, grupo de credores ou classe, inviabilizando, até mesmo, o cumprimento de um plano de recuperação judicial. Com a aplicação de tokens de governança, seria possível superar essas barreiras através de critérios e graus de criptografia que determinem os “poderes políticos” de cada credor ou classes, dentro dos limites legais, produzindo-se eficiência e celeridade à reestruturação empresarial, independentemente de recursos ou discussões protelatórias.
Os tokens de governança podem trazer autonomia aos procedimentos de reestruturação, tanto do ponto de vista dos credores (para o cumprimento das obrigações estipuladas em um plano de recuperação), quanto das recuperandas (para a superação das vicissitudes relacionais inerentes aos procedimentos de turnaround). O mecanismo “token” confere automatização ao cumprimento das obrigações, superando incidentes desnecessários e que criam um verdadeiro caos aos processos, entregando eficiência e otimização na forma como hoje são operacionalizadas as recuperações judiciais. A própria assembleia geral de credores, órgão deliberador do destino da companhia em crise, que hoje conta com o ambiente virtual como principal formato democratizador, poderia contar com a tokenização como instrumento para encetar segurança jurídica às votações, uma vez que todos os registros históricos são criptograficamente escriturados na blockchain, de forma imutável.
Longe de se esgotar a temática quanto a natureza e estrutura jurídica dos tokens, tem-se este artigo como um germinar para fomentar novos formatos e ideias visando a melhoria dos processos de insolvência, no intuito de se alcançar os princípios norteadores da Lei Recuperacional, especialmente quanto a amalgamar a proteção dos interesses coletivos e a preservação da empresa. Diante desta verdadeira irrupção sócio-tecnológica que vivenciamos, cabe a nós, como operadores do direito e formadores de opinião, acompanhar (mesmo que em um ritmo não tão acelerado como o das tecnologias disruptivas) esses fenômenos da sociedade, remodelando a roupagem das ferramentas de turnaround.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para citar apenas dados de Reestruturações Judiciais, segundo levantamento da Serasa Experian, houve um aumento de 60% nos requerimentos de Recuperação Judicial no período de fevereiro a março de 2022. (SERASA EXPERIAN. Indicadores econômicos. Disponível em: &lt; <a href="https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/&gt;">https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/&gt;</a>. Acesso em: 12 mai. 2022)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 1ª edição, 2018.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para aprofundamento acerca do conceito de “blockchain” ver: WERBACH, Kevin. The blockchain and the new architecture of trust. Cambridge, MA: MIT Press, 2018.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “DAO are an effective and safe way to work with like minded folks around the globe (..) like a (..) business that’s collectively owned and managed by its members. They have built-in treasuries that no one has the authority to access without the approval of the group. Decisions are governed by proposals and voting to ensure everyone in the organization has a voice […]” ETHEREUM.org. Decentralized autonomous organizations (DAOs). Disponível em: &lt;<a href="https://ethereum.org/en/dao/">https://ethereum.org/en/dao/</a>&gt; Acesso em 16 mai. 2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nesse artigo não se espera discutir conceitos técnicos ou mesmo funcionalidades dos denominados tokens, que nada mais são do que unidades de valor (no caso dos tokens de governaça, valor político), mas apenas apresentar de forma ampla o conceito dessas tecnologias, a fim de fomentar a discussão no universo jurídico empresarial. Para o aprofundamento sobre o funcionamento de DAOs e Governance Tokens, ver: SHUTTLEWORTH, David. What Is A DAO And How Do They Work? In: Consensys, 07 out. 2021. Disponível em: &lt;<a href="https://consensys.net/blog/blockchain-explained/what-is-a-dao-and-how-do-they-work/">https://consensys.net/blog/blockchain-explained/what-is-a-dao-and-how-do-they-work/</a>&gt;. Acesso em 16 mai. 2022.
CRYPTOPEDIA. How DAO Frameworks Can Facilitate DeFi Governance. 30 nov. 2021. Disponível em: &lt;<a href="https://www.gemini.com/cryptopedia/dao-crypto-decentralized-governance-blockchain-governance#section-what-is-a-dao">https://www.gemini.com/cryptopedia/dao-crypto-decentralized-governance-blockchain-governance#section-what-is-a-dao</a>&gt;; &lt;<a href="https://ethereum.org/en/eth/#tokens">https://ethereum.org/en/eth/#tokens</a>&gt;. Acesso em 16 mai. 2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Sobre Smart Contracts ver o white paper de SZABO, Nick. Smart Contracts: Building Blocks for Digital Markets. 1996. Disponível em:&lt;<a href="https://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart_contracts_2.html">https://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/smart_contracts_2.html</a>&gt;. Acesso em 16 mai. 2022.

amy-hirschi-szrJ3wjzOMg-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Empresários brasileiros têm procurado cada vez mais alternativas para lidar com instabilidades econômicas

Descentralizar para reestruturar: tokens e governança

Tokens de governança podem trazer autonomia aos procedimentos de reestruturação, tanto aos credores quanto às recuperandas