Igor Pereira Oliveira

Rafael Albuquerque da Silva

No ano passado, a transformação digital do setor público, que já era um movimento relevante em âmbito federal, foi alçada ao status de política nacional do Estado brasileiro com a edição da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14129.htm">Lei 14.129/2021</a>[1], a chamada Lei do Governo Digital. 
A desburocratização, a simplificação da relação do poder público com a sociedade, a transparência na execução dos serviços públicos, o incentivo à participação social no controle e na fiscalização da administração pública, a possibilidade de os usuários demandarem e acessarem serviços públicos por meio digital sem necessidade de solicitação presencial e o apoio técnico aos entes federativos para implantação e adoção de estratégias que visem à transformação digital da administração pública são princípios e diretrizes reforçados por esse importante instrumento normativo.
A relevância dessa política pública para o país é reconhecida também pelos órgãos de controle. Recentemente, o Tribunal de Contas da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">TCU</a>) elaborou Relatório de Levantamento que indicou, entre outros aspectos: o estágio ainda inicial dos entes da Federação pesquisados quanto à adoção de ações de transformação digital; a carência de apoio técnico para incrementar suas iniciativas; e a falta de financiamento oferecido pelo governo federal ou de recursos próprios para tal finalidade. Com base nessa fiscalização, que deu origem Acórdão TCU 2.004/2022-Plenário, o TCU autorizou a realização de auditoria operacional para avaliar os serviços públicos transformados digitalmente prestados pelo governo federal. 
Essas dificuldades constituem apenas alguns exemplos de desafios enfrentados pelo setor público para a construção de um Estado efetivamente digital. Tais desafios incluem, ainda, os diferentes níveis de desenvolvimento digital entre as regiões do país, bem como as deficiências de interoperabilidade de dados entre órgãos públicos.
Vale ressaltar que a administração pública deve participar, de maneira integrada e cooperativa, da consolidação da Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD, art. 15 da Lei 14.129/2021), e que o Decreto 10.332/2020[2] instituiu a Rede Nacional de Governo Digital - Rede Gov.br, de natureza colaborativa e adesão voluntária, no âmbito da União, dos estados, do DF e dos municípios.
A propósito, a transformação digital do país exige a implementação de práticas de governança multinível, “quando não há competência exclusiva ou hierarquia estável de autoridade”, se assentando “na colaboração interfederativa, em que há partilha de responsabilidades entre diferentes atores”, em um “ambiente que exige contínua cooperação e fortalecimento da capacidade institucional de atuar de forma coordenada no ciclo das políticas públicas descentralizadas”.[3]
O Banco Mundial tem elogiado a atuação do Brasil em relação ao tema[4], ressaltando o foco em políticas e serviços centrados no cidadão, com o objetivo de transformar o Estado em um provedor de serviços que busca entender as necessidades dos usuários dos serviços e oferece valor e uma boa experiência de usuário para cidadãos, empresas e organizações da sociedade civil.
Contudo, até o momento, o governo federal tem enfatizado a digitalização dos serviços existentes em detrimento da verdadeira transformação digital (<a href="https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/servlet/INPDFViewer?jornal=515&amp;pagina=187&amp;data=01/10/2021&amp;captchafield=firstAccess">Acórdão TCU 3.145/2020-Plenário</a>), fato que, embora contribua para a eficiência, não é o ideal do ponto de vista de atendimento das necessidades dos usuários. Isso porque, enquanto a digitalização se trata de conversão simples do processo analógico para sua versão digital, mais rápida e menos custosa, a transformação digital permite que o processo de trabalho se torne ainda mais eficiente e, possivelmente, mais intuitivo, com foco na experiência do usuário.
Outro desafio decorrente do movimento da transformação digital é a possível elevação das desigualdades sociais. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem destacado algumas consequências da instabilidade provocada pelo mundo digital[5]:
<blockquote class="jota-article__citation">“But the benefits of these new technologies also come with challenges. Digitalization poses several social and economic threats, including, but not limited to, lower labour demand for some tasks, digital inequality and exclusion, cybercrime and the related theft of financial resources and personal information, transfer of decisionmaking powers to machines, digital power concentration, digital addictions and violence, and reduced personal life security. One of the most serious challenges of digitalization is digital inequality. Poor people and those with existing mental disorders have a higher probability of being digitally excluded, which potentially increases inequalities in other areas".</blockquote>
Sobre este ponto, destacam-se quatro trabalhos do TCU (Acórdãos 326/2022, 1.299/2021, 1.309/2021 e 1.784/2021, todos do Plenário). O primeiro teve como foco o Programa de Inovação Educação Conectada (PIEC), instituído pelo Decreto 9.204/2017, por ser considerado a principal ação em vigor do governo federal para a instrumentalização da política de transformação digital na educação básica. Evidenciaram-se desafios para a governança pública educacional referentes à coordenação entre os formuladores e executores de políticas públicas, entre União, estados e municípios.
O segundo buscou identificar o planejamento e a oferta de cursos pelas instituições federais de ensino (Ifes) ante as necessidades decorrentes do processo de transformação digital no setor produtivo, bem como as ações do Ministério da Educação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/mec">MEC</a>) relativas ao tema, com ponderações sobre o aprofundamento do analfabetismo funcional, da exclusão social, da miséria e do desemprego.
O terceiro, por sua vez, ressaltou a insuficiência da atuação do Estado como indutor de qualificação profissional para atender ao mercado de trabalho em função dos desafios decorrentes da transformação digital.
O último avaliou a governança da transformação digital em prol da desburocratização dos serviços públicos e sinalizou que deficiências na educação digital dos cidadãos podem levá-los a não utilizar, adequadamente, os serviços públicos digitais prestados pelo Estado.
Portanto, é preciso reconhecer que muito já foi feito em termos de transformação digital no país, em especial no âmbito do governo federal. Por outro lado, tendo em vista os riscos de elevação das desigualdades regionais, em um contexto de uma desafiadora governança multinível, o governo federal precisa avançar na Estratégia Nacional de Governo Digital prevista na Lei 14.129/2021, sem perder de vista as contribuições do controle externo federal para a transformação digital do setor público brasileiro.
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Eventuais opiniões são pessoais e não expressam posicionamento institucional do TCU.
<hr />
[1] Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública.
[2] O Decreto 10.332/2020 instituiu a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
[3] Conceito do Referencial para avaliação de governança multinível em políticas públicas decentralizadas, disponível em <a href="https://portal.tcu.gov.br/referencial-para-avaliacao-de-governanca-multinivel-em-politicas-publicas-descentralizadas.htm">https://portal.tcu.gov.br/referencial-para-avaliacao-de-governanca-multinivel-em-politicas-publicas-descentralizadas.htm</a>.
[4] Publicação “GovTech Maturity Index. The State of Public Sector Digital Transformation”, disponível em <a href="https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/36233">https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/36233</a>, recentemente citada em matéria do JOTA.
[5] Relatório do Desenvolvimento Humano 2021/2022, disponível em <a href="https://hdr.undp.org/content/human-development-report-2021-22">https://hdr.undp.org/content/human-development-report-2021-22</a>.

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JOTA

Um olhar para aspectos da governança multinível e para os riscos de elevação das desigualdades regionais


Desafios da transformação digital no Brasil

A relevância das políticas públicas envolvendo a transformação digital para o país é reconhecida também pelos órgãos de controle