Beatriz Kira
Professora de Direito na Universidade de Sussex. Doutora em Direito Econômico pela USP e mestra em Ciências Sociais da Internet pela Universidade de Oxford
A regulação de plataformas digitais — agentes econômicos cujo papel e atuação no capitalismo hoje têm sido objeto de discussão em todo o mundo — será objeto de atenção no novo governo Lula. O relatório final da equipe da transição, no entanto, deixa poucas pistas sobre qual será a agenda do Executivo federal nesse campo. Ainda há pouca clareza acerca de como os diferentes órgãos criados pela nova administração - incluindo a Assessoria Especial de Direitos Digitais, do Ministério da Justiça, e a Secretaria de Serviços e Direitos Digitais, do Ministério das Comunicações, irão dividir competências e interagir com instituições já existentes, tais como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).Tampouco se sabe, a esta altura, qual será o conteúdo substantivo - isto inclui a própria definição do que é uma plataforma digital e o conjunto de obrigações que vincula esse ator econômico - da regulação digital no Brasil.
Para contribuir com o debate inauguramos, com este artigo, uma série de textos que abordam desafios não triviais para a regulação das plataformas digitais. Nosso foco será as grandes plataformas - as chamadas Big Tech -, que estão no centro do debate por conta de seu grande poderio (econômico e político) e da capilaridade e centralidade, na vida contemporânea, de seus serviços. Tais elementos tornam essencial a discussão sobre sua disciplina regulatória no contexto em que vivemos, uma economia da informação catalisada pela tecnologia, pela datificação e por novas relações de dependência entre agentes econômicos.
A série de artigos abordará quatro áreas nas quais há crescente atividade regulatória e que, acreditamos, merecem discussão aprofundada. Neste primeiro texto discutiremos o combate à concentração econômica e o fomento à concorrência. No próximo artigo, abordaremos iniciativas relacionadas à responsabilidade, transparência, e moderação de conteúdo em plataformas digitais. Em seguida, na terceira coluna, trataremos da proteção de dados pessoais e da agenda regulatória da ANPD, que desde o ano passado atua como autarquia. Por fim, no texto final da série, discutiremos a regulação da inteligência artificial, um tema que não se limita às plataformas digitais, mas que ganha contornos (e preocupações regulatórias) específicos quando delas se trata.
Há crescente consenso entre juristas e economistas de que são necessários novos instrumentos regulatórios para lidar com o tamanho e o poder de mercado das grandes plataformas digitais. Elas apresentam particularidades que tornam os mercados nos quais atuam mais propensos à concentração, tornando certas ferramentas típicas do direito antitruste menos efetivas ou adequadas para promover a concorrência. Diante desse desafio - e em reconhecimento da importância de derrubar barreiras à entrada e fomentar a competição e a inovação em mercados digitais - diversos países têm se dedicado ao desenho de novas regras pró-competitivas.
Uma tendência comum a essas novas propostas regulatórias é o caráter assimétrico das regras, com a introdução de novas obrigações ex ante (predefinidas), obrigações essas que se aplicam apenas a alguns agentes do mercado considerados mais preocupantes por conta da posição estratégica que ocupam em ecossistemas digitais. Tais iniciativas podem ser descritas como "antitruste assimétrico", uma ferramenta híbrida na caixa de ferramentas do direito econômico, constituída por regras que buscam o fomento ou a promoção da concorrência, mas que têm conteúdo regulatório ou quase-regulatório. Ou seja, proposições lastreadas na aplicação de pressupostos, teorias, presunções, testes ou remédios típicos do antitruste, mas que adotam conceitos e estratégias típicos da regulação setorial.
Várias jurisdições têm buscado no antitruste assimétrico soluções para lidar com o desafio da concentração em mercados digitais. Nos EUA, a iniciativa bipartidária American Innovation and Choice Online Act (AICOA, S.2992), proposta no início de 2022, almeja dar às agências antitruste federais competência para impor penalidades civis e conceder medidas liminares contra as chamadas "plataformas cobertas" - designadas com base no número de usuários, faturamento e quando atuam como “parceira comercial crítica” de usuários comerciais. A proposta regulatória veda certas condutas das plataformas cobertas, incluindo dar preferência a seus próprios produtos (self-preferencing), limitar injustamente a disponibilidade de produtos concorrentes de outra empresa, ou discriminar na aplicação dos termos de serviço entre usuários em situação semelhante, entre outras obrigações. O projeto de lei avançou nos comitês do Judiciário da Câmara e do Senado, mas não conseguiu apoio para ser votado no plenário de qualquer uma das câmaras antes do encerramento do 117º Congresso. O projeto não foi incluído entre as prioridades para 2023.
Enquanto as iniciativas dos EUA não foram capazes de superar obstáculos políticos, do outro lado do Atlântico uma iniciativa similar virou lei no final de 2022. Na vanguarda da regulação digital, a União Europeia adotou uma das mais detalhadas regulações do tipo "antitruste assimétrico", com a aprovação do Digital Markets Act (DMA). Com a nova lei, plataformas que controlam infraestruturas ou insumos-chave - chamadas de gatekeepers e identificadas a partir de critérios quantitativos (incluindo faturamento e número de usuários) e qualitativos (relacionados ao tipo de serviços prestados) - ficaram sujeitas a uma série de novas obrigações. Dentre elas, estão regras para garantir que plataformas gatekeepers assegurem, seguindo critérios equânimes, a interoperabilidade com outros serviços e atores econômicos, bem como regras que facilitem a portabilidade de dados e a migração de usuários de um serviço para o outro.
Com a entrada em vigor do DMA, a Comissão Europeia se volta agora à crucial fase de implementação da nova lei, que começará a ser aplicada em maio deste ano. A eficácia de qualquer nova regulação, principalmente no campo de novas tecnologias, em constante evolução, dependerá de forma significativa da forma pela qual ela será regulamentada e implementada. No caso do DMA, a proposta de regulamentação apresentada pela Comissão Europeia busca criar procedimentos, regras de participação, garantias procedimentais e segurança jurídica pelas quais a lei ou o diploma original ganhará mais concretude na aplicação cotidiana. Esse será um processo importante para as autoridades brasileiras (bem como acadêmicos e práticos) acompanharem, dado o impacto que o DMA terá não apenas no mercado europeu, mas em toda a economia digital.
Muito se fala do efeito Bruxelas (Brussel's effect), termo cunhado pela professora Anu Bradford para descrever a influência de leis aprovadas pela União Europeia para além das fronteiras do mercado europeu, ao moldarem os modelos de negócios de empresas multinacionais. Para além do movimento de harmonização capitaneado pelo setor privado, é inegável a influência exercida pela burocracia europeia em legisladores e formuladores de políticas públicas em outras jurisdições.
A tramitação do DMA foi acompanhada de perto em diferentes países, servindo de inspiração também aqui para um projeto de lei (PL 2768/2022) proposto pelo deputado João Maia (PL/RN) ao Congresso brasileiro em 2022. A proposta dá à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) competência para regular o funcionamento e a operação de plataformas digitais, e tem clara inspiração na proposta AICOA dos EUA no DMA da União Europeia, marcos legislativos mencionados na justificativa do PL.
O projeto de lei tem como foco as plataformas digitais "que detenham poder de controle de acesso essencial", designadas apenas a partir de critérios quantitativos, quando possuírem receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões no mercado brasileiro. Tais plataformas estarão sujeitas a obrigações de transparência, tratamento isonômico e não discriminatório na oferta de serviços, entre outras. O PL prevê também a possibilidade de a Anatel determinar separações funcionais e contábeis das linhas de negócios das plataformas - remédios conhecidos como “break up” - bem como de adotar outras medidas de mitigação a eventual abuso de poder econômico, incluindo obrigações de portabilidade de dados e de interoperabilidade. Ademais, o PL estabelece sanções em caso de violação das obrigações, incluindo a imposição de multa de até 2% do faturamento, suspensão temporária, ou proibição das atividades das plataformas.
O PL 2768/2022 - apelidado de DMA brasileiro - inaugurou no Brasil um debate legislativo que já está em fases mais avançadas em outras jurisdições. No entanto, o texto proposto não foi submetido ao debate público, tampouco ao escrutínio de especialistas, essenciais para que as opções regulatórias sejam apresentadas e justificadas. Para além dos critérios de designação das plataformas e das obrigações às quais elas estariam sujeitas, falta - e isso é uma ausência importante - reflexão acerca da futura implementação da lei.
Se o desafio de implementação já é complexo na União Europeia, o será ainda mais no Brasil se e quando o PL 2768/2022 ou projetos análogos (que podem ser propostos na nova legislatura) avançarem. Por exemplo, falta clareza quanto à escolha institucional da Anatel como órgão regulador de plataformas digitais, bem como em relação à forma pela qual a agência, no exercício do novo poder regulatório e de supervisão de poder econômico, se relacionaria com o CADE e com o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência como um todo.
A questão do desenho institucional não é secundária nem trivial. O CADE já vem examinando casos de disputas concorrenciais envolvendo plataformas digitais - incluindo o caso Google Shopping, julgado em diversas jurisdições e que foi arquivado pela autarquia brasileira após intenso debate em 2019. Casos antitruste que tenham relação com as dinâmicas específicas e complexas dessas plataformas digitais tendem a se tornar cada vez mais comuns.
O ano de 2023 já começou com atividade nessa área, com a abertura de inquérito administrativo para investigar a Apple por abuso de poder dominante. Se o CADE, órgão maduro e com estabelecida experiência no combate à concentração de poder econômico, navega com cautela nessas águas pouco conhecidas, outros órgãos precisarão construir capacidades institucionais robustas para lidarem com desafios semelhantes (além de, certamente, estabelecer relações de trabalho e diálogo institucional com a autoridade antitruste).
Nos próximos artigos vamos tratar de outros aspectos do mosaico regulatório que afeta as plataformas digitais. Esperamos que você siga nos acompanhando!