Marcelo Nobre

A bola rolou uma vez mais no campo do Politeama, no bairro do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, em um sábado, debaixo de muita chuva.
Na república popular do Chico, estava, de um lado, o time do craque da letra, dos versos, da música e dono da bola, Chico Buarque de Holanda. De outro, vários craques do Direito, com atuações impecáveis nas tribunas, nas salas de aula, nos pareceres e que se acostumaram a se posicionar nos campos e nas várzeas reais e virtuais, para que a triste tentativa de rebaixamento da democracia brasileira à segunda ou quiçá, terceira divisão, não se concretize.
Com o desafio proposto pelo cantor e compositor, um artista ímpar e um dos maiores gênios musicais da nossa cultura, não tivemos alternativa, a não ser entrar em campo buscando defender as garantias fundamentais da cidadania, tão vilipendiadas neste momento complexo e contraditório da nossa história.
Assim como o nosso anfitrião desafiante, vestimos a camisa da defesa intransigente do Estado Democrático de Direito e fomos para o jogo. É importante destacar que o nosso time não tem cores nem distintivos. A nossa missão, enquanto operadores do Direito, era representar nesta partida os craques que não descuidam da defesa e sempre jogam para a frente, almejando o bem da nossa pátria amada e salvaguardando os direitos inegociáveis, conquistados à custa de muitas vidas, e consolidados na nossa Constituição cidadã como o maior mandamento de proteção a todo e qualquer brasileiro.
Acreditamos no fair play, esse conceito importado que traduz o famoso “espírito esportivo”, como condição indispensável para um jogo limpo dentro das quatro linhas do campo, bem como dentro das linhas das esferas da vida pública e privada.
Entendemos que, num embate, seja jurídico ou futebolístico, as regras devem ser rigorosamente respeitadas e todos têm de assumir o compromisso inequívoco de não trapacear e de não cometer faltas desleais aos adversários ou opositores, apenas porque não são do mesmo time ou por pensarem diferente.
O apito inicial e os demais ecoados durante a partida só merecem o ar dos pulmões quando as condições de igualdade estão presentes. E, na esfera jurídica, isso significa não aceitar ataques às garantias legais que conferem as condições para o exercício pleno do direito de defesa, que é, em essência, assegurar que um acusado responda a um processo justo e tenha a oportunidade de provar a sua inocência, tal como estabelecido pela Constituição Federal. Não se pode aceitar uma condenação antecipada ao processo e não podemos deixar de reiterar que o ônus da prova cabe a quem acusa.
Importante esclarecer, para desfazer uma constante confusão, alimentada propositalmente por alguns, que o advogado nunca defende o crime ou qualquer conduta criminosa. O advogado tem o dever de lutar pela preservação de valores civilizatórios fundamentais, dentre os quais está a proteção jurídica inerente a qualquer pessoa. Já dizia o saudoso advogado criminalista Evaristo de Morais Filho, “o grande cliente da advocacia é a dignidade da pessoa humana".
Entendemos o clamor da sociedade por justiça, especialmente neste momento de instabilidade política e econômica em que os conflitos se acirram e a violência explode. Compreendemos também que haja por parte da população um sentimento de “acerto de contas”, quando assiste à prisão de figurões da política e de executivos de grandes empresas nacionais. Mas é nosso dever apontar para os riscos de acreditar que a privação de liberdade, por meio de prisões cautelares ou decorrentes de condenação, seja a concretização da justiça. O perigo que a imprudência e a parcialidade no desejo de punir ocasionam é grave. A justiça, sem a observância ao devido processo legal, é mero justiçamento e, como se diz no jargão do futebol, é mais do que falta para cartão: é caso de anulação do jogo.
O mestre Rui Barbosa já alertava para o quão imperiosa é nossa missão em tempos turbulentos, ao dizer que “o advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresentando perante os tribunais o caráter supremo dos homens livres”.
Quando se atacam as garantias de um indivíduo, seja ele quem for, põe-se sob ameaça todo o Estado Democrático de Direito. Por isso, quando um advogado luta pelo direito de defesa de seu cliente, bem como pelas prerrogativas concedidas a ele pela lei, ele o faz em prol de toda a sociedade e de cada um dos brasileiros.
Importante ressaltar que nosso time apoia toda e qualquer ação e operação de investigação e combate à corrupção. Mas não podemos assistir da arquibancada, como se entretenimento fosse, que, sob os holofotes da mídia, agentes públicos, submetidos às normas como quaisquer outros, desrespeitem flagrantemente as prerrogativas da defesa decorrentes da lei. É inquestionável a realização de todas as investigações, mas respeitando as leis e estabelecendo um processo justo para todos os investigados.
[caption id="attachment_101125" align="alignnone" width="351"]<img class=" wp-image-101125" src="/wp-content/uploads/2017/11/WhatsApp-Image-2017-11-19-at-18.47.00-e1511124849876-300x181.jpeg" alt="" width="351" height="212" /> As braçadeiras dos dois times[/caption]
Queremos entrar em campo estimulados pela certeza de que valerá a pena suar a camisa e disputar cada passe, cada lance, na medida em que não haverá qualquer tipo de violação às regras, de que não haverá trapaça ao exercício da defesa e ao devido processo legal, e de que o resultado do jogo não será estabelecido antecipadamente, conforme o desejo pessoal daquele que apita e controla o tempo do jogo.
O nosso time é composto majoritariamente por uma geração que vivenciou a redemocratização, depois de um período sombrio de terríveis afrontas às liberdades individuais. Um período que devemos ter sempre na memória para afastar do horizonte. Temos a obrigação de preservar as conquistas de todos aqueles que resistiram ao autoritarismo, colocando em risco as suas vidas para pavimentar o caminho de uma nova história para a nossa Nação. Omitirmo-nos neste momento, admitindo qualquer retrocesso, seria um inaceitável e vexatório W.O.
Na partida simbólica do sábado 11/11/2017 o placar terminou em um surpreendente 6X5. Placar de Supremo Tribunal Federal. Consta que o Chico fez o gol da vitória a favor do Politeama, mas tenho para mim que saímos todos vitoriosos e fortalecidos. Foram 11 gols pela democracia, pelo respeito à liberdade e pelo funcionamento pleno do Estado de Direito.
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Marcelo Nobre, jogador do time Prerrogativas Futebol Clube – PFC. Advogado. Foi membro do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por dois mandatos (2008-2012).

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Democracia em jogo

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