Clara Mota

Gabriel Pimenta Alves

A Constituição brasileira, ao encampar o modelo presidencialista, o fez com grande concentração de atribuições, criando um centro gravitacional de poder na Presidência da República. As inúmeras matérias que são de iniciativa legislativa privativa do Presidente e a execução orçamentária bastante livre demonstram que, em nossa democracia, o poder de agenda está centrado no Executivo, isto é, a proposição, o timing e a coordenação da deliberação congressual passam pelo Planalto, não importa quem o ocupe.
Esse poder de agenda se legitima democraticamente pela discussão dos programas de governo nas eleições. Ainda que esses documentos não sejam debatidos tão minuciosamente na propaganda eleitoral, quem vota sabe se a agenda do seu candidato a Presidente tende ao social ou ao liberal, pactuando pontos centrais como a reforma ou não da previdência, programas sociais a serem mantidos ou abolidos ou ainda se permanecerá uma determinada política macroeconômica fundante. É nesse contexto que os candidatos se apressam em esclarecer, por exemplo, se manterão ou não a política de metas de inflação ou os programas sociais.
Com o avanço do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, a eventualidade de um novo comando traz à tona a necessária discussão programática. Circula amplamente um documento intitulado “Uma Ponte para o Futuro”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que constituiria a agenda central do Vice-Presidente Michel Temer na hipótese de vir a assumir a Presidência da República. Tal documento foi produzido pela Fundação Ulysses Guimarães no final do ano de 2015 e, convidando a nação a “integrar-se nesse sonho de unidade”, passou a ser tratado pelos políticos e pela imprensa como um “programa de governo”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> até o momento pouco conhecido e debatido pela sociedade brasileira.
Como “Uma Ponte para o Futuro” é um “programa de governo” muito diferente daquele pregado pela chapa eleita e é ainda substancialmente distinto do programa do candidato derrotado, Senador Aécio Neves (PSDB-MG)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, ou seja, foge completamente de tudo que foi discutido nas eleições de 2014, surgem questões quanto à possibilidade de um Vice-Presidente, em caso de sucessão, se desvincular completamente do programa registrado em nome de sua chapa, bem como quanto à agenda que pode governar o Brasil e  o impacto dela para a democracia.
Essas perguntas são relevantes para o controle por parte do cidadão dos desdobramentos do eventual futuro governo. Um programa não submetido minimamente ao escrutínio democrático deve, pelo menos, se abrir ao maior controle social, à crítica e à participação direta. Há pouco tempo para isso, considerando a velocidade dos acontecimentos políticos, mas temos que tentar um exercício que Bruce Ackerman chega a chamar de “democracia coercitiva”, pois “se a maioria das pessoas não leva a política nacional a sério, simplesmente devemos forçá-las a prestar atenção”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Sobre a primeira indagação acerca da liberdade programática do Vice-Presidente, cabe lembrar que a Constituição de 1946 previa chapas separadas para eleição do Presidente e Vice (art. 81), o que resultou na vitória da candidatura de Jânio Quadros para a Presidência, apoiado por uma coligação composta por partidos conservadores, e de João Goulart, sucessor político de Getúlio Vargas e defensor da reforma agrária e urbana e da nacionalização da economia, como seu Vice. A renúncia de Jânio Quadros e a sua sucessão por político com vinculações ideológicas e programa de governo tão diversos, aliada a outros fatores históricos, foi uma das razões da instabilidade política e social tão profunda que culminou no golpe militar de 1964.
Na tentativa de evitar esse risco de que a sucessão de um Presidente eleito importasse numa subversão tão profunda da vontade expressa nas urnas, a Constituição de 1988 previu expressamente que “a eleição do Presidente da República importará a do Vice-Presidente com ele registrado” (art. 77, § 1º), dando ao Vice-Presidente o papel de auxiliar do titular do cargo “sempre que por ele convocado para missões especiais” (art. 79, par. único). Por conseqüência, quando a lei<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> estabelece como requisito do registro de candidatura dos postulantes à Chefia do Executivo a apresentação das propostas defendidas, tal exigência é única por chapa, já que o Vice-Presidente, como auxiliar do titular, a elas se vincula.
Assim, apesar de não ser usual em outras democracias que um Vice-Presidente atue deliberadamente voltado ao afastamento da titular do cargo, sua eleição na mesma chapa, em alguma medida, o vincula (ou deveria vincular) ao programa apresentado no Tribunal Superior Eleitoral para registro da candidatura.
No entanto, o prenúncio é de alteração substancial do programa político da chapa eleita em 2014. A “Ponte para o Futuro” caracteriza-se por ser uma agenda marcadamente liberal, mesmo se comparada com o programa do principal candidato de oposição derrotado nas urnas, o Senador Aécio Neves (PSDB-MG)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Os principais pontos do documento com reflexos jurídicos e impactos democráticos são os seguintes:
- Orçamento: o programa prega que o Brasil passe a ter um “orçamento verdadeiro”, com o fim de todas as vinculações. Segundo o plano, para isso, “é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas”. Ou seja, o programa de governo do Vice-Presidente prevê expressamente a necessidade de acabar com a vinculação do orçamento para as áreas da saúde e da educação, acabando com o que é considerado um avanço na execução dessas políticas e uma opção constitucional prioritária.
- Desindexação de benefícios previdenciários e programas sociais: este ponto do documento afirma que a garantia de manutenção do valor das rendas pagas pelo Estado “na maioria das vezes prejudica as camadas mais pobres da sociedade”, o que soa, no mínimo, contraditório. Com exceção da aposentadoria, que é paga em razão do preenchimento das condições de contribuição e idade, as outras rendas, em especial o amparo social a pessoas carentes e o bolsa-família, têm como fundamento exatamente a situação de pobreza do beneficiário. O plano também é contra a manutenção do valor real dos benefícios previdenciários e programas de transferência de renda, entendendo ser inadmissível o aumento real desses programas, como se nota da leitura desse trecho: “quando a indexação é pelo salário mínimo, como é o caso dos benefícios sociais, a distorção se torna mais grave, pois assegura a eles um aumento real”.
Numa primeira leitura, essas propostas caminham para um retrocesso social, pois as políticas de valorização real do salário mínimo decorreram da necessidade de adequá-lo, paulatinamente, à previsão constitucional de que seu valor seja capaz de atender as necessidades vitais básicas dos indivíduos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Apesar de o salário mínimo no Brasil ainda não ter alcançado valor suficiente para o cumprimento da Constituição neste ponto, a manutenção da política de aumento real faz com que se aproxime cada vez mais do patamar adequado. Em relação aos benefícios previdenciários ou programas assistenciais destinados à manutenção de quem não possui outra renda, é de duvidosa constitucionalidade defender que seu valor seja inferior ao salário mínimo.
- Recall de programas estatais: consta na “Ponte” a criação de um Comitê que deve avaliar anualmente todos os programas estatais. Não há indicativo de representantes da sociedade civil no comitê, “que poderá sugerir a continuação ou o fim do programa, de acordo com os seus custos e benefícios”. Fica um tanto obscurecida a relação entre os programas escolhidos pela população na eleição e os que serão mantidos, bem como os critérios que serão utilizados na avaliação. O que pesará afinal? Gastos? Eficiência? Qual a pluralidade e legitimidade democrática do citado Comitê? Essa última pergunta ressoa com mais gravidade porque o “programa de governo” ora debatido não foi votado nas eleições e se dispõe a reavaliar todos os projetos em curso na administração federal;
- Controle da inflação e independência do Banco Central: o programa acena com a possibilidade de intervenção política no Banco Central, ao dispor que a magnitude e o vulto dos efeitos da política cambial levam a “impor a estas decisões um rito mais republicano e representativo”, isto é, a política cambial não estaria sujeita apenas a critérios técnicos, mas também ao influxo político. Quanto à inflação, o plano indica que seu controle pode se fazer em detrimento dos benefícios previdenciários e dos programas sociais, ao dispor que “se para manter o poder de compra dos que recebem rendas do Estado deixamos a inflação fora de controle ou muito alta, estaremos penalizando a grande maioria da população”, em que pese o ônus dessa opção recair exatamente sobre a parcela mais pobre da sociedade.
- Desestatização: o programa dispõe que a política de desenvolvimento pode resvalar nas “transferências de ativos que se fizerem necessárias”, bem como em concessões amplas em todas as áreas de logística e infra-estrutura e retorno ao regime anterior de concessão de petróleo;
- Flexibilização de leis trabalhistas: a idéia aqui é a de “permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos”. Não há explicação quanto à relação dos direitos que serão considerados “básicos” nem tampouco se haverá uma desconstitucionalização de direitos sociais, vistos majoritariamente como fundamentais tanto quanto os do art. 5º da Constituição Federal. Além disso, não se sabe o alcance efetivo que esta proposta terá diante de uma Justiça do Trabalho há muitos anos institucionalizada e que trabalha com idéias constitucionais contemporâneas como a de vedação do retrocesso em matéria de direitos fundamentais;
- Redução do número de impostos: o programa fala genericamente em desoneração da carga tributária, mas não há qualquer indicativo de desoneração prioritária do consumo e, na linha da preocupação mundial de diminuir a concentração de renda, compensação na carga dos impostos que recaem sobre patrimônio e renda.
Expostas as premissas e apenas a título de exemplo do salto que a “Ponte para o Futuro” proporciona, segundo seu programa eleitoral, o então candidato Aécio Neves pensava em resolver o déficit da previdência de forma muito distinta, através da diminuição da informalidade da economia, crescimento e cadastro único de benefícios. Nenhuma palavra foi dita na linha das reformas que agora são advogadas. Ainda que a política não seja um terreno fértil para a confiança nas promessas de campanha, analisado como um todo, o programa “Uma Ponte para o Futuro” não se põe como uma adaptação dos que foram discutidos nas eleições, mas surge como algo totalmente novo e surpreendente para o eleitor, sobretudo o de baixa escolaridade e renda, que está alijado das discussões e passeatas contra ou a favor do impeachment<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Enfim, a adoção de uma agenda econômica de viés liberal não é problema algum para uma democracia. Contudo, as amplas reformas constitucionais propostas em “Uma Ponte para o Futuro” estão tão longe dos dois espectros programáticos que participaram das eleições de 2014, quando já grassava um cenário recessivo, que soam antagônicas ao processo democrático<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. E há uma explicação para isso. Dilma Rousseff e Aécio Neves buscaram ganhar eleições acirradas. A dinâmica da sucessão dos governos PSDB e PT criou limites implícitos sociais para o primeiro e econômicos para o segundo. Diferentemente, o governo que pode surgir ainda este ano não tem preocupação clara com o futuro respaldo das urnas e com a accountability perante os representados. A “Ponte para o Futuro” é um elemento estranho no diálogo ora em curso, tem efeito de um raio de mudanças que pode cair na Constituição sem que ninguém saiba de onde veio. Quem legitima essa pauta num contexto em que o Vice-Presidente tem 1% das intenções de voto declaradas<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>? Quem se responsabiliza por seus resultados?
Ainda que a Presidente Dilma Rousseff seja acusada de adotar uma política fiscal no seu atual governo distinta das suas promessas eleitorais, o programa “Uma Ponte para o Futuro” vai muito além disso, trazendo uma série de reformas constitucionais profundas que, em outros tempos, todos duvidaríamos da possibilidade de virarem reais, não fosse tão clara a força da aliança entre o Vice-Presidente e o atual Presidente da Câmara dos Deputados demonstrada na votação do impeachment.
No momento em que o país ainda discute saídas para a crise política, o exame do documento “Uma Ponte para o Futuro” é imprescindível, pois o Poder Executivo poderá passar a adotar uma agenda com potencial de efetivação no Congresso não conhecida da população, distante dos debates eleitorais e sem nenhuma legitimidade democrática.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>              Texto disponível em: <a href="http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf">http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf</a>, acesso em 19.04.2016.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>              Nesse sentido, vemos as seguintes reportagens dentre muitas: “Conheça o Plano de Governo de Temer”, Jornal O Dia de 18.04.2016, <a href="http://odia.ig.com.br/brasil/2016-04-18/conheca-o-plano-de-governo-de-temer.html">http://odia.ig.com.br/brasil/2016-04-18/conheca-o-plano-de-governo-de-temer.html</a>; “Ponte para o Futuro: uma análise das conseqüências das 30 propostas do PMDB”, Carta Maior de 31.03.2016, disponível em: <a href="http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Ponte-para-o-Futuro-Uma-analise-das-consequencias-das-30-propostas-do-PMDB/7/35843">http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Ponte-para-o-Futuro-Uma-analise-das-consequencias-das-30-propostas-do-PMDB/7/35843</a>, acesso em 19.04.2016; Com Temer será pior? Uma análise das propostas do Programa “Uma ponte para o futuro”. – InfoMoney, Disponível em:  <a href="http://www.infomoney.com.br/blogs/terraco-economico/post/4829569/com-temer-sera-pior-uma-analise-das-propostas-programa-uma">http://www.infomoney.com.br/blogs/terraco-economico/post/4829569/com-temer-sera-pior-uma-analise-das-propostas-programa-uma</a>, acesso em 19.04.2016.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Texto disponível em: <a href="http://inter01.tse.jus.br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000085/idarquivo/229?x=1406050602000280000000085">http://inter01.tse.jus.br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000085/idarquivo/229?x=1406050602000280000000085</a>, acesso em 19.04.2016.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Cf. Bruce Ackerman, “Nós, o Povo Soberano”, Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 328.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 11, § 1º, IX, da Lei 9.504/97.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Texto disponível em: <a href="http://inter01.tse.jus.br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000085/idarquivo/229?x=1406050602000280000000085">http://inter01.tse.jus.br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000085/idarquivo/229?x=1406050602000280000000085</a>, acesso em 19.04.2016.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a>              Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
&nbsp;
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a>              Cf. pesquisa do Datafolha, disponível em: <a href="http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2015/03/1604284-47-foram-a-avenida-paulista-em-15-de-marco-protestar-contra-a-corrupcao.shtml">http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2015/03/1604284-47-foram-a-avenida-paulista-em-15-de-marco-protestar-contra-a-corrupcao.shtml</a>, acesso em 19.04.2016.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> A propósito, veja-se recente notícia “Reformas impopulares são o sonho de empresários para o governo Temer”, Folha de São Paulo, 18.04.2016, em ‘http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1762190-reformas-impopulares-sao-sonho-de-empresarios-para-governo-temer.shtml’.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Dados da Pesquisa Datafolha de 20.03.2016 para as eleições presidenciais de 2018.

temerle

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JOTA

Os principais pontos com reflexos jurídicos e impactos democráticos do documento que pode ser considerado a agenda central de Michel Temer  

Democracia e programas de governo: uma análise do documento “Uma Ponte para o Futuro”

Os principais pontos com reflexos jurídicos e impactos democráticos do documento que pode ser considerado a agenda central de Michel Temer