Manuela Vidal e Silva Oliveira Santos

Ricardo Wagner Oliveira Santos

O debate político brasileiro, hoje, gira em torno da democracia. Às vésperas do segundo turno para a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eleicoes-2022">eleição presidencial</a> nos questionamos se pode um homem eleito assassinar talvez não uma ideia, mas uma realidade política. É que, como nos ensina Jaime Barreiros Neto em sua obra "Teorias da Democracia", este regime existe tanto como um pensamento teorizado por juristas e filósofos ao longo dos séculos percorridos pela humanidade como realidade até hoje nunca totalmente concretizada, mas que contabiliza conquistas preciosas para as sociedades que a elegeram, como, por exemplo, o reconhecimento do povo como o titular da soberania, a instituição do voto como instrumento democrático, a liberdade política e religiosa e o exercício dos direitos civis. 
Se na França do século 18 tínhamos, dentro da sala da Assembleia dos Estados Gerais, um grupo com pensamento mais revolucionário sentado à esquerda e outro com pensamento mais conservador sentado à direita, numa distinção espacial que, séculos depois, serviria para identificar a posição política que um determinado indivíduo assume, temos, hoje, no Brasil do século 21, diante das eleições presidenciais, um grupo que se diz próximo da democracia e outro que se diz afastado da corrupção. 
A complexidade do cenário político brasileiro impossibilita que se pinte a esquerda de vermelho ou a direita de verde e amarelo. Somos muitos e dentro dessa multiplicidade há uma diversidade de pensamentos que não permitem rótulos ou certezas, pois como já falava Sartre e cantava Humberto Gessinger na letra da música "Infinita Highway", é a dúvida, não a certeza, aquilo que é própria da natureza humana, não à toa ser ela o preço da pureza que te permite seguir mesmo sem saber exatamente onde vamos parar.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
A ideia de Sartre revela a importância do questionamento, da pesquisa e do diálogo. Se duvidamos de algo, nos interessamos pelo estudo do tema e pelo debate construtivo, ou, pelo menos, deveríamos. É essa a tríade do conhecimento e é ela quem nos eleva e nos distancia das fake news, dos estereótipos e dos preconceitos. Diferente do que canta Gessinger, não estamos sós e o confronto de ideias dentro de uma sociedade plural é imprescindível para a democracia.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
Quais ideias? Qualquer uma? Qual o limite da opinião dentro de uma democracia? A democracia convive com a ideia de limites? Karl Popper diz que sim e afirma que o limite da opinião é a intolerância. Uma democracia não pode permitir que os intolerantes expressem livremente o seu discurso de ódio, sob pena de ser, posteriormente, silenciada por ele. Daí a justificativa de, ao contrário do que restou <a href="https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/02/08/flow-anuncia-a-demissao-do-apresentador-monark-apos-apologia-ao-nazismo.htm-media/">defendido pelo apresentador Monark</a> no podcast Flow, não ser possível ou plausível a criação de um partido nazista, pois aqui não estamos lidando com uma opinião divergente, mas com o intolerante e o criminoso.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
Popper trata do “paradoxo da democracia” e explica algo que estes autores já discutiram em <a href="https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/opiniao-absolutismo-direitos-individuais">artigo</a> intitulado "O absolutismo dos direitos individuais", revelando que a ausência de limites à liberdade individual, longe de proteger este direito, o ofende, já que permite a sua violação por terceiros, que, livres de qualquer baliza, podem tudo, inclusive ferir direito alheio sob a defesa de estarem exercendo direito próprio, esquecendo a máxima que ensina que o direito de um acaba quando começa o direito de outro. Se deixamos de ter como limite da nossa expressão de vontade a vontade do outro, então é certo que o mais fraco acabará cedendo ao mais forte, passando o Estado a ser regido pela força e não pela Constituição, em violação à cláusula da proibição do retrocesso.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
A Constituição do Estado é o instrumento destinado à proteção dos direitos individuais e a sua garantia tem como limite a revolução, o que significa dizer que, num ambiente de guerra, cede-se espaço ao poder constituinte originário, que pode convocar uma nova constituinte, promulgando, ou mesmo outorgando, a partir dali, as regras que regem aquele território. A conclusão de que a revolução seria, dessa forma, por si mesma, ilimitada, não encontrando balizas na ordem vigente, é debatida entre os constitucionalistas, havendo entendimento que nega essa possibilidade, por reconhecer a existência de limitação ao novo poder: a ordem pré-constitucional, aquela que advém da norma hipotética pressuposta de Kelsen, responsável pelos ditames de uma sociedade justa e boa.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
A noção de justiça e bondade a partir do reconhecimento de que a maioria das pessoas é bastante decente é defendida por Rutger Bregman em seu livro "Humanidade", no qual esclarece que o homem é corrompido pela civilização. Para Bregman, a teoria do verniz, que afirma que a polidez e a civilidade do ser humano não passa de uma simples camada facilmente retirada em situações de tensão, não se sustenta diante dos fatos históricos que indicam que é nas catástrofes que o melhor da humanidade sobressai.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
David Brooks atesta essa hipótese em <a href="https://www.nytimes.com/2022/03/03/opinion/ukraine-russia-awoke-world.html">artigo</a> escrito para o The New York Times intitulado "The Week that Awoke the World" [A semana que acordou o mundo, em tradução livre], no qual conta que o famoso poema "The Second Coming" [A Segunda Vinda] de Yeats não se mostra verdade ao olharmos, hoje, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que, não obstante tratar-se de uma tragédia política, revelou ao mundo lições de companheirismo, coragem, patriotismo e humanidade. Yeats, percebam, escreveu logo após a Primeira Guerra Mundial algumas linhas de desilusão e desespero, anunciando a chegada de um novo Messias, que, diferente de Cristo, não viria para salvar o mundo, mas, talvez, para levar embora, de uma vez por todas, a esperança e a fé.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
Condicionar a esperança na democracia ou no combate à corrupção à eleição de um ou outro candidato é perder a fé nas instituições democráticas, que tão fortemente investigaram, processaram e condenaram empresários e políticos envolvidos em esquemas de propinas durante um governo de esquerda, ou, ainda, estabeleceram e cumpriram medidas de isolamento e vacinação entendidas como necessárias ao combate da pandemia do novo coronavírus durante um governo de direita que se colocou expressa e diretamente contrário aos comandos neste sentido.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
É inquestionável que propostas que visem aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal com o intuito de obter uma maioria favorável ao governo são uma afronta à democracia, como relatam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em "Como morrem as democracias" ao identificar a prática como algo comum entre alguns líderes autoritários, a exemplo do governo de Orbán na Hungria, que “[...] expandiu o tamanho do tribunal constitucional de 8 para 15 juízes, mudou as regras de nomeação para que o partido Fidesz no governo pudesse nomear, sozinho, os novos juízes e depois ocupou as novas posições com apoiantes do Fidesz”[1], buscando obter algo essencial ao governo de Péron na Argentina e de Fujimori no Peru, que era o controle do tribunal constitucional.
Todavia, há também afronta à democracia num governo que institucionaliza a corrupção, favorecendo o fortalecimento de uma pequena elite em detrimento do estado de miséria da maioria do povo, não à toa Seymor M. Lipset trata da teoria da modernização, descrita por Robert Dahl como a relação entre democracia e situação de desenvolvimento econômico, afirmando o sociólogo estadunidense citado por Dahl em "Poliarquia: participação e oposição" que a prosperidade de uma nação a faz resistir mais bravamente a anseios demagogos, autoritários e antidemocráticos. <span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
Amartya Sen aponta na sua obra "Desenvolvimento como liberdade" uma retórica frequente entre governos de países pobres em vincular a liberdade política e o exercício dos direitos civis, valores amplamente defendidos num regime democrático, às sociedades ricas, limitando as discussões das sociedades mais pobres à garantia dos direitos sociais, previstos na Constituição, mas carentes de efetividade. Essa polarização entre liberdades e direitos civis versus direitos sociais é perigosa porque pressupõe que uma só existe se a outra for eliminada, quando é certo que, na verdade, uma depende da outra, visto que um indivíduo só é capaz de tomar uma decisão consciente quando recebe oportunidades sociais que o afastem da pobreza extrema, permitindo o acesso à comida, educação, segurança, entre outros valores essenciais, sem os quais não há falar em tomada de decisão livre e democrática. <span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}"> 
A eleição que se diz garantidora do futuro da democracia ou do fim da corrupção trata menos sobre aquilo que queremos e mais sobre aquilo que não conseguimos conviver, o que favorece a polarização. Dahl entende que a contrapartida para o desejo de eliminação que um grupo político tem para com o seu adversário é o equilíbrio de forças, o que, por sua vez, exige a paridade de armas. Nenhum governo que deixe de promover e concretizar oportunidades sociais, garantindo, por exemplo, educação e saúde de qualidade, pode-se dizer democrático. Por sua vez, nenhum governo que permita o aumento da miséria do povo pela repetição de práticas de corrupção, pode, também, dizer-se democrático. Há uma contradição naquele que opõe o fascismo à democracia, mas não opõe a demagogia. Para que não caiamos nessa incoerência, devemos, além de reconhecer a importância do voto que elege os líderes, buscar o fortalecimento das instituições democráticas, permitindo, como apontam Levitsky e Ziblatt, que candidato nenhum seja capaz de subvertê-las, sendo, ao contrário, constrangido por elas.
<hr />
[1] LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 87<span class="EOP SCXW73769425 BCX0" data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;469777462&quot;:[566,1133,1700,2267,2834,3401,3968,4535,5102,5669,6236,6803],&quot;469777927&quot;:[0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0,0],&quot;469777928&quot;:[1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1,1]}">

eleições

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JOTA

Se eu voto num sou corrupto e se eu voto noutro sou fascista?

Alguém explica a eleição?

A eleição que se diz garantidora do futuro da democracia ou do fim da corrupção trata menos sobre aquilo que queremos e mais sobre o que não conseguimos conviver