Deborah Duprat

Tanto Cristóvão Colombo como Pero Vaz de Caminha, em suas cartas às respectivas coroas, enalteciam as belezas e as riquezas do novo mundo, ao mesmo tempo em que afirmavam a ausência de marcas de civilização. Os povos aqui encontrados, segundo eles, não tinham organização social, armas e povoados, e é esse vazio epistêmico e civilizatório que vai inaugurar a ideia da América como tábula rasa para a inscrição do projeto colonial e da violência que o acompanha: apropriação territorial, escravidão, aculturação, discriminação e epistemicídio. A América nasce, portanto, para o Ocidente, através das ideias de opulência e abundância, de um lado, e carência e despossessão, de outro [1].
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Com a Constituição de 1988, a sociedade nacional é convocada a enfrentar o seu passado colonial, e o Estado é configurado como uma instância descolonizadora, que incorpora a diferença e a valoriza. Além de seus artigos 231 e 232, que conformam a territorialidade indígena e conferem plena titularidade de direitos a esses povos, também os artigos 215 e 216 vão impor ao Estado que garanta a todas as pessoas “o pleno exercício dos direitos culturais”, ao mesmo tempo em que reconhecem que há vários grupos formadores da sociedade brasileira, distintos em seus “modos de fazer, criar e viver”, bem como em suas “formas de expressão”.
No mesmo sentido, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural faz constar, em seu preâmbulo, que “a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” e que “a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber”.
Aliando-se a esses preceitos o princípio nuclear da igual dignidade de todas as pessoas, parece não haver dúvida de que a demarcação de terras indígenas, na atualidade, deva partir de um imperativo hermenêutico que potencialize os direitos dos povos indígenas e que se afaste da ideia colonial de que são incapazes de gerir suas terras, principalmente quando férteis e ricas. A própria Constituição, coerente com a noção de que as terras indígenas constituem espaços simbólicos de identidade, produção e reprodução cultural, traz cláusulas expressas de limitação dos poderes do Estado em relação a elas: apenas mediante lei complementar, que defina o relevante interesse público da União, pode haver, por terceiros, exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, § 6º), sendo ainda necessária autorização do Congresso Nacional para cada caso, ouvidas as comunidades afetadas (art. 231, § 3º).
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, estabelece, em seu art. 7º, que “os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento” e, na eventualidade de algum projeto governamental de desenvolvimento incidir em suas terras, são necessários “estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento previstas possam ter sobre esses povos”.
O mesmo art. 7º ainda acrescenta que “os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas”. Convém ainda recordar que o art. 6º da Convenção 169 dispõe no sentido de que os governos devem “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.
<blockquote class="jota-article__eye">A Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu, a partir do caso Saramaka [2], uma distinção entre consulta e consentimento, exigindo esse último nas hipóteses de projetos de empreendimento que provoquem perda de território ou seu grave comprometimento no que diz respeito ao acesso, uso e gozo dos recursos fundamentais à existência física e cultural do grupo.</blockquote>
O PL 490 e seus 13 apensos são a subversão de todas essas normas e nortes interpretativos, pelas principais, mas não únicas, razões a seguir. Primeiro, porque vai estabelecer o marco temporal de 5 de outubro de 1988 para a ocupação indígena, somente superado por “renitente esbulho ou efetivo conflito possessório”. Ou seja, o regime constitucional de demarcação de terras indígenas passa a ser compreendido a partir de categorias civilistas – o que em si já um desvirtuamento de qualquer exegese constitucional – e desconsidera que os grupos eventualmente em disputa têm compreensões de posse e de resistência não necessariamente coincidentes. O endosso da visão de apenas uma das partes, antecipadamente, rompe com qualquer ideia de pluralismo e interculturalidade.
Segundo, porque as terras indígenas perdem a sua característica de direito fundamental e cedem a interesses civilistas e patrimoniais, tal como ocorre com a norma prevista no art. 9º do substitutivo apresentado pelo relator Arthur Oliveira Maia, de que somente após o pagamento das benfeitorias de boa-fé poderá haver alguma limitação ao uso e gozo pelos não indígenas da área ocupada.
Terceiro, porque a intervenção do Poder Público sobre essas terras, que deveria ser excepcional, passa a ser a regra, abrindo-se um conjunto de obras e atividades que ali podem ser realizadas, inclusive sem consulta aos povos atingidos.
Quarto, porque os PLs e o substitutivo estão atravessados pela ideia colonial de que os povos indígenas não são capazes de fazer a gestão adequada de suas terras e tampouco aptos a eleger projetos próprios de desenvolvimento. Em casos de superposição com unidades de conservação, por exemplo, o usufruto indígena passa a ser responsabilidade do órgão federal gestor das áreas protegidas. Por outro lado, autoriza-se, também antecipadamente, o turismo em áreas indígenas.
Quinto, em relação aos índios isolados, há praticamente o abandono da política responsável de respeitar a sua autonomia pelo não contato com a sociedade envolvente, na medida em que se usa da cláusula aberta de que o contato é possível para “intermediar ação estatal de utilidade pública” e de que ele pode ser dar por entidades particulares, nacionais ou internacionais, se contratadas pelo Estado.
E tudo isso sem consulta alguma aos povos indígenas. Há, na atualidade, um campo de estudo organizado em torno do conceito “epistemologias da ignorância” [3], que analisa, dentre outros aspectos, as estratégias que produzem e perpetuam ignorância como forma de controle dos sujeitos e dos seus imaginários.  O PL 490 – aqui incluídos todos os apensos e o substitutivo do relator – insiste na forma mais colonial de exploração e controle do “outro”, mediante a sua negação, a ausência de reconhecimento de que seja produtor de saber, e não mero consumidor. Nada mais distante de 1988 e mais próximo de 1500.
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[1] MORAÑA, Mabel. Filosofía y crítica en América Latina – de Mariátegui a Sloterdijk. <a href="mailto:ediciones@metalpesados.cl" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ediciones@metalpesados.cl</a>. ISBN Edición Digital: 978-956-9843-53-2
[2] Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Sentencia del 28 de noviembro de 2007, p. 135-137.
[3] Martin Alcoff, Linda. “Epistemologies of Ignorance”. Shannon Sullivan y Nancy Tuana (eds.), Race and Epistemologies of Ignorance. Albany: State University of New York Press, 2007, p. 39-57

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JOTA

PL 490 insiste na forma mais colonial de exploração e controle do “outro”

Demarcação de terras indígenas, PL 490, seus apensos e o substitutivo do relator

PL 490 insiste na forma mais colonial de exploração e controle do “outro”