Rafael Mafei

Aspectos éticos da delação premiada estão na ordem do dia. Wadih Damous, da Comissão de Direitos Humanos da OAB, comparou-a à tortura: a prisão amolece o investigado e o faz falar.
A resposta veio de Élio Gaspari, em artigo de 01/03 na Folha de S. Paulo. Autor de um dos melhores trabalhos sobre a tortura já publicados no vernáculo (“A praga”, em A Ditadura Escancarada), Gaspari rejeita a comparação: tortura é ilegal; já a prisão preventiva seguida de delação, porque ambas previstas em lei, é legal. Sendo legal, não pode ser tortura.
À luz da história recente do Brasil, Gaspari acerta. Tortura era prática oculta a serviço de uma ditadura nefasta. Rechaçada pelas versões oficiais, era atribuída a desvios individuais quando emergia. Porque ilegal, não podia ser publicamente defendida.
A delação premiada está mesmo longe disso. O depoente é filmado, toma água, vai ao banheiro, pausa para almoçar e vai embora inteiro. E o Brasil não é mais uma ditadura.
Mas essas constatações não dispensam a polêmica. O debate sobre a tortura no mundo hoje volta-se justamente àquelas práticas que, embora revestidas de legalidade e praticadas nas democracias, diferem da velha tortura não em substância mas apenas em grau, quando muito.
Exemplo: Mahrer Arar, engenheiro canadense, foi legalmente preso em 2002 nos EUA, por suspeita de envolvimento com terroristas. Por 13 dias ficou detido preventivamente (lá, como aqui, a prisão é medida cautelar legalmente prevista). Foi legalmente deportado, porque a deportação era permitida nas normas de combate ao terrorismo. Chegou à Itália e lá o mandaram à Síria. Arar foi submetido ao que há de pior. Passou 13 meses nas terras de Bashar al-Assad e foi solto apenas após pressão diplomática canadense.
Pela fria letra da lei, o tratamento dispensado pelos EUA a Arar poderia ser considerado legal, com uma polêmica aqui e outra ali. Ilegalidade certa, se houve, só na Síria. O EUA não são a ditadura de 1964 e Bush, presidente eleito, é cheio de defeitos, mas passa longe de um Costa e Silva. Estamos então de acordo com as práticas dos Estados Unidos nesse caso? Nossa consciência jurídica só grita da Itália em diante? Talvez apenas pousando em Damasco? Quiçá nem isso: confesso não saber o que a lei Síria diz sobre as regras de interrogatório; vai ver que nem lá ilegalidade houve.
A mais importante diferença entre a tortura stricto sensu e as novas armas defensivas das democracias contemporâneas é que as últimas se pretendem legal e politicamente justificáveis nos casos extremos. Dick Cheney criou um neologismo útil no caso da Guerra ao Terror: “técnicas avançadas de interrogatório”.
Na academia há mais transparência: Alan Dershowitz defende que o Judiciário possa expedir “mandados de tortura” para obter informações que salvem vidas em perigo iminente (ticking bomb terrorist). Matthew Kramer, um dos mais importantes filósofos contemporâneos do direito, dedicou seu mais recente livro inteiramente a esse debate (Torture and Moral Integrity, Oxford, 2014). Todos usam o termo “tortura” para se referir às práticas “legais” dos EUA – mesmo aqueles que as defendem, como Dershowitz.
A guerra à corrupção é nossa guerra ao terror. Também aqui temos nos permitindo assumir o inconfessável. A confiar na imprensa, pareceres do MPF sustentaram a continuidade de prisões preventivas porque os presos estariam prestes a colaborar. O diabo mora dos detalhes e o argumento da legalidade fica bambo nesse caso: prisão preventiva é legal, mas a indução à colaboração não é hipótese prevista em lei para sua decretação ou manutenção.
A tortura, como tudo, muda. Houve um tempo na história em que ela foi legal. Sucumbiu ao reformismo iluminista e serviu, nos porões, às piores ditaduras do século XX. Desde o 11 de setembro, suas variações voltaram a ser abertamente discutidas nas democracias ocidentais. Christoph Einolf, com acerto, observa esse movimento como “queda e ascensão” da tortura.
Pela nossa memória da tortura medonha da ditadura militar, parece à primeira vista um exagero oportunista invocá-la agora para discutir as delações da Lava a Jato. Não é. Fugindo dos jogos de palavra, da retórica forense e do argumento pretensamente definitivo da legalidade, devemos sim nos perguntar se as práticas de nossa “guerra à corrupção” resistem ao escrutínio dos mesmos princípios políticos e jurídicos que nos levam a rejeitar a tortura tout court. É o que fazem os acadêmicos e profissionais do direito de todas as democracias que usam medidas extremas para enfrentar seus grandes dilemas penais.
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*Professor, em regime de dedicação exclusiva, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP

Crise no Brasil

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JOTA

Combate à corrupção com a Lava Jato é a nossa 'guerra ao terror'

Delação premiada, tortura e legalidade

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