Carlos Eduardo Correa Duarte

A história humana não pode ser negada, feitos humanos não podem ser apagados, mas ambos podem ser reescritos, uma vez que a História nada mais é do que um discurso daqueles que venceram. Nesse caso especificamente, a Alemanha e o terceiro Reich foram os grandes derrotados. Sobre o cadáver de uma Europa devastada, uma narrativa histórica passou a prevalecer em detrimento de outra. Homens como Winston Churchill, Charles de Gaulle e Frank Delano Roosevelt se tornaram heróis enquanto que homens como Adolf Hitler e Joseph Stalin se tornaram a própria encarnação do mal.
A construção desse discurso se deu durante a Segunda Guerra Mundial, um dos eventos mais marcantes da História humana de proporções gigantescas, tanto em relação ao número de pessoas envolvidas quanto ao nível dos equipamentos bélicos e o índice de indivíduos mortos direta ou indiretamente. Essa guerra destruiu povos e nações, reergueu outros e, com certeza, mudou panoramas e estabeleceu novos paradigmas à contemporaneidade.
Contudo, esse evento não foi fruto da ação individual e ou da mente proeminente de um único homem. Ele foi, sim, a síntese de um processo de múltiplas determinações, o resultado de um contexto histórico especifico (o imperialismo e a corrida por estabelecer mercados mundiais) de um conflito étnico remanescente na Europa, resultado de um conflito anterior não resolvido e da punição unilateral de um tribunal que político. Foi nesse contexto histórico que eclodiu a Segunda Guerra e nasceu Adolf Hitler, jovem sonhador candidato declinado na Academia de Artes de Viena que tornou-se um soldado condecorado e, a partir de 1919, constituiu-se um membro ativo do Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), o partido Nazi ou Nazista. Esse mesmo jovem, devido à sua inteligência e a seus proeminentes dotes de oratória, logo ascendeu dentro do partido e o contexto histórico alemão o elegeu chanceler da Alemanha. Foi dentro desse mesmo contexto histórico que deu permissão a homens como Hitler, Roosevelt, Churchill e De Gaulle para articularem uma grande guerra. A História forjava seus artífices e não o artífice dessa tragédia.
Por outro lado, Hitler não deixou apenas essa guerra como marca de seus feitos. Ele também entrou para História como o arquiteto de uma concepção de linha de desenvolvimento das sociedades. Explicitada em seu livro Mein Kampf, em tradução livre “Minha Luta”,  esse soldado condecorado e membro do partido nazista escreveu essa obra na prisão após uma fracassada tentativa de golpe de Estado. Essa obra, misto de autobiografia e teoria político-social, lançou as bases do regime nazista e a forma a qual a Alemanha enxergava outras etnias.
Fundamentado no cientificismo do século XIX, seu autor misturou elementos históricos, éticos, étnicos e estéticos para eleger uma determinada etnia como uma “raça” perfeita, e as outras como “raças” inferiores. É uma obra com base cientifica frágil e com um arcabouço filosófico deprimente, que em dados momentos chegam a ser patéticas. No entanto, essa obra conseguiu milhares de seguidores pelo mundo afora e suas palavras fazem parte de um roteiro de discursos dos setores mais conservadores da Europa, da Ásia e das Américas. Pelo caráter funcional da obra, o substantivo nazismo se tornou um adjetivo para tudo o que há de mais intolerante em nossa sociedade.
Mas diante de todo esse exposto cabe uma pergunta: o livro de Hitler criou ideias intolerantes ou as ideias intolerantes criaram o livro de Hitler? Se não houvesse Hitler e o Nazismo, não haveria intolerância e conflitos étnicos, estéticos e éticos?
Não é negando a História que ela deixa de existir, assim como não é negando alguns ideais que eles deixam de ter efeito. Em um tempo em que as redes sociais rasgam o politicamente correto e os setores mais conservadores expressam suas intolerâncias, vociferando seu racismo, sua homofobia, sua xenofobia e sua sociofobia, tornou-se necessário mais do que nunca estabelecermos esse debate, discutir sua base fundante, desmontar seus falsos pressupostos, escancarar seu cientificismo e até mesmo dessacralizar os princípios religiosos que justifique a esses intolerantes determinarem como o outro deve se portar, se amar e viver.
Penso que proibir e negar o acesso a Mein Kampf por meio de uma medida judicial vai na contra mão dos anseios sociais. É uma medida que vem de cima para baixo, um misto de hipocrisia política e um comportamento de complacência com os discursos de intolerância presentes em nossa sociedade, e a violência que nasce a partir deles. A intolerância já está presente em nossos meios e suas marcas já deixam vítimas por todos os lados. Pastores, juristas, políticos, médicos e professores racistas existem. Negar sua existência não só não fará com que eles desapareçam, como ainda não vai mudar em nada a vida daqueles que sofrem com suas ações.
Não permitir que o outro se expresse não é um ato democrático em uma sociedade que se autoproclama democrática. Impetrar uma medida judicial para que um livro não circule é uma deformação democrática, assim como desqualificar um discurso desqualificando seu orador. Negar o orador não é necessariamente a garantia da negação de seu discurso.

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JOTA

Negar acesso a Mein Kampf por medida judicial vai na contramão de anseios sociais

Não se pode deformar a História para acertar discursos

Negar acesso a Mein Kampf por medida judicial vai na contramão de anseios sociais