Rafael Raphaelli

O Superior Tribunal de Justiça em breve terá mais uma oportunidade para reafirmar o sistema acusatório vigente em nosso ordenamento jurídico desde a Constituição Federal de 1988, que, com as alterações trazidas pela Lei 11.690/08, imaginou-se não mais seria objeto de grandes indagações. A Terceira Seção da mencionada Corte Superior enfrentaria, no dia 14.09.2016, a questão da nulidade da audiência realizada sem a presença do Ministério Público, no EAREsp 725.861/RS, de Relatoria do Min. Félix Fischer, mas o julgamento acabou sendo adiado.
Logo após a introdução do art. 212 no Código de Processo Penal [1], que trouxe ao nosso direito o sistema da cross-examination, no qual as perguntas são formuladas pelas partes diretamente às testemunhas, cabendo ao juiz, na forma do respectivo parágrafo único, complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos, o Tribunal da Cidadania esboçou sinalização no sentido de limitar o protagonismo judicial no processo penal, anulando processos nos quais inobservada ou invertida a ordem legalmente estabelecida para a inquirição das testemunhas. Essa tendência, no entanto, não se confirmou, e a jurisprudência acabou se pacificando no sentido de que somente caberia a anulação se demonstrado prejuízo oportunamente reclamado pela parte, considerando-se relativa a nulidade [2].
Não é demais situar, por oportuno, que tanto no Superior Tribunal de Justiça como no Supremo Tribunal Federal vem sendo aplicada a regra do pass nullité sans grief, segundo a qual somente se declara a nulidade se houver a comprovação do prejuízo. O Ministro Cezar Peluso, com sua invulgar percepção, verificando a natural dificuldade da defesa à comprovação de prejuízo concreto, exigido para a anulação de atos realizados sem a observância de formas legalmente previstas, em mais de uma oportunidade sustentou não haver prejuízo mais concreto que o juízo condenatório [3]. Todavia, embora justamente no processo penal as garantias processuais deveriam ser mais rigorosamente observadas, pois em jogo a liberdade de ir e vir, as nulidades, em regra, são convalidadas, estimulando-se, assim, inclusive o descumprimento de formalidades estabelecidas pelo legislador.
Em inúmeros casos pesquisados na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, nos quais discutida a nulidade da instrução processual em razão da inversão da ordem de inquirição das testemunhas, com muita dificuldade se conseguiu localizar um em que reconhecida a nulidade [4], num contexto fático no qual ficou ressaltado “o protagonismo judicial na instrução por parte da Juíza do feito, que inquiriu e reinquiriu exaustivamente algumas testemunhas de acusação, chegando, em alguns casos, a fazer oitenta perguntas, e se silenciou quanto a algumas das testemunhas de defesa”, assim como “a impressão que se tem da simples leitura da ata é que a douta Juíza fez, sim, as vezes do órgão acusador, tomando toda a iniciativa de produzir as provas que viessem a demonstrar a culpa do paciente”.
No caso ora em discussão, em que a audiência é realizada sem a presença da acusação, a 6a Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a existência de nulidade insanável, pois a atuação do Juiz não se deu apenas em caráter complementar, mas sim principal, violando efetivamente o sistema acusatório.
A pretensão do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, deduzida nos embargos de divergência, é de que seja afastada a nulidade reconhecida, com base na orientação adotada pela 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça no paradigma invocado, no sentido de que “eventual prejuízo pela ausência do representante do Parquet, caso houvesse, só interessaria à acusação, sendo inadmissível o reconhecimento de nulidade relativa que só à parte contrária interessa” [5].
Ainda que seja evidente que a adoção aqui do entendimento hoje sedimentado em relação à inversão da ordem de inquirição das testemunhas trará semelhante resultado, convalidando-se, em regra, audiências realizadas mesmo sem a presença de uma das partes, o maior problema da pacificação deste entendimento será o enfraquecimento do sistema acusatório.
Veja-se que o próprio Ministério Público Federal, em parecer lançado nos embargos de divergência que ensejou a presente discussão, destacando o “protagonismo e essencialidade da função do Ministério Público no sistema acusatório e a impossibilidade do exercício desse papel pelo magistrado”, opinou pela uniformização da jurisprudência no sentido da nulidade da audiência de colheita de prova na ação penal sem a presença do Ministério Público.
O Ministro Rogério Schietti Cruz talvez tenha achado o ponto de equilíbrio na solução desta questão, dando provimento ao Agravo em Recurso Especial no 528.020/RS [6], quando afastou o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que simplesmente absolvia o acusado em razão da reconhecida nulidade da instrução, mas manteve a nulidade da audiência realizada sem a presença do Parquet, determinando apenas a respectiva renovação com a presença das partes.
E não se está sustentando, ainda que fosse salutar à preservação da imparcialidade do julgador, a incompatibilidade da atuação na fase judicial do juiz que deferiu medidas investigativas na fase pré-processual, na linha do que já decidido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, nos casos Piersack, de 01.10.82, e de Cubber, de 26.10.84, conforme lição de Aury Lopes Júnior [7], até porque isso demandaria uma profunda reestruturação do Poder Judiciário.
Mas exigir a presença do Ministério Público em audiências de instrução, além de necessário à preservação do sistema acusatório adotado pela Carta da República, que pressupõe a separação de funções no processo, evidentemente se afigura viável.
Nesse ponto, embora reconhecendo eventuais dificuldades estruturais de alguns Ministérios Públicos estaduais para o atendimento de toda a demanda existente em comarcas longínquas de nosso País, o Min. Schietti ponderou que “dificuldades, porém, hão de ser contornadas com medidas de gestão e de coordenação entre o Judiciário e o Ministério Público, que não podem continuar a, comodamente, perpetuar uma situação que compromete a ideia de uma justiça criminal apoiada sobre pilares sólidos, em que os seus protagonistas assumem e desempenham, minimamente, seus papéis na relação processual” [8].
Em algum momento o Poder Judiciário haverá de superar, notadamente no processo penal, a falsa ideia de que seja parceiro do Ministério Público no combate à criminalidade, muitas vezes propaladas pelas respectivas associações de classe [9], sob pena de fragilizar não apenas a imparcialidade inerente à jurisdição, mas inclusive a independência funcional de seus membros.
Evidentemente não há problema que as associações de classe tenham atuações conjuntas visando o fortalecimento institucional, especialmente em embates políticos, mas aceitar com naturalidade que juízes façam as audiências sem a presença do Ministério Público, como se não houvesse diferenças no papel de cada um no processo penal, acaba gerando, ao menos na opinião pública, a ideia de que os Juízes efetivamente estejam alinhados somente com pretensões punitivas.
Tanto é assim que não tem sido incomum, quando ocorrem solturas ou absolvições, ataques a Magistrados pelos veículos de imprensa, como se somente fossem acertadas as decisões que prendem ou condenam acusados. Recentemente, em Porto Alegre/RS, como se o risco não fosse inerente à atividade jurisdicional, uma Magistrada foi cobrada, inclusive por membro do próprio Ministério Público, porque alguém por ela solto teria se envolvido posteriormente em um latrocínio [10].
Não há mais espaço, portanto, para que o Judiciário traga para si ônus que não é seu, conduzindo sozinho a inquirição de testemunhas cujo interesse primeiro seria das partes, ou mesmo decidindo, sem o parecer do Ministério Público, se solta ou mantém preso algum acusado, para depois ser cobrado sem pudores em eventuais desacertos.
O risco da não realização de audiência sem a presença do Ministério Público, na esteira do que se sustenta, seria tão somente o adiamento do ato e, quando muito, a soltura de algum acusado, além da eventual apuração da ausência do Parquet junto aos competentes órgãos correicionais.
O que não pode é a Magistratura continuar suprindo o papel do Ministério Público nas audiências, como se invariavelmente houvesse objetivos comuns entre tais instituições quanto ao resultado do processo penal, o que, a princípio, certo que não há.
Se a lei é igual para todos, e considerando que poucos entenderiam como dentro da normalidade a realização de audiências em grandes operações contra a corrupção sem a presença do Ministério Público Federal, razão não há para que seja diferente em outros casos.
Para a preservação da imparcialidade, não deveria o julgador fazer audiências sem a presença das partes.
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1 - A intenção do legislador em alterar o sistema de inquirição foi o de consolidar um novo modelo processual com feições acusatórias, com o distanciamento do juiz do papel de protagonista da prova, segundo Eugênio Pacelli e Douglas Fischer, in Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, Lumen Juris, 2a Ed., p. 458. 
2 - A classificação das nulidades como absolutas e relativas no processo penal encontra criticas na doutrina. Nesse sentido, LOPES JÚNIOR, Aury, DIREIRO PROCESSUAL PENAL e sua Conformidade Constitucional, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010, volume II, pp. 427/438.
3 - HC 87.9256/SP, DJe de 214.04.2008 e HC 95.289-5/SP, DJe de 07.11.2008. 
4 - HC 212.618/RS, j. em 24.04.2012, Rel. Min. Og Fernandes, Redator para o acórdão o Min. Sebastião Reis Júnior, Dje em 17.09.2012.
5  - AgRg no RESp 1.491.691/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 08.08.2015.  
6  - AgRg nos Edcl no ARESP 528.020/RS, j. em 15.09.2015.  
7  - LOPES JÚNIOR, Aury, DIREIRO PROCESSUAL PENAL e sua Conformidade Constitucional, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010, volume I, p. 135.  
8  - Voto vencido no REsp 1.348.978/SC, j. em 17.12.2015, redator para o acórdão o Min. Néfi Cordeiro.  
9  - http://www.amb.com.br/mod/1/index.asp?secao=campanha_atopublico
10  - http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/policia/noticia/2016/08/trio-suspeito-por-morte-de-vendedora-na-capital-tem-  antecedentes-7336511.html

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JOTA

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Sistema acusatório e a imparcialidade da jurisdição

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