André Carneiro Leão

A prisão de políticos que já ocuparam cargos relevantes na república brasileira e de empresários possuidores de elevado poder econômico tem sido noticiada com alguma frequência nos últimos meses. Essas notícias podem passar a impressão de que o sistema de justiça criminal no Brasil está operando regular e adequadamente. Um exame mais detido sobre o funcionamento histórico e cotidiano desse sistema de justiça demonstra, contudo, que tais operações (de inegável apelo midiático) ainda são excepcionais e que esse sistema ainda é caracterizado por sua seletividade<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, pelos não tão raros equívocos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e até pelos sistemáticos abusos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
De fato, o primeiro sinal do grave desequilíbrio do sistema de justiça criminal brasileiro pode ser vislumbrado na sua reconhecida seletividade. Os dados do INFOPEN do Ministério da Justiça revelam que há, de fato, uma clientela preferencial do sistema punitivo e que ela é composta por jovens negros pobres e que cometeram crimes sem violência<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Ademais, boa parte deles está preso sem que tenha havido sequer o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. São todos potenciais assistidos da Defensoria Pública.
Não se pode perder de vista que, como revelou a pesquisa de Edwin Sutherland, o cometimento de crimes não é uma realidade apenas nessa camada socialmente mais baixa da população (são igualmente frequentes, embora não sancionados, os crimes de “colarinho-branco” como a sonegação fiscal, a corrupção, as fraudes no sistema financeiro etc.)<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Assim, parece ter razão Zaffaroni ao sustentar que a diferença pode estar no grau desigual de vulnerabilidade dos mais pobres às agências de controle do Estado<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Essa seletividade pode se tornar ainda mais injusta se considerarmos as diferenças na capacidade que as classes sociais de nosso país têm para resistir a eventuais (e mais comuns do que se imagina) equívocos dos assim denominados atores da persecução penal: o Estado-acusador e o Estado-julgador, ambos representados por seres humanos sabidamente falíveis.
De fato, segundo a tabela de honorários da OAB/SP, por exemplo, para uma defesa criminal em processo de rito ordinário, o cidadão deve desembolsar, no mínimo, R$ 3.991,07 e, se for necessária a impetração de habeas corpus, outros R$ 3.991.07<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Se não dispuser dessa quantia (ou de quantia próxima a essa em outros estados) para o patrocínio de sua defesa, o cidadão deveria contar com a assistência da Defensoria Pública.
Assegurar aos cidadãos uma defesa criminal efetiva, isto é, integral e de boa qualidade, consubstancia-se em garantia fundamental prevista na Constituição e em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Com efeito, os incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição asseguram, respectivamente, que ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal e que a todos serão garantidos o contraditório e a ampla defesa. O inciso LXXIV do mesmo art. 5º da Constituição estabelece ainda que o Estado assegurará aos necessitados a assistência jurídica integral e gratuita, que deverá ser, nos termos do art. 134, prestada pela Defensoria Pública.
Do mesmo modo, o art. 8, 2, d, da Convenção Americana de Direitos Humanos garante a todos os que não possam ou não queiram constituir um advogado particular o direito irrenunciável de ser assistido por um defensor patrocinado pelo Estado<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
A solução adotada no plano constitucional pelo Brasil para a redução do desequilíbrio do sistema de justiça criminal está em consonância com as orientações da Organização dos Estados Americanos que aprovou, em junho de 2014, a Resolução AG/RES. 2821 (XLIV-O/14), por meio da qual se recomenda aos estados-membros o fortalecimento da Defensoria Pública como forma de garantir aos cidadãos efetivo acesso à Justiça<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Como reflexo desse processo de fortalecimento da Defensoria Pública no Brasil, o trabalho da instituição, de um modo geral, tem sido bem avaliado pela opinião pública<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, seja pela observância do dever de defesa integral (em todas as instâncias)<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> seja pela efetividade da defesa<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Esse serviço essencial à Justiça precisa, entretanto, ser ampliado.
Para garantir a universalização dos serviços da Defensoria Pública, o Congresso Nacional aprovou nova redação para o art. 98 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, segundo a qual a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, no prazo de 8 anos contados de julho de 2014. Todavia, basta frequentar as unidades jurisdicionais do país para se perceber que tais mandamentos constitucionais estão distantes de seu efetivo cumprimento.
De fato, apesar previsões normativas antes citadas, o poder público insiste em não conferir reais condições para a almejada universalização. O IV Diagnóstico da Defensoria Pública constatou que não há defensor público na maior parte das comarcas ou seções judiciárias do país. Com efeito, em 60% das comarcas não existe sequer um defensor público. Se considerada a proporção de defensores em relação ao número de unidades jurisdicionais, a situação é ainda pior. Segundo o mesmo diagnóstico, em 2014, no Brasil, a Defensoria Pública estava em apenas 13% das unidades jurisdicionais. A situação se repete no âmbito da Justiça Federal, já que a Defensoria Pública da União está presente em apenas 24% das seções judiciárias.
Esse quadro é ainda mais assustador se comparada a estrutura de cada uma das facetas processuais penais do Estado (jurisdição, acusação e defesa). No III Diagnóstico da Defensoria Pública, realizado pela Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, vislumbra-se claramente a desproporção entre as estruturas do Estado-defesa em relação ao Estado-acusação e ao Estado-jurisdição. Se comparados os orçamentos executados da Defensoria Pública em relação ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, percebe-se que, no plano federal, o orçamento executado pela DPU em 2008 correspondeu a apenas 2% do orçamento executado pelo MPF e cerca de 0,51% do orçamento executado pelo Poder Judiciário<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Manter essa situação de manifesto desequilíbrio implica prosseguir alimentando um sistema de justiça teratológico e antropófago. Com alguns membros maiores que outros, esse sistema de justiça (bem) brasileiro e bastante desproporcional poderia ser também denominado, com o perdão dos artistas modernistas, de Abaporu: um sistema de injustiças colossais e que dilacera em especial os corpos e a dignidade dos mais pobres e mais vulneráveis.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
BOITEUX, Luciana et al. Tráfico de Drogas e Constituição. Série Pensando o Direito. Brasília: Ministério da Justiça, 2009. Disponível em: <a href="http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/01Pensando_Direito3.pdf">http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/01Pensando_Direito3.pdf</a> Acesso em 26 jun. 2016.
CORREIA, Marcelo Barros. Polícia e tortura no Brasil: conhecendo a caixa das maçãs podres. 1a. ed. Curitiba: Appris, 2015.
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, pp. 134 e ss.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2013.
SOUZA, Fábio Luís Mariani de. A defensoria pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2011.
SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Madrir: Piquetá, 1999.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para Vera Regina de Andrade Pereira de Andrade: “de fato, em sociedades latino-americanas como a brasileira, com uma secular tradição de maus-tratos, tortura e extermínio (crueldade) como tecnologia punitiva e mecanismo de controle social, os corpos, sobretudo de pobres e mestiços, indígenas e negros (antes das tribos, campos e senzalas, e depois das favelas), das marginalizadas e conflitivas periferias urbanas ou zonas rurais, ainda que jovens e até infantis, nunca saíram de cena como objeto de punição”. ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 107.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para mencionar apenas um caso, lembremos o de Marcos Mariano da Silva, que, mesmo inocente, permaneceu 13 anos preso, ficou cego na prisão, sem ter tido direito à defesa. Uma breve narrativa desse caso pode ser encontrada em: LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 213.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A alta letalidade da polícia brasileira já foi denunciada em relatório Humans Rights Watch (<a href="https://www.hrw.org/report/2009/12/08/lethal-force/police-violence-and-public-security-rio-de-janeiro-and-sao-paulo">https://www.hrw.org/report/2009/12/08/lethal-force/police-violence-and-public-security-rio-de-janeiro-and-sao-paulo</a>). Segundo levantamento dessa mesma entidade, de janeiro de 2012 a junho de 2014, foram registradas 5.431 denúncias de tortura e outros tratamentos cruéis no Brasil. Uma análise mais detalhada sobre a tortura policial pode ser encontrada também no livro do delegado Marcelo Barros Correia: CORREIA, Marcelo Barros. Polícia e tortura no Brasil: conhecendo a caixa das maçãs podres. 1a. ed. Curitiba: Appris, 2015.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> De acordo com o INFOPEN-DEPEN/MJ, em dezembro de 2014, no Brasil, a população carcerária era de 622.202 pessoas. Esse dado nos coloca entre os quatro países que mais prendem pessoas no mundo e contraria o senso comum de que por aqui pune-se pouco. No universo de pessoas encarceradas no nosso sistema penitenciário, 94,2% são homens; 74% tem menos de 34 anos de idade; 61,67% são negros; 89% não concluiu o ensino médio; 34% são presos provisórios; 46% foi sentenciado a pena no regime fechado; 74% estão presos por crimes contra o patrimônio ou por tráfico de drogas. BRASIL. DEPEN. Levantamento nacional de informações penitenciárias – INFOPEN dez. 2014. Disponível em: <a href="http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf">http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf</a>. Acesso em: 26 jun. 2016. Entre os que são presos por tráfico de drogas, é bom que se destaque: não são os grandes líderes do tráfico os que são costumeiramente detidos. Segundo estudo coordenado por Luciana Boiteux (2009), do que se pode perceber das condenações por tráfico de drogas no estado no Rio de Janeiro, no período de outubro de 2006 a maio de 2008, a pessoa condenada é, em sua maioria, homem (84%), primário (66%), que foi preso em flagrante (91%), sozinho (60%) e desarmado (apenas 14% portavam armas no momento do flagrante e da prisão), portando maconha (54%), em quantidade inferior a 100 gramas (42%). A maioria desses homens primários e presos com pouca quantidade de droga, foi condenada a uma pena superior a 8 (oito) anos de reclusão (58%). BOITEUX, Luciana et al. Tráfico de Drogas e Constituição. Série Pensando o Direito. Brasília: Ministério da Justiça, 2009. Disponível em: <a href="http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/01Pensando_Direito3.pdf">http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/01Pensando_Direito3.pdf</a> Acesso em 26 jun. 2016.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Madrir: Piquetá, 1999.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012, pp. 267 e ss.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em <a href="http://www.oabsp.org.br/servicos/tabelas/tabela-de-honorarios/advocacia-criminal">http://www.oabsp.org.br/servicos/tabelas/tabela-de-honorarios/advocacia-criminal</a> Acesso em: 26 jun. 2016.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Sobre o tema, confira-se: SOUZA, Fábio Luís Mariani de. A defensoria pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2011.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Para a identificação da forma como a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem interpretado esse dispositivo de forma extensiva, confira-se: GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, pp. 134 e ss.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Disponível em: <a href="http://www.aidef.org/wtksite/cms/conteudo/444/Res._OEA_2821-2014.pdf">http://www.aidef.org/wtksite/cms/conteudo/444/Res._OEA_2821-2014.pdf</a> Acesso em: 26 jun. 2016.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Os dados de pesquisa de opinião encomendada pelo Conselho Nacional do Ministério Público revelam que a Defensoria Pública está entre as instituições públicas mais confiáveis e tidas como mais importantes para a população. Disponível em <a href="http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2015/01/27/16_22_46_690_resultados_cnmp_relatorio_analitico.pdf">http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2015/01/27/16_22_46_690_resultados_cnmp_relatorio_analitico.pdf</a>. Acesso em 26 jun. 2016.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Cite-se, para ilustrar, caso em que a DPU impetrou habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal e conseguiu assegurar o respeito ao devido processo legal para um soldado que não teve assegurado em seu processo a autodefesa. Confira notícia divulgada pelo próprio STF. Disponível em: <a href="http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=276338">http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=276338</a>. Acesso em: 26 jun. 2016.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Confira-se, também apenas como exemplo, o caso em que a DPU garantiu a defesa de assistido que, embora acusado de operar rádio clandestina, foi absolvido porque acreditava operar regularmente rádio comunitária com base em liminar concedida pelo próprio Poder Judiciário. Disponível em <a href="http://dpu.jusbrasil.com.br/noticias/198654723/acusado-de-possuir-radio-comunitaria-clandestina-e-absolvido">http://dpu.jusbrasil.com.br/noticias/198654723/acusado-de-possuir-radio-comunitaria-clandestina-e-absolvido</a>. Acesso: 26 jun. 2016.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> BRASIL. Ministério da Justiça. III Diagnóstico da Defensoria Pública. Disponível em <a href="https://www.anadep.org.br/wtksite/IIIdiag_DefensoriaP.pdf">https://www.anadep.org.br/wtksite/IIIdiag_DefensoriaP.pdf</a> Acesso em: 26 jun. 2016.

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JOTA

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