Liberdade de expressão

Defender o fuzilamento de opositores políticos não é liberdade de expressão

Condições de produção do discurso negam toda e qualquer relativização possível de fala de Bolsonaro

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Em vídeo de evento no Acre durante a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro usa um tripé de câmera e fala em "fuzilar a petralhada". Crédito: Reprodução

A Folha de S.Paulo publicou no último dia 25 entrevista com Carissa Piterman Gross, professora da FGV Direito SP, na qual ela afirma que a declaração pública de Jair Bolsonaro em que ele defende “fuzilar a petralhada” está protegida pela liberdade de expressão no contexto em que foi emitida. No dia seguinte, Pierpaolo Cruz Bottini, advogado e professor da USP, e Ilana Martins Luz, advogada, criticaram a entrevista e defenderam que tal manifestação configura o crime do artigo 286 do Código Penal: “incitar, publicamente, a prática de crime”, ou seja, não está protegida pela liberdade de expressão.

A despeito de saber que este tipo penal pode dar espaço a muitos abusos, como no caso da criminalização de movimentos sociais e indivíduos que defendem a legalização de drogas hoje ilícitas via mudanças legislativas, por exemplo, no caso, não tenho como discordar do professor Bottini e da advogada Ilana Martins Luz. Não vou reproduzir aqui a argumentação dos dois: remeto as pessoas interessadas ao artigo, também publicado na Folha. Vou apenas acrescentar alguns argumentos, que me parecem relevantes para a discussão.

Começo afirmando, sem demonstrar historicamente, que a eliminação física de inimigos é um ponto central do programa de quase toda ideologia extremista. Se isso é verdade, programas extremistas são antidemocráticos, pois não aceitam dialogar ou negociar com determinados adversários políticos, escolhidos a seu bel prazer. Quem adota posições como essa não perde a oportunidade de rebaixar, desqualificar, deslegitimar e desumanizar seus adversários e, no limite, não perderá também a oportunidade de os eliminar fisicamente, quando isso for possível.

No caso concreto, estamos diante de uma declaração feita no ambiente político pelo então candidato, Jair Bolsonaro, pessoa com mais de 30 anos de experiência nesse ramo. Além disso, Bolsonaro sempre foi um defensor declarado de posições extremistas como a utilização de violência policial contra a vida de pessoas investigadas por crimes, armar a população para defender-se de supostos marginais, a prática de tortura pelo Estado brasileiro durante a fase mais violenta da ditadura militar. São dados objetivos, algo que não se pode negar.

Por óbvio, sua declaração não pode ser avaliada corretamente sem que levemos em conta a tradição política do extremismo e a posição que Bolsonaro sempre ocupou nela, ou seja, as condições de produção do discurso, os sujeitos, a situação discursiva (o aqui e agora da enunciação, o contexto imediato, o contexto sócio-histórico ideológico), a memória discursiva e o interdiscurso.

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Muita gente tem se empenhado ativamente em negar as aparências e disfarçar as evidências para eleger e seguir apoiando Bolsonaro como um candidato minimamente moderado. Para fazer isso, deixam de falar de sua biografia e minimizam cada uma de suas declarações públicas extremistas. Mas não basta simplesmente ignorar as condições de produção do discurso para que elas deixem de cumprir seu papel determinante.

Contexto não é destino, é claro, podemos transcender nosso contexto. No entanto, não foi esse o caso e nunca foi a intenção de Bolsonaro fazer este movimento, ansiado por tanta gente. Especialmente por pessoas que de fato se sentiram incomodadas por votar em alguém que celebra torturadores notórios e afirma publicamente que pessoas devem ser fuziladas.

Com essas pessoas, digamos, moderadas, que acabaram votando em um extremista, estabeleceu-se um jogo de subentendidos bifronte. Bolsonaro seguiu e ainda segue com um discurso coerentemente extremista e seus apoiadores reconhecem e celebram isso. Enquanto isso, terceiros, muitos deles autoridades com cargos no aparelho de Estado, humoristas e celebridades, revezam-se em minimizar tudo o que ele diz, tentando negar que as condições de produção do seu discurso são relevantes para a produção de seu sentido.

Nesse jogo duplo, “matar” nunca é “matar”, mas um exagero emocional, uma piada de mau gosto, uma frase de tio grosseirão e inofensivo, uma fala protegida pela liberdade de expressão, portanto, parte do debate de ideias. “Matar” ou “atacar as regras do processo eleitoral” ou “negar a existência de uma epidemia”, tanto faz.

Na verdade, todo e qualquer político que fale em “fuzilar petistas” pode ser licitamente alinhado a uma posição extremista. No caso de Bolsonaro, não é razoável imaginar que ele tenha usado estas palavras ingenuamente ou por puro impulso. Ou ainda para defender valores liberais ou qualquer outra ideia racionalmente defensável. As condições de produção de seu discurso afastam tal interpretação. Não há argumento racional que seja capaz de me persuadir a adotá-la.

Mas é claro que as práticas democráticas não se limitam ao campo da racionalidade, ou melhor, de um pensamento que justifica racionalmente suas posições. É perfeitamente democrático tentar converter quem discorda de mim, converter moralmente ou religiosamente. A conversão a uma religião ou a uma ideologia não é racional, está ligada a sentimentos, visões, intuições que podem ser licitamente estimulados na esfera pública democrática por meio de palavras, imagens e performances de toda natureza.

É perfeitamente democrático, portanto, argumentar racionalmente para convencer pessoas a adotar determinadas ideias: também é democrático manifestar-se por quaisquer outros meios para converter pessoas a certas visões de mundo e práticas sociais. Exceto, claro, estimulando-as a praticar crimes ou praticando crimes de mão própria.

É evidente que uma pessoa que defenda a eliminação física de pessoas por fuzilamento não está utilizando argumentos racionais. Resta saber se a manifestação de Bolsonaro valeria, em um contexto democrático, como tentativa de converter alguém a uma estranha fé que crê no assassinato, ainda que não pretenda praticá-lo de fato. Digo isso pois, se admitirmos que Bolsonaro pretendia mesmo que os petistas fossem fuzilados, não restaria dúvida alguma de que houve incitação ao crime.

A mera formulação da hipótese acima soa esdrúxula. Soa totalmente implausível imaginar que possa haver manifestação pública por parte de um político extremista experiente a favor do fuzilamento de adversários sem que ele tenha a intenção real de ver tal ação efetivada, tudo isso no contexto de eleições para a Presidência, sob os holofotes da imprensa nacional e mundial.

Para que esta hipótese fizesse algum sentido, teríamos que pressupor que a mera emissão das palavras já satisfaria Bolsonaro e seus seguidores extremistas. Ou seja, em face de uma realidade em que “fuzilar petistas” seja efetivamente impossível, implausível e inadmissível, restaria, para os extremistas, apenas o prazer de dizer em voz alta o que de fato gostariam, em algum nível, de fazer de fato. Nesse caso, quem visse incitação ao crime nesta afirmação estaria exagerando ou compreendendo mal o contexto.

Não acho razoável argumentar a favor dessa hipótese, mas, para manter minhas convicções democráticas e minha crença na liberdade de expressão, vou tentar. Seja como for, já adianto que, a meu ver, a defesa verbal e pública da eliminação física de alguém, no contexto que descrevemos, deve ser considerada crime de acordo com o artigo 286 do Código Penal. Bolsonaro não está, para mim, sem sombra de qualquer dúvida, protegido pela liberdade de expressão.

Posso imaginar uma pessoa que satisfaça seus desejos homicidas ao afirmar em voz alta que gostaria de matar alguém ou assistindo a filmes violentos ou de terror extremo. Eu mesmo, José Rodrigo Rodriguez, já disse, alguma vez em minha vida, que gostaria de matar um ou dois por aí.

Mas eu nunca disse e nunca diria algo assim em uma situação pública. Jamais diria isso em um ambiente que não fosse privado ou estritamente fechado, justamente porque a mudança de contexto faria com que a minha afirmação pudesse ser interpretada de outra maneira, não apenas como um desabafo ou uma catarse sem consequências práticas.

Diante de um político extremista, candidato a presidente, que fala em “fuzilar petistas” na esfera pública, não parece razoável imaginar que estejamos diante de uma pessoa que satisfaça desejos impossíveis, seus e de seus seguidores, pela mera emissão de frases violentas. Nesse contexto, tudo o que Bolsonaro disse e diz soa como um plano, como um projeto, racional ou não, justificável racionalmente ou não, democrático ou não. De novo, são as condições de produção do discurso que autorizam tal interpretação.

Políticos, ainda mais no Executivo, podem não praticar crimes por si mesmos, podem não sair por aí comandando fuzilamentos pessoalmente. Mas, infelizmente, podem facilitar o cometimento de crimes e dificultar sua investigação articulando manobras nos bastidores do poder, que sempre envolvem pressionar aliados políticos. Ações assim, repito, infelizmente, são triviais, ao menos para as pessoas que não analisam a política brasileira com base em ideias abstratas, completamente alheias ao nosso cotidiano.

Qualquer pessoa que partilhe do senso comum da política nacional e ouviu de Bolsonaro que deveríamos “fuzilar a petralhada” certamente ouviu que, se Bolsonaro pudesse, faria de tudo para proteger quem atirasse em petistas e em outros adversários políticos. Ainda que tal proteção não se manifestasse publicamente; fosse construída de maneira insidiosa, nos bastidores do poder.

É muito perigoso normalizar extremismos no campo político democrático. Acho que não é preciso argumentar muito para justificar esta afirmação: o assassinato não pode se transformar em arma política normal em uma democracia, pois ela seria rapidamente destruída. O debate é a negação da violência física, especialmente do assassinato.

Por isso mesmo, não devemos permitir que o que foi dito com toda a clareza, “fuzilar petistas”, seja minimizado por afirmações como “não foi bem assim”, “vocês estão exagerando”, “vocês não têm senso de humor”, “eu estava só brincando”, “vocês estão tirando minhas palavras do contexto”.

Ainda mais neste caso, insisto, em que as condições de produção do discurso negam toda e qualquer relativização possível e só nos fazem levar cada vez mais a sério as intenções violentas, no limite homicidas, de um extremista histórico e plenamente coerente, eleito democraticamente presidente do Brasil.

Pois se há uma coisa de que não se pode acusar Bolsonaro é de inconsistência ideológica. Ele sempre foi fiel a seus ideais. Nunca sequer tentou negar as aparências e disfarçar as evidências. Se a coerência for, em si mesma, uma virtude, este certamente é o seu homem.