Marco Aurélio Serau Junior

Arthur Passos El Horr

No dia 5 de fevereiro, o Governo Federal expediu o Decreto n.º 10.620/2021, que – em suma – transfere competências de concessão e manutenção de aposentadoria de servidores públicos das autarquias e fundações públicas federais, antes geridas pelos próprios entes, para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A gestão do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), dos servidores da administração pública federal direta, permanecerá sendo realizada pelo SIPEC (Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal).
Do ponto de vista normativo, o decreto não apenas torna mais precário aos servidores públicos o acesso aos seus benefícios previdenciários (dificultando a fruição destes direitos, que são considerados direitos sociais fundamentais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>), como também possui flagrantes inconstitucionalidades quando: (a) estabelece dois órgãos gestores diversos para o RPPS do servidores federais; (b) promove tais modificações pela via do regulamento, seguindo uma crescente tendência de reformar o Direito Previdenciário por atos infralegais.
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Primeiramente, há de se ressaltar que a Constituição veda o estabelecimento de mais de um órgão ou entidade gestora do RPPS para o mesmo ente federativo, em seu art. 40, § 20:
Art. 40. (...) § 20. É vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social e de mais de um órgão ou entidade gestora desse regime em cada ente federativo, abrangidos todos os poderes, órgãos e entidades autárquicas e fundacionais, que serão responsáveis pelo seu financiamento, observados os critérios, os parâmetros e a natureza jurídica definidos na lei complementar de que trata o § 22.
<blockquote class="jota-article__eye">O Decreto n.º 10.620/2021 viola frontalmente tal disposição constitucional, notadamente ao estabelecer dois órgãos gestores para o RPPS dos servidores públicos federais (SIPEC para a administração direta, e INSS para a administração indireta).</blockquote>
É curioso que o próprio texto do ato normativo tenta “desviar” desta inconstitucionalidade quando expressamente diz não versar sobre órgão gestor do RPPS, precisamente no art. 1º, p. único, I:
 I - não dispõe sobre o órgão ou a entidade gestora única do regime próprio de previdência social, no âmbito da União, de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição; 
A narrativa utilizada pelo Decreto n.º 10.620/2021 tenta passar a impressão de que está em curso uma “modernização da gestão previdenciária” e que se estaria apenas a estabelecer uma “centralização gradual de atividades de concessão e de manutenção das aposentadorias e pensões” dos servidores e servidoras, seguida de uma segunda etapa, em que haverá a “facilitação da transferência” destas atribuições para o órgão que será criado nos termos do art. 40, § 20, da Constituição Federal, conforme art. 2º:
Art. 2º Até que seja instituído em lei e estruturado o órgão ou a entidade gestora única de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição, a ação da administração pública federal será direcionada à:
I - centralização gradual das atividades de concessão e de manutenção das aposentadorias e pensões, nos termos do disposto neste Decreto;
II - facilitação da transferência posterior ao órgão ou à entidade gestora única de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição.
No entanto, a inconstitucionalidade é incontornável, eis que o decreto efetivamente duplica as entidades gestoras do RPPS, subdividindo a administração da previdência social dos servidores públicos federais entre dois diferentes órgãos, o que viola o referido § 20 do art. 40 da Constituição.
Ainda no aspecto normativo, há clara violação ao princípio da legalidade. Logo no início de sua redação o Decreto n.º 10.620/2021 justifica sua expedição a partir da previsão constitucional dos “decretos autônomos” (embora haja divergência doutrinária sobre chamá-lo assim) do art. 84, caput, inciso VI, alínea “a” da Constituição, que estabelecem:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VI - dispor, mediante decreto, sobre
<ol>
<li>a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.</li>
</ol>
Ocorre, porém, que a Constituição deve ser interpretada sistematicamente, ou seja, sua hermenêutica deve levar em consideração o todo, e não apenas alguns artigos e incisos individualmente aventados. Desta feita, ainda que o presidente possa dispor mediante decreto sobre a organização da administração federal, jamais poderá versar sobre temas expressamente reservados, pela própria Constituição, à lei ou a outras espécies legislativas.
É o caso do estabelecimento de normas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade da gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social, tema reservado à edição de Lei Complementar, nos termos do art. 40, § 22, do Texto Constitucional:
<ul>
<li> 22. Vedada a instituição de novos regimes próprios de previdência social, lei complementar federal estabelecerá, para os que já existam, normas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade em sua gestão, dispondo, entre outros aspectos, sobre: (...)</li>
</ul>
Há, portanto, clara violação e extrapolação da competência regulamentar pelo Governo Federal, eis que não poderia ter versado pela via do decreto sobre tema reservado à Lei Complementar. Neste sentido é imperioso entender a estrutura e alcance do chamado “princípio da legalidade”, consubstanciado no art. 5º, II da Constituição: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Em suma, o que diz o texto constitucional é que somente a lei pode estabelecer direitos e obrigações. Aos decretos, neste sentido, é reservada somente a função regulamentar, de dispor sobre minúcias das obrigações e direitos estabelecidos em lei, sem poderem inovar no ordenamento jurídico.
O princípio da legalidade é um corolário do princípio democrático e da separação dos poderes, estabelecendo – em essência – que ninguém pode ser obrigado a nada que não passe por deliberação perante o Poder Legislativo, com sanção do Poder Executivo, e sem qualquer tipo de declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Quando são utilizados de forma exagerada os decretos e demais normas infralegais, fazendo com que passem a integrar no ordenamento jurídico uma série de direitos e obrigações que não passaram pela devida apreciação congressual, tem-se verdadeira violação ao princípio da legalidade, que representa uma violação à separação dos poderes e também à democracia<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Tal expediente, no âmbito do Direito Previdenciário, tem se tornado cada vez mais frequente, o que reflete fenômenos como o constitucionalismo abusivo e o desmembramento constitucional<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, utilizando mecanismos previstos na Constituição (como as emendas constitucionais, e neste caso, os decretos) para desfigurar sua vocação social.
Além do ora analisado Decreto nº 10.620/2021, pode-se citar, dentre outros exemplos, o Ofício Circular 64/2019, a Portaria 450/2020 e o Decreto 14.020/2020, que buscaram estabelecer a interpretação da Reforma Previdenciária (ou seja, da Emenda Constitucional nº 103/2019) a ser seguida e e adotada nas agências do INSS, sem que tenha havido a edição de qualquer lei (em sentido estrito) que tenha realizado o papel de regulamentação da referida Emenda Constitucional.
Diversos outros exemplos poderiam ser citados. Tal prática, em matéria de Direitos Fundamentais (como são os Direitos Previdenciários), torna-se ainda mais grave, eis que são direitos consagrados como os mais importantes, em grau de intangibilidade, não podendo ser abolidos sequer por emenda constitucional, tendo seu escopo de aplicação definido por normas de baixo grau de importância e legitimidade democrática<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Concluindo esta perspectiva normativa de exame do Decreto 10.620/2021, pode-se afirmar, do ponto de vista estrutural da Previdência Social no Brasil, que ele acaba por promover uma indevida confusão entre os regimes previdenciários (RGPS e RPPS), destinados constitucionalmente a pessoas e finalidades protetivas distintas (compreensão que fica nítida de uma simples leitura dos artigos 40 e 201 da Constituição Federal).
Saindo de uma análise normativa para o aspecto material, prático, vislumbra-se que o decreto em tela produz efeitos preocupantes porque sinaliza para uma futura – e eventual – extinção do RPPS. Explica-se.
A gestão de aposentadorias dos servidores públicos das autarquias e fundações públicas federais, antes do decreto era realizada pelos próprios entes em que estes desenvolvem seus cargos públicos. Via de regra, a gestão ocorria de forma adequada, com análise relativamente rápida dos pedidos de aposentadoria, bem como dos procedimentos de manutenção, entrega de documentação, prova de vida, entre outros.
Com a transferência destas competências para o INSS, que sabidamente vem sofrendo com graves problemas de estrutura e pessoal, culminando em flagrante demora para análise de pedidos dos beneficiários, o resultado prático será uma inequívoca precarização do atendimento aos servidores públicos vinculados ao RPPS, tornando este sistema previdenciário claramente ineficiente, obstruindo o acesso aos direitos fundamentais de previdência social de servidoras e servidores públicos.
Existe um notório discurso no sentido de que os direitos de servidoras e servidores públicos (previdenciários e “trabalhistas”) constituem privilégios e merecem ser suprimidos – haja vista a atual proposta de Reforma Administrativa e a já consolidada Reforma Previdenciária, que afetou muito profundamente quem ocupa cargos públicos.
O Decreto 10.620/2021 parece avançar nesse propósito de deslegitimar a ideia da existência de um eficiente sistema de previdência dirigido a quem trabalhe no serviço público – pois certamente irá trazer ao RPPS aspectos de ineficiência administrativa e morosidade que, atualmente, são vistos de modo mais comum no RGPS<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Ademais, ainda que os trabalhadores vinculados ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) não sejam atingidos diretamente pelo Decreto 10.620/2021, certamente sofrerão consequências materiais advindas do aumento de trabalho nos já enxutos quadros de pessoal da autarquia previdenciária, provavelmente levando a atrasos ainda maiores na análise dos requerimentos administrativos de benefícios.
Por todo o exposto, tanto no aspecto normativo quanto no aspecto prático, tem-se que o Decreto n.º 10.620/2021 representa mais um passo no crescente processo de desmonte da previdência social pela via dos decretos, portarias e demais atos normativos infralegais, esgotando aos poucos a própria vocação social dos Direitos Previdenciários consagrados na Constituição.
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O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=b9z7dDRHnrg
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SERAU JR., Marco Aurélio. Seguridade Social e Direitos Fundamentais, 4 ed., Curitiba: Juruá, 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> VIEIRA, José Roberto. Legalidade e norma de incidência: influxos democráticos no Direito Tributário. In: GRUPENMACHER, Betina Trieger. Tributação: Democracia e liberdade. São Paulo: Noeses, 2014, p. 932-940.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NINO, Carlos Santiago. La Justificación de la emocracia y la Obligación de Obedecer el Derecho, in Filosofia del Derecho y Democracia em Iberoamérica. Revista de Ciencias Sociales. Valparaiso, Universidad de Valparaiso, n. 34/35, 1989 t 1990, p.  151-154.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Cf. LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. UC Davis Law Review 189. 2013, p. 194-198. ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment. Yale Journal of International Law 1, 2018, p. 39.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> SERAU JR., Marco Aurélio; EL HORR, Arthur Passos. Processo de reformas das instituições de seguridade social na perspectiva do déficit democrático. In: FRANCISCO, José Carlos; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. (coords.) Crise democrática e (de suas) instituições de garantias. São Paulo: Eseni, 2021. (no prelo)
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Veja-se, por exemplo, a recente decisão do STF no sentido de homologar o acordo entre o MPF e o INSS, permitindo a ampliação dos prazos para análise de requerimentos administrativos de benefícios previdenciários no âmbito interno da autarquia previdenciária: MOURA, Rafael. STF confirma decisão que homologou acordo entre INSS e MP para zerar fila. In: Uol Economia. , [S. l.], [S. p]. 08 fev. 2021. Disponível em:  &lt;<a href="https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/02/08/stf-confirma-decisao-que-homologou-acordo-entre-inss-e-mp-para-zerar-fila.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/02/08/stf-confirma-decisao-que-homologou-acordo-entre-inss-e-mp-para-zerar-fila.htm</a>&gt;. Acesso em: 15 fev. 2021.

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JOTA

Norma transfere aposentadorias de autarquias e fundações públicas federais para gestão do INSS

Decreto n.º 10.620/2021: reestruturação inconstitucional da Previdência Social

Norma transfere aposentadorias de autarquias e fundações públicas federais para gestão do INSS