Fernanda Gueiros Bernardes

Uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo tem gerado embate e dúvidas sobre o futuro da hipoteca marítima de embarcações estrangeiras no país. O tribunal julgou inválida no Brasil uma hipoteca marítima celebrada e registrada no exterior.
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O objeto da hipoteca era um navio-plataforma FPSO. A embarcação, de propriedade de uma empresa constituída na Holanda, foi registrada na Libéria (país da bandeira). A compra do navio foi financiada no mercado de capitais da Noruega, tendo uma administradora dos títulos de dívida norueguesa registrado na Libéria a primeira hipoteca sobre a embarcação.  Após sua construção, a embarcação seguiu direto para o Brasil, onde estaria contratada para operar pelo período de 20 anos.
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No Brasil, uma instituição de financiamento brasileira pleiteou perante a justiça de São Paulo a penhora da embarcação, a fim de executar uma dívida constituída em face da proprietária do navio-plataforma. Diante do deferimento da penhora do bem, a administradora dos títulos de dívida norueguesa interveio no processo, protestando pela sua preferência na arrematação da embarcação, em razão da hipoteca devidamente constituída no exterior.
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Muitos questionamentos surgiram: A hipoteca do navio registrada na Libéria é válida e eficaz no Brasil? É possível registrar hipoteca sobre o navio estrangeiro no Brasil? Em casos como esses, deve-se aplicar a lei do país do proprietário, do país da bandeira ou do país em que se encontra a embarcação? 
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As complexas questões foram examinadas em acórdão, cujas conclusões também levaram a outros questionamentos sobre o tema. Diante da inexistência de julgados semelhantes no país, e considerando a importância deste esclarecimento para o setor marítimo, tendo-se em mente a força atribuída aos precedentes pelo Novo CPC, esse texto analisa os fundamentos da decisão do tribunal e ressalta as dúvidas e lacunas que permanecem para os casos que seguirão.
O Registro De Hipotecas Marítimas No Brasil
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A Lei n˚ 7.652/1988 dispõe sobre o Registro da Propriedade Marítima brasileira. Mas apenas a brasileira. O seu artigo 12 prevê que “o registro de direitos reais e de outros ônus que grave embarcações brasileiras deverá ser feito no Tribunal Marítimo, sob pena de não valer contra terceiros”. 
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Ainda de acordo com a mencionada lei, o registro de propriedade da embarcação será deferido à pessoa física residente e domiciliada no Brasil ou a entidade pública ou privada sujeita às leis brasileiras. Excetua-se o registro ao estrangeiro não residente e domiciliado no país tão somente para embarcações destinadas às atividades de esporte ou recreio.
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No caso, portanto, temos por certo que o FPSO de propriedade de empresa holandesa, que arvora bandeira liberiana, não poderia ser registrado no Brasil, eis que destinado a operações no setor de petróleo.
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Nos autos, informações prestadas pelo próprio Tribunal Marítimo atestavam a impossibilidade de registro da embarcação de propriedade e bandeira estrangeira.
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Além do Registro de Propriedade Marítima conferido à embarcação de propriedade de empresa brasileira ou pessoa física residente e domiciliada no país, é possível que a embarcação estrangeira, nos termos a Lei n˚ 9.432/1997, arvore bandeira brasileira, por meio do Registro Especial Brasileiro (REB), que só pode ocorrer quando a embarcação estrangeira estiver afretada a casco nu a uma empresa brasileira de navegação, e desde que suspenda provisoriamente a bandeira de origem.
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Nesse último caso, as embarcações estrangeiras são registradas no REB, sendo-lhes concedidos benefícios de ordem fiscal. Contudo, esse segundo registro não confere à afretadora brasileira a possibilidade de registrar ônus reais sobre o bem, uma vez que não detém a propriedade da embarcação.
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Ressalta-se que, no caso concreto, diante da impossibilidade de registro da embarcação no Brasil ou da hipoteca sobre ela constituída, a credora hipotecária norueguesa havia registrado a sua hipoteca através de escritura pública em cartório de Registro de Títulos e Documentos, no intuito de dar-lhe publicidade com relação a terceiros. No entanto, o acórdão restou silente em relação a tal registro.
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Assim, infere-se que é juridicamente impossível cumprir a obrigação de registro de embarcações estrangeiras perante o Tribunal Marítimo, o que tem fomentado o debate acerca da exigibilidade de tal registro para a validade da hipoteca sobre a embarcação estrangeira. 
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As Convenções Internacionais Ratificadas Pelo Brasil
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Ante a lacuna legal quanto ao registro de hipotecas sobre navios estrangeiros, os desembargadores passaram à análise das convenções internacionais assinadas e ratificadas pelo Brasil quanto ao tema: a Convenção de Bruxelas, de 1926, validada no Brasil através do Decreto 351/1935, e o Código Bustamante, internacionalizado por meio do Decreto 18.871/1929.
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A Convenção de Bruxelas dispõe que as hipotecas sobre navios regularmente estabelecidos segundo a lei do país contratante a cuja jurisdição o navio pertencer, e inscritos em um registro público, tanto pertencente à jurisdição do porto de registro, como de um ofício central, serão consideradas válidas e acatadas em todos os outros países contratantes (Artigo 1˚).
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Na hipótese em análise, como o navio pertencia à jurisdição da Libéria, que não é país signatário da mencionada convenção, os desembargadores entenderam que o disposto nessa convenção não serviria para tornar válida a hipoteca sobre o navio em questão.
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O Código Bustamante, por sua vez, prevê que a hipoteca marítima, constituída de acordo com a lei do pavilhão (país da bandeira da embarcação), possui efeitos extraterritoriais, mesmo com relação aos países cuja legislação não reconhece ou regulamenta tal hipoteca (Artigo 278).
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A despeito da previsão sobre efeitos extraterritoriais trazida pelo dispositivo acima citado, os julgadores ressaltaram que tratados e convenções internacionais se aplicam apenas para os países que aderem a eles. Logo, não sendo a Libéria signatária dessa convenção, o Código também não seria capaz contribuir para a validade da hipoteca norueguesa, registrada no Estado da bandeira (Libéria), sobre o FPSO no Brasil.
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Nesse ponto, a credora hipotecária alegou que o fato de o Brasil manter relações diplomáticas com a Libéria seria suficiente para o reconhecimento da validade da hipoteca. 
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Todavia, a decisão ressaltou que é determinante apenas o fato de o país de registro da embarcação possuir com o Brasil convenção relativa à validade de hipoteca, e ainda, que não seria relevante o fato de a embarcação arvorar bandeira de conveniência.
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Diante de tais entendimentos, conclui-se que são poucas as hipotecas de navios estrangeiros que teriam validade no Brasil. 
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Sabe-se que grande quantidade de navios hasteiam bandeiras de conveniência. Entre elas, a do Panamá, Libéria, Bahamas, Ilhas Marshall e Noruega e nada há de ilegal em tal fato. Em pesquisa realizada no site da Diretoria de Portos e Costas [1] no dia 10/03/2016, constatou-se que, das 637 embarcações estrangeiras, mais de 50% arvorava bandeiras desses 5 locais – ao todo, 331 embarcações [2]. 
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Da análise dos signatários das mencionadas convenções, conclui-se que, dessas 331, apenas as hipotecas registradas sobre os 85 navios panamenhos poderiam ser consideradas válidas e eficazes no Brasil. 
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Das demais embarcações em território brasileiro, pouquíssimas eram registradas em países signatários das mencionadas convenções internacionais. No total, aproximadamente 20% dos navios estrangeiros seriam signatários das convenções ratificadas pelo Brasil.
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A Legislação Aplicável
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No decorrer do acórdão, os magistrados também analisaram o pedido da credora hipotecária estrangeira para que fosse aplicada a lei dos Países Baixos, nos termos do artigo 8˚, §1˚ da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que diz: “Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens moveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.”
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Contudo, a turma julgadora entendeu pela não aplicação do dispositivo, mas do caput do art. 8˚, in verbis: “Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.”
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Segundo os julgadores, o §1˚ só se aplicaria aos bens móveis facilmente transportáveis, ressaltando que tal preceito não se aplicaria no caso concreto, pois a embarcação foi construída em Cingapura e seguiu direto para o Brasil, para permanecer em sua costa pelo prazo de 20 (vinte) anos.
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Pergunta-se: o que seriam bens móveis facilmente transportáveis?
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Importante notar que já se encontra consolidado em nosso ordenamento jurídico o entendimento de que um navio possui natureza jurídica de bem móvel. Assim, é cabível a aplicação da lei do país do proprietário, conforme exceção prevista no §1˚, e mais ainda quando se trata de embarcação de propriedade estrangeira, registrada em país estrangeiro e hipotecada por pessoa estrangeira.
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Contratos de longo prazo são comuns no mercado offshore, ainda mais envolvendo uma unidade de armazenamento e produção, como é o caso do FPSO.  O fato de uma embarcação permanecer na costa por muito tempo não é capaz de mudar a sua natureza jurídica de bem móvel, conforme artigo 82 do Código Civil. E se o contrato de 20 (vinte) anos se encerrar antecipadamente? 
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Na verdade, é a bandeira que define a nacionalidade de uma embarcação. Arvorando sua bandeira, o navio passa a fazer parte do território daquela nação.
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Contudo, vê-se que pesou aos julgadores, conforme ressaltaram, o fato de a executada proprietária do FPSO compor um grupo empresarial brasileiro, embora estivesse constituída como pessoa jurídica autônoma. Além disso, a embarcação estaria afretada a outra pessoa jurídica do mesmo grupo. 
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Diante de tais peculiaridades, de acordo com os magistrados, “ainda que fosse possível a aplicação da lei holandesa, à luz do art. 8˚, §1˚, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o que já afastado acima, essa possibilidade deveria ser verificada de forma cautelosa.”
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Embora não examinado no acórdão, o disposto no artigo 9˚da LINDB também poderia ser aplicável ao caso. Vejamos:
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“Art. 9˚ Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.”
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Nesse caso, aplicar-se-ia a lei do pavilhão, ou seja, a lei da Libéria. Ainda, diz o §1˚ desse artigo, que se a obrigação for executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será observada a lei brasileira, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos. Ou seja, a validade seria analisada nos termos da lei liberiana e a execução, segundo as leis do Brasil.
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O Futuro das Hipotecas Estrangeiras No Brasil?
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As conclusões do acórdão do TJSP trazem uma situação de extrema insegurança para a hipoteca estrangeira no Brasil, fora dos casos dos países que ratificaram as Convenção de Bruxelas de 1926 e o Código Bustamante (Convenção de Havana, 1928), o que corresponde à minoria dos navios estrangeiros atualmente em operação no Brasil.
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A decisão, ainda que não seja definitiva, já alerta o mundo marítimo sobre possível tendência da justiça brasileira a outros tantos casos de embarcações estrangeiras hipotecadas e em operação no território brasileiro. 
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O acórdão está sujeito a recurso para os Tribunais Superiores. O posicionamento do STJ poderá trazer uma orientação mais segura acerca do entendimento do Brasil e espera-se que as dúvidas pendentes sobre o assunto sejam sanadas, com a correta aplicação do arcabouço legal existente sobre a matéria. 
Por fim, ressalto que é preciso ter cautela para não afugentar investimentos estrangeiros de um Brasil que já vive uma grave crise econômica, sendo ainda imperioso que o nosso país e a nossa legislação se adapte à realidade do setor marítimo e petrolífero no mundo, pois é grande o impacto que o setor possui em nossas relações internacionais.
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[1] https://www3.dpc.mar.mil.br/sisgevi/consultainternet/relat_ait_ajb_validos_internet_criterio_selecao.asp
[2] Não incluídas na contagem aquelas que hasteavam a bandeira brasileira, por meio do REB.

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JOTA

Tribunal julgou inválida hipoteca celebrada e registrada no exterior

Decisão do TJSP gera insegurança sobre futuro da hipoteca marítima no Brasil

Tribunal julgou inválida hipoteca celebrada e registrada no exterior