Paulo Thadeu Gomes da Silva

Uma decisão judicial, seja ela monocrática, seja colegiada, pode ou não apresentar, em seu conteúdo, o que se denomina, em latim, de obiter dictum, que significa “alguma coisa dita de passagem”, incidental ou colateralmente, mas que não é necessária à decisão do caso ou, para os que militam na área, não faz parte da ratio decidendi<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Já o fait divers é, para o jornalismo, uma informação geral, e não específica, constituída por relações de causalidade e coincidência. Serve a várias formas de comunicação, seja jornalística, seja literária ou mesmo cinematográfica.
Para além de as duas expressões serem escritas e citadas em línguas diferentes da portuguesa – obiter dictum em latim; fait divers em francês –, pode-se pensar em uma relação a ser estabelecida entre elas, sem embargo de não haver propriamente uma teoria a seu respeito, apesar de, no direito, sempre existir uma inexplicável tentativa de se transformar qualquer compreensão judicial em teoria – ignorando-se, por completo, em que ela realmente se constitui.
Em um artigo cujo título é Structure du fait divers<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, Roland Barthes costura algumas ideias a respeito do tema, sem o propósito de construir uma teoria do fait divers. Para ele o fait divers é uma informação total ou imanente, ou seja, ele contém em si mesmo todo seu saber<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Um exemplo que ele fornece é sobre um assassinato, que se é político, é uma informação; se não é, é um fait divers<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. O que se pode extrair, ao menos por ora, do que foi escrito por Barthes é que um fait divers é uma informação que se veicula sobre um fato banal, comum, ordinário acontecido e que não merece muita atenção, algo como não tendo um valor histórico.
Com o obiter dictum se passa mais ou menos a mesma coisa. Palavras que não são necessárias à decisão que se profere em um caso jurídico, elas servem, quando muito, de reforço retórico ao que se quer dizer, mas não parece possuir força suficiente a influenciar na produção do ato judicial maior e final que é a decisão.
As semelhanças de um com o outro representam-se, por exemplo, pela característica do ordinário, assim como pela presença, nem sempre necessária, de uma certa ironia ou mesmo de uma blague: o pitoresco que se torna comédia.
As diferenças, também aqui para além de um ser inerente ao direito e o outro a outras formas de comunicação, residem em que uma decisão judicial, contendo ou não um obiter dictum, pode se constituir, por si mesma, em um fait divers, ou, de outra forma, conter, em seu corpo, um fait divers representado por um obiter dictum: vale dizer, enquanto um obiter dictum pode estar contido em um fait divers, este não se encontra contido naquele, não havendo, portanto, uma necessária correspondência entre eles. Isso é o mesmo que dizer que um fait divers tem a potência de tornar uma decisão judicial um mesmo fait divers, enquanto que um obiter dictum, não; quando muito, um obiter dictum consegue se constituir em parte da decisão em que é expresso.
Um exemplo de decisão judicial que se constitui ela mesma em um fait divers é a proferida no Habeas Corpus 121903<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, em que o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem de ofício para determinar o trancamento da ação penal. O caso teve como paciente uma pessoa de nome Afanásio – o que, por si só e com o devido respeito, já demonstra uma relação de absurda coincidência entre autor e fato, desde que se pense que um dos significados do verbo afanar é, exatamente, ao lado de trabalhar ativamente e conquistar, furtar –, quem, segundo a acusação, teria furtado um galo e uma galinha no valor de quarenta reais. Houve, no caso, a aplicação do princípio da insignificância – além do pequeno valor do bem, o réu era primário e possuía bons antecedentes.
Aqui o que parece caracterizar a decisão judicial é o fato pitoresco do qual tratou, ele, sim, um fait divers, e não a decisão propriamente dita. Essa constatação não invalida o raciocínio segundo o qual uma decisão pode, por si mesma, se constituir em um fait divers, primeiro porque essa é a característica que, conforme Barthes, marca um fait divers – sua imanência, bastante em si mesmo –, e segundo porque, a depender de como for noticiada, o caráter pitoresco do fato que a embasou como que transfere a ela, decisão, essa mesma índole. Decisão judicial e fato fundem-se para produzir um fait divers.
Outra situação é aquela em que obiter dicta são manifestados em uma decisão judicial, mas sem a força de tornar essa mesma decisão um fait divers: quando muito, eles mesmos, obiter dicta, podem ser caracterizados como tal.
Sem prejuízo de outros, dois casos jurídicos julgados pelo Supremo Tribunal Federal podem se enquadrar nesse tipo: os debates travados no Habeas Corpus 82424 e na ADI 2.076.
O Habeas Corpus 82424<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> tratou de um caso que se tornou famoso. O paciente era Siegfried Ellwanger, quem havia publicado alguns livros considerados anti-semitas, caracterizando a prática do crime imprescritível de racismo, e a ordem foi denegada. A decisão conta com 488 páginas e, para o que interessa a este artigo, nas páginas 763-765 se encontram os debates pertinentes entre os Ministros Nelson Jobim e Carlos Ayres Britto.
Min. Nelson Jobim: Sim, mas V. Exa. está examinando toda uma prova sem ter os autos em mãos, pois tem os elementos que vieram no habeas corpus. V. Exa. está revendo um juízo material de valor emitido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em relação à matéria. Ou seja, estamos nos erigindo em terceiro grau de jurisdição para efeito de rever a decisão penal? Sendo que as condutas tipificadas não se realizaram em determinado momento e, se assim não aconteceu, não se caracterizava um crime? Estamos invertendo todo o processo.
Min. Carlos Ayres Britto: Como diria Camões, redivivo: “Cessa tudo que a antiga musa canta que outro valor mais alto se alevanta”.
Min. Nelson Jobim: Camões não conhecia Processo Penal. V. Exa. está pretendendo que o Tribunal, com Camões ou sem Camões, ponha-se no lugar do Tribunal de Justiça para emitir um juízo de valor sobre a conduta realizada. E a questão posta aqui é: é imprescritível ou não?
Min. Carlos Ayres Britto: É que se trata de impedir a consumação de nulidade absoluta: a retroatividade incriminadora da lei.
E assim prosseguiram os debates.
O que interessa para a análise aqui empreendida é a introdução, na decisão judicial, por parte de quem competente a tanto, de um elemento como que estranho ao jurídico, representado pela poesia, o que acabou por gerar uma consequência talvez inesperada, que foi a resposta, em forma de espontânea refutação, por parte de outro ministro, pela afirmação de que o vate não conhecia processo penal, ou seja, não era um versado em direito.
Desde que consideradas obiter dicta, i.e., passagens incidentais ou colaterais que não têm influência sobre a própria decisão, essas afirmações podem, também, se constituir em um fait divers manifestado no corpo da mesma decisão, e isso porque elas são, em si mesmas observadas, uma informação total ou, nas palavras de Barthes, imanentes, pois que significam por si mesmas alguma coisa, não dependendo do contexto do que estava sendo discutido no processo: o ponto da discussão, a “querela” se referia apenas ao fato de que um verso de uma poesia foi lançado na qualidade de argumento jurídico – quiçá de fundamentação –, mas de pronto repelido justamente porque seu autor era um poeta, e não um jurista. No limite, e remetendo-se o leitor à teoria sistêmico-luhmanniana, poder-se-ia argumentar que uma poesia não consegue produzir comunicação jurídica no direito. Fosse Camões formado em direito talvez a interpretação pudesse mudar; mas esta é apenas uma conjectura.
A ADI 2076<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> foi proposta pelo PSL – Partido Social Liberal tendo em vista a omissão, no Preâmbulo da Constituição do Acre, da expressão “sob a proteção de Deus”, e foi julgada improcedente. Para o que diz respeito a este artigo, interessa o voto do Min. Sepúlveda Pertence:
Sr. Presidente, independentemente da douta análise que o eminente Ministro-Relator procedeu sobre a natureza do preâmbulo das constituições, tomado em seu conjunto, esta locução “sob a proteção de Deus” não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariani, em 1946, na observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória pelos Estados-membros.
Se no Habeas Corpus 82424 o Ministro Nelson Jobim demonstrou uma enorme espontaneidade ao afirmar que Camões não conhecia processo penal, aqui o Ministro Sepúlveda Pertence manifesta, de saída, uma forte presença de espírito, ao afirmar que seria uma pretensão – desproporcional e metafísica, por certo – criar obrigação jurídica para a divindade invocada.
Para que se fizesse entender, por certo que bastaria ao ministro dizer que a locução em análise não se constituía em norma jurídica, algo como uma locução declaratória, mas sem sanção. Entretanto, aditou às suas razões a frase ora comentada. Ao fazer isso, o ministro inseriu em uma decisão judicial uma passagem que apenas tangenciava o fundamento de decidir, ainda que fosse ela, ao menos a nosso ver, persuasiva: proferiu, dessa forma, um obiter dictum – juridicamente pensando, a locução não é norma jurídica porque, ao nível manifesto, consta de disposição preambular, e não porque, ao nível latente, cria obrigação jurídica para a divindade.
Contudo, a ação não para por aí. É que a produção de um obiter dictum pode trazer consequências sobre as quais não se tem o menor controle – jurídico, por óbvio: um exemplo disso é a análise aqui empreendida, que não é propriamente jurídica. Uma delas é exatamente a sua conversão em um fait divers, o que acabou por acontecer na ADI aqui analisada. É que ela também diz por si mesma tudo o que quer dizer, seja de forma manifesta, seja de forma latente. De forma manifesta transmite a ideia de que a locução “sob a proteção de Deus” não é norma jurídica porque, ao que parece, se constitui em verdade autoevidente. Aqui também quer dizer que não parece possuir força para produzir comunicação jurídica, a despeito de a ter para a comunicação religiosa: sistemas diferentes, comunicações distintas.
Já a latência do que vem implícito ao discurso se refere por certo a uma suposta crítica à própria ação proposta, de molde a que seria uma bizarrice – característica do fait divers – tratar e julgar pedido dessa natureza. A crítica fica mais nítida quanto mais se lê nas palavras do ministro que a afirmação “sob a proteção de Deus” constante do Preâmbulo da Constituição brasileira é jactanciosa e pretensiosa, pois que talvez demonstrasse uma preocupação da divindade com o mesmo documento constitucional.
Para o ateu a locução é algo em si mesmo jactancioso ou bazofiador; para o crente, ao menos aquele residente no Estado do Acre, a mesma locução pode ter um significado diferente, algo como uma benção que se derrama da Constituição. Em ambos os casos, é importante destacar que, nesse voto do ministro, há uma relação de causalidade no que afirmado: a locução “sob a proteção de Deus” não é norma jurídica porque é humanamente impossível criar obrigação jurídica para a divindade e vice-versa. Relação de causalidade, recordemos, é uma das que constituem o fait divers.
As situações aqui retratadas, sejam em sede de habeas corpus, sejam em controle concentrado de constitucionalidade, podem apresentar, de igual efeito, uma relação de coincidência traduzida na repetição de eventos, i.e., nem esse habeas corpus nem essa ação direta de inconstitucionalidade foram os últimos casos jurídicos nos quais o obiter dictum pode se manifestar travestido de fait divers.
De todo modo, é curioso notar que mesmo uma decisão judicial, comunicação jurídica produzida pelo sistema jurídico, pode trazer em seu conteúdo tanto a forma quanto a matéria de uma informação pertencente a outros sistemas, desde que ela, a mesma decisão judicial, possa ser transformada em comunicação própria por esses mesmos outros sistemas, vale dizer, é como imaginarmos de que maneira seriam noticiados os casos jurídicos e suas respectivas passagens aqui esquadrinhados: Afanásio e o furto de galinhas, Camões não entende processo penal e Constituição não pode criar obrigação jurídica para a divindade. As manchetes, como se pode perceber, sozinhas não dizem muita coisa, mas no corpo das decisões possuem uma força absoluta para significar o que se propõem: são imanentes nos corpos das decisões judiciais, mas não fora deles, o que, levado o raciocínio ao extremo, se constitui em uma contradição, pois que justamente a característica do fait divers é a sua imanência.
Resta saber se essa contradição pode ser dissolvida pelo direito penal, pela poesia ou pela religião, empreendimento que é matéria bruta para outro artigo.
+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/coluna-novo-cpc">Coluna do Novo CPC</a>
+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/supra">Coluna Supra – Supremo Interpretado</a>
+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/coluna-do-iddd">Coluna do IDDD</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Black´s Law Dictionary, ThomsonWest, St. Paul, 2007, p. 1102.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> In Essais critiques, Seuil, Paris, 1964, p. 194-204.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Idem, p. 195.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Idem, p. 194.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Rel. Min. Luiz Fux, 20.5.2015.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Rel. para o Acórdão Min. Maurício Correa, 19.3.2004.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Rel. Min. Carlos Velloso, 8.8.2003.

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Uma reflexão sobre a interpretação de textos dentro do Direito e de outras áreas do conhecimento 

Decisão judicial, obiter dictum e fait divers

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