João Paulo Alves Justo Braun

No recente julgamento do ARE 1.331.340, divulgado em 25 de outubro de 2021, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou monocraticamente seguimento ao recurso interposto por companhia aérea em ação regressiva de ressarcimento ajuizada por seguradora, em que se discutia danos a cargas transportadas.
A decisão teve alguma repercussão no meio jurídico, inclusive motivando reportagens na imprensa especializada<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
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Todavia, para os que acompanham de perto o tema, é seguro dizer que a decisão não altera em nada o atual panorama sobre a matéria.
Para que se possa entender a importância (ou não) da decisão ora em debate, é necessário examiná-la na íntegra.
Da leitura do voto, se observa que o magistrado do STF assentou que, segundo o tribunal de origem, “o caso dos autos distingue-se da matéria debatida no tema 210 da repercussão geral, posto que, neste paradigma, discutiu-se o direito de indenização pleiteado em caso de extravio de bagagem por transporte de passageiros quando estes são os destinatários finais do serviço prestado, enquanto que o caso dos autos se refere ao direito de regresso de seguradora que pagou indenização em razão de danos decorrentes do extravio de mercadoria no transporte aéreo de carga em situação em que a empresa contratante do seguro não é a destinatária final das mercadorias”.
Em vista disso, concluiu que o caso dos autos “não guarda perfeita identidade com o mencionado caso paradigma” e que “a matéria debatida no acórdão recorrido restringe-se ao âmbito infraconstitucional, posto consistir na aplicação de regras do Código Civil sobre responsabilidade civil, de modo que a ofensa à Constituição, se existente, seria reflexa ou indireta”.
Como se observa, o ministro simplesmente realizou um juízo de admissibilidade e entendeu que, no caso sub examine, o debate girava em torno de matéria infraconstitucional, de modo que eventual ofensa ao texto constitucional não seria direta, como exige a jurisprudência do STF.
A verdade é que o que há de mais relevante no precedente em análise não é o que nele se afirma expressamente, mas sim o que ele não diz.
O tema 210 da repercussão geral foi assim definido por ocasião do julgamento do RE N° 636.331/RJ: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montréal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.
Percebe-se que o enunciado do tema 210 é literal ao mencionar o transporte aéreo de passageiros e a aplicação das Convenções Internacionais em detrimento do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, à luz dos esclarecimentos feitos na decisão, de que o caso sub judice versava sobre transporte de cargas e que não se debateu a incidência da lei consumerista, não chega a surpreender que o STF, com seus exigentes critérios para admissão dos recursos que chegam àquela corte, tenha entendido que o encaixe com o tema 210 não era perfeito.
Ademais, é bem verdade que não é a primeira vez que o STF decide pelo afastamento da incidência do tema 210 ao transporte de cargas, o que se verifica a partir dos diversos precedentes mencionados pelo ministro Gilmar Mendes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que só faz reforçar a ausência de relevância da decisão em termos de ineditismo ou de orientação da jurisprudência brasileira.
Todavia, o que a decisão no ARE 1.331.340 não afirma, e tampouco o faz qualquer outro dos precedentes nela registrados, é que as Convenções de Varsóvia e Montréal não devem ser aplicadas ao transporte internacional de cargas pela via aérea. Por via reflexa, os precedentes também não se pronunciam sobre a legalidade da limitação da indenização no transporte de cargas – logo, não a invalidam.
Com efeito, ao deliberar que o transporte de cargas não está abrangido no tema 210, a Excelsa Corte está fazendo uma interpretação literal de seu enunciado – equivocada em nosso sentir – afastando a automática submissão de tais casos à tese com efeitos de repercussão geral e concluindo que o assunto versa sobre questão infraconstitucional, o que impossibilita sua análise na instância extraordinária.
Entretanto, isso não significa dizer que o racional adotado no julgamento do RE 636.331/RJ, que originou o tema 210, não pode ser aplicado por outros tribunais ao decidir a respeito da matéria.
<blockquote class="jota-article__eye">Embora se refira expressamente ao Código de Defesa do Consumidor em sua ementa, o espírito do julgamento do RE 636.331/RJ é no sentido de que as Convenções Internacionais especiais sobre a matéria de transporte aéreo internacional devem prevalecer sobre a legislação geral comum e que a limitação de indenização nelas prevista não afronta o ordenamento jurídico pátrio.</blockquote>
E essa inteligência é adotada quase que de maneira unânime pelas cortes inferiores ao apreciar disputas envolvendo o transporte aéreo internacional de cargas, notadamente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e seus incontáveis precedentes, como se colhe, por exemplo dos seguintes, da lavra de diferentes ministros: AgInt no REsp 1874764/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 29/06/2021, AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp 1662947/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe 14.04.2021, AgInt no AREsp 1613062/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 23.10.2020, AgInt nos EDcl no REsp 1790981/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 01.09.2020, AgInt nos EDcl no AREsp 1605415/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 19.11.2020.
É oportuno transcrever trecho da decisão proferida no REsp  1341364/SP, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, DJe 05/06/2018:
"Dessarte, segundo entendo, mesmo em não se tratando de bagagem – isto é, de um conflito em relação de consumo, tal qual o solucionado no mencionado precedente vinculante da Suprema Corte –, estando superados os fundamentos de índole constitucional para afastar a aplicação da Convenção de Montréal – e também o reconhecimento da existência de regra de sobredireito constitucional a prestigiar a observância aos tratados acerca de transporte internacional –, é inequívoco que a questão em debate é disciplinada por esse diploma transnacional".
Como se percebe desta decisão e dos muitos outros precedentes apontados, a jurisprudência pátria reconhece que o tema 210 foi fixado em caso envolvendo o transporte de bagagem, mas nem por isso deixa de aplicar o mesmo raciocínio a lides que versam sobre o transporte de cargas.
E nem poderia ser diferente, posto que não se pode conceber que as Convenções de Varsóvia e Montréal devam prevalecer quando confrontadas com o Código de Defesa do Consumidor – que tem raiz constitucional – e que não se alcance a mesma conclusão na hipótese de cotejo com a lei civil comum.
O principal tema de interesse forense nessas ações – a limitação da indenização a ser paga pelo transportador aéreo em caso de dano ou extravio de carga – é também expressamente admitida por outra legislação específica do setor, o Código Brasileiro de Aeronáutica (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565compilado.htm">Lei 7.565/85</a>, artigo 262).
Aliás, arrematando a questão, o próprio ministro Gilmar Mendes, ao julgar o ARE 1.164.624 ED-AgR, DJe 17.06.2020, em que se discutia questões relativas ao transporte de mercadorias, esclareceu o alcance do tema 210:
“De fato, reconheço que o tema 210 trata da limitação de indenizações, com fundamento na Convenção de Varsóvia e Montréal, por danos decorrentes de extravio de bagagem. No entanto, como é próprio da sistemática da repercussão geral, este tribunal pacificou a questão jurídica de fundo, qual seja: a controvérsia acerca da possibilidade de limitação de indenização por legislação internacional especial, devidamente incorporada à ordem jurídica brasileira”.
À luz do exposto, o que se pode concluir é que a decisão proferida no ARE 1.331.340 deve ser tomada por seu valor de face: um bom exemplo da jurisprudência defensiva do STF, com o seu conhecido rigor excessivo no exame dos requisitos de admissibilidade recursal.
O julgado não traduz uma mudança de entendimento do STF, não afasta a aplicação da Convenção de Montréal ao transporte aéreo internacional de cargas ou declara ilegal a indenização tarifada prevista em tal diploma.
Tudo como dantes no quartel d’Abrantes.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.migalhas.com.br/quentes/355039/gilmar-mendes-exclui-transporte-de-cargas-de-tema-210-e-nega-recurso">https://www.migalhas.com.br/quentes/355039/gilmar-mendes-exclui-transporte-de-cargas-de-tema-210-e-nega-recurso</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RE 1331104, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 21.7.2021; ARE 1295601, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 24.2.2021; ARE 1268616, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 21.09.2020.

avião

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JOTA

Recurso discutia a limitação da indenização a ser paga pelo transportador aéreo em caso de dano ou extravio de carga

Decisão de Gilmar Mendes não altera panorama no transporte aéreo de cargas

STF analisou limitação da indenização a ser paga pelo transportador aéreo em caso de dano ou extravio de carga