Eric Hadmann Jasper

Matheus Carvalho

Viagens no tempo são ferramentas usadas com frequência no cinema para discutir temas profundos, como no filme “A Chegada” de Denis Villeneuve, ou apenas para nos divertir, como em “De volta para o futuro”, onde acompanhamos as desventuras de Marty Mcfly e Dr. Brown nos Estados Unidos de 1955.
Da mesma forma da personagem de Amy Adams ou de Michael J. Fox, o Cade também pode se transportar para o futuro (das empresas e pessoas físicas investigadas) por meio da aplicação de sanções que produzem efeitos na esfera jurídica dos sancionados a partir da data da sua aplicação e continuam reverberando por meses, quiçá anos.
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Diferentemente de multas, que se referem a um evento passado (i.e., a conduta de cartel) e, uma vez adimplidas (ou, porque não, anuladas no Judiciário), encerram seus efeitos práticos, as penalidades que se projetam no futuro são aquelas elencadas no artigo 38 da Lei 12.529/11, como a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação, por prazo não inferior a cinco anos, a proibição de exercer o comércio em nome próprio e a não concessão de parcelamento de tributos federais por prazo estabelecido pela autoridade.
Importante destacar que a questão não é saber se o Cade pode ou não “pilotar” esse DeLorean e aplicar sanções com efeitos prospectivos prolongados, mas analisar quais pressupostos autorizam o seu exercício.
Por óbvio, é impossível que uma norma abranja todas as possibilidades lógicas e indique, com precisão, quais os casos em que haverá a subsunção de seu conteúdo abstrato ao caso concreto. Todavia, através de orientações legais é possível apresentar um balizamento mínimo para reduzir a insegurança dos jurisdicionados.
De acordo com a Lei 12.529/11, as sanções previstas no artigo 38 serão aplicadas, sem prejuízo da incidência das penas pecuniárias do artigo 37, quando “assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral”. Nítido que os critérios de “gravidade dos fatos” e “interesse público geral” são essencialmente indeterminados, razão pela qual a aplicação das sanções prospectivas merece fundamentação e justificação pormenorizadas e específicas.
Um exemplo prático pode ser observado no processo administrativo nº 08700.004455/2016-94. Em suma, a discussão no Cade teve origem em ofício enviado pela Superintendência Regional da Polícia Federal em Pernambuco que, após Inquérito Policial, encontrou indícios de fraude em diversos procedimentos licitatórios destinados ao fornecimento de material escolar e de escritório a entes da Administração Pública municipal.
Sem entrar no mérito da existência ou não do ilícito, o Cade, vencido o conselheiro Maurício Oscar Bandeira Maia no que diz respeito à imposição de sanções acessórias, entendeu que a gravidade da conduta e o montante da sanção pecuniária estabelecida indicavam que somente a punição financeira “não seria suficiente para satisfazer as finalidades dissuasória (educativa) e repressiva das penas”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, sendo essa a principal fundamentação para as penas prospectivas.
Outras jurisdições, por sua vez, buscam critérios mais objetivos visando à diminuição da instabilidade do sistema e o aumento da previsibilidade das decisões da autoridade. Por exemplo, a autoridade concorrencial do Reino Unido – a Competition and Markets Authority (CMA) – pode, diante de infração, aplicar uma disqualification order, que nada mais é do que a possibilidade de proibir a pessoa física de assumir cargo de direção<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Para tanto, dois requisitos são indispensáveis. Primeiro, é necessário que a empresa que essa pessoa física administra ou dirige tenha cometido um ilícito sob a perspectiva concorrencial. E, em segundo lugar, que este diretor/administrador seja considerado inapto para o cargo de gestão.
Para constatar a inaptidão, o CMA utiliza a parte 7, 204, 9A do Enterprise Act 2002 e o Guidance on Competition Disqualification Orders<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, segundo o qual a punição do referido diretor depende de prova de que: (i) tenha contribuído para a concretização da infração; (ii) apesar de não ter contribuído, possuía razões, diante do contexto, para acreditar que um ilícito antitruste estava ocorrendo e não adotou nenhuma medida para freá-lo; ou (iii) não sabia, mas deveria saber, que o ato seria considerado ilícito à luz do ordenamento. Ou seja, há critérios objetivos e claros para a aplicação de uma penalidade que afetará o comportamento futuro do executivo.
Além disso, a Diretiva 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, no seu artigo 57, 4, (d), possibilita que a autoridade adjudicante exclua, de ofício ou mediante requerimento do Estado-Membro, um agente econômico de procedimentos públicos, por um prazo máximo de três anos, sempre que detiver indícios suficientemente plausíveis de que celebrou acordo com outras empresas para distorcer a concorrência<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a><a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Trata-se da impossibilidade de contratar com a Administração Pública em decorrência de uma infração concorrencial, a exemplo do que permite a Lei nº 12.529/11. Contudo, existe a possibilidade de o agente econômico fornecer, no decorrer do processo e como medida de direito de defesa, evidências de que foram aplicadas medidas de “saneamento” (self-cleaning measures) com o objetivo de evitar a exclusão em procedimentos futuros, conforme preceitua o artigo 57, 6. da Diretiva<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em outras palavras, ainda que haja justa causa para exclusão em procedimentos futuros, é dado ao agente econômico infrator, em homenagem ao contraditório-influência e a vedação à decisão surpresa, a possibilidade e oportunidade de se defender em relação à sanção prospectiva, de modo que, comprovada sua “reabilitação”, não haverá a aplicação da exclusão em procedimentos futuros de contratação pública.
Ainda neste ponto, caso as medidas implementadas pelo agente sejam consideradas insuficientes, é dever da Administração Pública enviar ao agente exposição de motivos explicitando as razões pelas quais as evidências apresentadas não foram capazes de modificar a decisão de exclusão.
Por fim, considerando que a potencial exclusão, que pode vir a se propagar no tempo, poderá resultar na limitação da concorrência e na restrição da escolha pelo adquirente público, o mesmo guia estabelece que esta medida deve ser usada em última instância, quando não houver possibilidade de garantir a idoneidade futura do possível adjudicatário<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Observa-se, portanto, para além das atuais discussões sobre a aplicação ou não do critério de vantagem auferida, há necessidade de profunda reflexão sobre os critérios (ou ausência deles) para a aplicação de penalidades de naturezas e efeitos tão diferentes como as sanções retrospectivas (i.e., multas) e sanções prospectivas (e.g., proibição de participação em licitações). É fundamental e urgente que passemos a apresentar profunda e específica fundamentação para penalidades que impactam o futuro dos agentes econômicos, seus executivos e o próprio mercado, para além da suficiência ou não das penalidades retrospectivas ou dos critérios abstratos de “gravidade dos fatos” e “interesse público geral”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Trecho do voto do Conselheiro-Relator Luiz Hoffmann: “318. Considerando o montante das multas apresentadas acima e examinando a gravidade da conduta analisada no caso concreto, torna-se forçoso concluir que a imposição tão somente da sanção pecuniária no caso em tela não seria suficiente para satisfazer as finalidades dissuasória (educativa) e repressiva das penas. Há que se rememorar se tratar de conduta de alto grau lesivo, cometida em nítida má-fé e que possuiu longa duração. 319. Nesse sentido, considerando a recomendação dada pelo MPF nestes autos, voto, adicionalmente, pela sanção de proibição às pessoas jurídicas e físicas Representadas de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, durante o prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 38, inciso II, da Lei no 12.529/2011. 320. Além de tal sanção, também reputo necessário impor a sanção de proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica, durante o prazo de 5 (cinco) anos, contado da data da decisão do Tribunal do Cade acerca deste Processo Administrativo, nos termos do art. 38, inciso VI, da Lei no 12.529/2011, aos Representados: (i) Luís de Oliveira; (ii) Sérgio Ricardo de Carvalho Dantas; (iii) Evaldo Soares de Lima; (iv) Sérgio Roberto Ramos de Melo; e (v) Paulo Sérgio Costa da Purificação. Ao meu ver, esta sanção complementar assegura que a sanção de proibição de contratação com a Administração Pública não reste inócua e não seja burlada pelos Representados, que já utilizaram reiteradamente – como modus operandi do cartel – a criação de empresas de fachada, bem como a alteração de objeto e razão social de pessoas jurídicas de forma a implementar a conduta anticompetitiva.”
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Competition disqualification order” foi introduzida no Reino Unido através do Enterprise Act 2002. Para acesso ao inteiro teor: <a href="https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2002/40/contents">https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2002/40/contents</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Inteiro teor do Guia editado pelo CMA pode ser acessado em : <a href="https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/910485/CMA102_Guidance_on_Competition_Disqualification_Orders__FINAL__PDF_A-.pdf">https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/910485/CMA102_Guidance_on_Competition_Disqualification_Orders__FINAL__PDF_A-.pdf</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “4. Contracting authorities may exclude or may be required by Member States to exclude from participation in a procurement procedure any economic operator in any of the following situations […] (d) where the contracting authority has sufficiently plausible indications to conclude that the economic operator has entered into agreements with other economic operators aimed at distorting competition. 7. [...] Where the period of exclusion has not been set by final judgment, that period shall not exceed five years from the date of the conviction by final judgment in the cases referred to in paragraph 1 and three years from the date of the relevant event in the cases referred to in paragraph 4”. O inteiro teor do documento pode ser acessado em: <a href="https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024">https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nos termos do tópico “5.8” do Guia, a decisão é dada pela autoridade responsável pelo procedimento licitatório não exigindo que seja feita consulta à autoridade da concorrência. No entanto, há recomendação para seja realizado este esforço de cooperação: “The Directives do not require the contracting authority to seek advice from the national central procurement or competition authority before deciding whether to exclude an economic operator from an award procedure. However, it is generally advisable for contracting authorities to make use of any available assistance as soon as they identify a suspicious tender. Expert advice from those authorities would facilitate the overall assessment of the case, assist the contracting authority in properly justifying the choices made and thus substantially reduce the risk of a successful legal challenge of the final decision.”
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> De acordo com a Diretiva 2014, só não pode fazer uso das medidas de demonstração de fiabilidade para o operador econômico que tenha sido condenado, por decisão transitada em julgado, de participar em procedimentos de contratação pública ou concessão, nos Estados-Membros onde esta decisão produz efeitos.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> “Generally, contracting authorities have to remain conscious at all stages of the award procedure that excluding an economic operator from the procedure results in effectively limiting competition and choice for the public buyer. It is a measure to be used with caution (especially in sectors where there is a limited number of active economic operators) and only if the integrity and reliability of the future contractor cannot be ensured by other, less drastic measures.”

DeLorean

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JOTA

O Cade também pode se transportar para o futuro por meio de sanções que continuam reverberando por meses, quiçá anos

'De volta para o futuro' e o Direito da Concorrência

O Cade também pode se transportar para o futuro por meio de sanções que continuam reverberando por meses, quiçá anos