Flávio de Leão Bastos Pereira

O mês de março é significativo para a história da democracia e dos direitos humanos. Foi em 23 de março de 1933 que o Parlamento da Alemanha (Reichstag) aprovou a Lei Plenipotenciária que abriu caminho para a ditadura nazista, uma vez que permitiu a Hitler a imposição de leis sem a aprovação prévia do Parlamento alemão. Como propôs Hobbes, o poder soberano se caracteriza pela possibilidade de impor comportamentos; para Bodin, é o poder de impor leis.
Março também marca o golpe militar na Argentina, especificamente no dia 24, em 1976. Para nós, brasileiros, 31 de março assinala o golpe de Estado, em 1964, que destruiu a democracia não apenas no Brasil, mas que abriu caminho para outras ditaduras na América Latina.
Se considerarmos os exemplos históricos acima, podemos estabelecer uma conexão interessante para aqueles que se dedicam aos direitos humanos, em suas respectivas trincheiras (na Academia; no ativismo político; nas Artes etc.): o nazismo praticou em solo europeu as técnicas de opressão, tortura e extermínio que já eram testadas sobre as vítimas dos continentes colonizados. De fato, como afirma Boaventura Souza Santos, a segunda guerra somente foi “mundial” pois os soldados das colônias europeias foram levados para lutar e morrer no velho continente. 
Ainda mais, a partir do nazismo ficou claro que o terrorismo de Estado, expressão cunhada ainda durante o regime de terror na revolução francesa, com Robespierre e Cia., constituía técnica eficiente para que o totalitarismo dobrasse a sociedade. As mesmas técnicas de torturas e concentração de vítimas em campos da morte desenvolvidas nas reservas indígenas das Américas e nos campos de concentração da África foram efetivadas na Europa do Leste e, posteriormente, nas guerras de libertação colonial que se seguiram após 1945.
Generais franceses, como Paul Aussaresses (1918-2013) desenvolveram na guerra da Argélia as técnicas de torturas posteriormente ensinadas a militares dos Estados Unidos e latino-americanos, então aplicadas com eficiência nas ditaduras brasileira, argentina, chilena, uruguaia etc. Cuidamos, aqui, da denominada “conexão francesa” bem explicada por Marcelo Godoy em sua importante e premiada obra sobre a história do DOI-Codi, o centro de sequestro, tortura e extermínio da ditadura brasileira: “A Casa da Vovó” (Editora Alameda, 2014).
A partir dos Julgamentos de Nuremberg (1946-1949), indivíduos passaram a ser responsabilizados pelos crimes contra a humanidade; crime de genocídio e crimes de guerra que cometessem, não importando se cumpriam ordens de superiores. Chefes de Estado e de governo passaram, também, a ser responsabilizados, processo histórico que teve na recente expedição de mandado de prisão contra Vladimir Putin mais um capítulo, iniciado naquela cidade bávara, que julgou parte da cúpula nazista.
Mais do que o primeiro tribunal internacional (ainda que críticas sejam cabíveis), Nuremberg simbolizou um legado que apenas se iniciava em 1946 após os processos de negociações entre a potências aliadas vencedoras da 2ª guerra. Nuremberg vinha para ficar, nas palavras do Promotor norte-americano Telford Taylor, como uma força política, moral e legal.
De fato, se considerarmos o Tribunal Para o Extremo-Oriente (Tribunal de Tokyo); os Tribunais Criminais Internacionais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda; os Tribunais Híbridos do Timor-Leste ou do Camboja, Telford Taylor foi visionário. Simplesmente fuzilar os chefões da gang nazista não estabeleceria uma via internacional construtiva para a dignidade da pessoa humana. Julgá-los, sim. 
Mesmo na Alemanha já republicana, após a derrota do nazifascismo, os tribunais de Dachau (1945-1948) e de Frankfurt (1963-1965), mostraram-se essenciais para os alemães das novas gerações conhecessem a responsabilidade histórica do país e jamais voltassem a defender regimes ditatoriais ou totalitários.
O ápice de tal processo foi a instalação do primeiro tribunal criminal internacional permanente da humanidade, o Tribunal Penal Internacional, na Haia (Holanda), após o início de vigência do Estatuto de Roma, que o regula.
Durante a guerra-fria, uma das consequências da segunda-guerra mundial, os processos de tortura e extermínio de vítimas nas respectivas zonas de influência norte-americana e soviética tornaram-se políticas de governo, ainda que mascaradas. Centros e campos voltados ao sequestro, tortura e extermínio das oposições políticas, na maioria jovens, passaram a ser custeados pelos Estados, com apoio do setor empresarial de cada país.
A questão que se coloca atualmente, especialmente neste mês de março, tão significativo para aqueles que tombaram na luta por democracia, seus familiares e demais sobreviventes, além dos defensores dos direitos humanos, é compreender como países lidaram (ou não) com seu passado. Cuidamos, aqui, da chamada Justiça de Transição, expressão cuja criação é imputada à Professora Ruth Teitel, da New York Law School.
Por Justiça de Transição, entenda-se, a luta pela consolidação da verdade histórica, da memória coletiva a partir de distintas fontes (não apenas oficial), a punição de perpetradores, a reparação simbólica das vítimas e, ainda, a reformulação das instituições do Estado de modo a consolidar novos períodos marcados por democracias plenas.
<a href="https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/itemsDocuments/20181015-otp-stat-ENG.pdf">Como registrou a anterior Procuradora do Tribunal Penal Internacional, Fatou Bensouda</a>, “... para que um país siga em frente para maiores voos, é necessário que ele reconheça seu passado; que se engaje de boa-fé em um esforço para descobrir os erros do passado; que identifique e responsabilize os culpados, forneça respostas, reconhecimento e justiça que as vítimas e comunidades afetadas tão profundamente anseiam e desejam...”
Em relação aos processos de Justiça de Transição, a Argentina é hoje considerada exemplo. Para alguns especialistas, ainda mais aperfeiçoado do que Nuremberg, uma vez que centenas de torturadores já foram condenados, alguns à prisão perpetua, por Cortes civis e permanentes, ao contrário de Nuremberg, um tribunal de exceção e militar. A indicação ao Oscar 2023 de melhor produção estrangeira, do filme “1985”, bem assinala a importância hoje conferida aos julgamentos dos perpetradores da ditadura militar na Argentina.
O Brasil, diante de sua realidade histórica, política e jurídica, vem caminhando na tentativa de efetivar seus processos transicionais.
Muito embora somente recentemente alguns poucos torturadores e estupradores do regime militar passassem a ter denúncias aceitas pelo Poder Judiciário, a partir da luta dos familiares das vítimas e sobreviventes; do Ministério Público Federal e das entidades da sociedade civil organizada, tal como recentemente noticiado pela imprensa no caso do <a href="https://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/ditadura-militar-carcereiro-da-casa-da-morte-deve-responder-por-tortura-e-estupro-decide-justica">carcereiro e torturador da Casa da Morte, em Petrópolis</a>, no que tange às etapas de “punição” e efetivação da Justiça, ainda caminhamos lentamente, em grande parte devido à lei de anistia, de 1979, julgada válida pelo STF, em 2010 (ADPF 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB). 
Embora a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a> tenha, também no final de 2010, julgado inválida a lei de anistia brasileira, no caso Gomes Lund, grande parte do Poder Judiciário não observa referida decisão, apesar do Brasil expressamente ter reconhecido e aderido ao sistema interamericano de Direitos Humanos.
Contudo, avanços vêm sendo obtidos a partir da luta incansável dos familiares das vítimas; das entidades não-governamentais, como o Núcleo da Preservação da Memória Política de São Paulo (NM); do MPF e do MPE; da OAB, além de acadêmicos especialistas de distintas áreas do conhecimento.
Em São Paulo, ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, tendo o Núcleo Memória como litisconsorte ativo e a OAB/SP como amicus curiae, encontra-se em curso para que o antigo DOI-Codi, modelo de centro de tortura, estupros e extermínios posteriormente implantado em todo o país durante a ditadura militar, seja convertido em memorial.
Também a antiga auditoria militar, local de julgamentos de vítimas da tortura e sob um arremedo de “devido processo legal”, deverá se tornar o futuro Memorial da Luta Pela Justiça, resultante de parceria entre OAB/SP e Núcleo da Preservação da Memória Política (NM), após Termo de Ajustamento de Conduta firmado com os Ministérios Públicos. 
Um dos memoriais mais visitados no Estado de São Paulo, o Memorial da Resistência, é hoje verdadeiro centro de memória, pesquisas e atividades culturais e acadêmicas, em defesa do regime democrático.
Além dos avanços acima, importante ressaltar que o Ministério Público Federal realizou, recentemente, audiência pública para discussão sobre a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, recomendação constante do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2014).
A perseguição e o genocídio indígena cometido contra os povos originários do Brasil durante o regime militar de 1964 são ainda pouco conhecidos do grande público.
Temas como o campo de concentração implantado em terras do povo Krenak, pela ditadura, onde ocorreram torturas, trabalho escravo, abusos físicos, psicológicos e extermínios contra indígenas; ainda, a opressão realizada pela Guarda Rural Indígenas (GRIn); ou, ainda, o massacre do povo Kinja (Waimiri-Atroaris), dentre vários outras violações, como o assassinato e a expulsão violenta do povo Guarani de suas terras ancestrais para construção da Usina de Itaipú, projeto binacional dos ditadores Emilio G. Médici e Alfredo Stroessner, são também fatos desconhecidos da maioria da população brasileira. 
Segundo o relatório da CNV, ao final da ditadura, cerca de 8.350 indígenas foram assassinados pela ditadura, cifra meramente exemplificativa, uma vez que a CNV investigou apenas dez povos indígenas, dentre mais de quatrocentas distintas culturas existentes no país. 
Cite-se, ainda, o brilhante trabalho realizado pelo CAAF/UNIFESP (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense), tanto na identificação das ossadas da Vala de Perús, como também nas medições arqueológicas nos locais de memória, como o antigo DOI-Codi, sob coordenação de grandes profissionais, como a historiadora Deborah Neves e a Arqueóloga Claudia Regina Plens (UNIFESP).
Após quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, caracterizado pela violação sistemática dos direitos humanos e defensor de torturadores, o novo governo legitimamente eleito vem buscando reconstruir um país dividido e desmontado quanto às estruturas protetivas da dignidade da pessoa humana, do multiculturalismo e da democracia.
A criação do Ministério dos Povos Indígenas, com lideranças indígenas no comando, bem como a recriação das comissões formadas por familiares e sobreviventes da ditadura, representam raios de esperança.
No próximo dia 17 de abril, o ex-preso político e diretor do Núcleo da Preservação da Memória de São Paulo, Maurice Politi, receberá da Câmara Municipal de São Paulo o reconhecimento como cidadão paulistano, em reconhecimento à sua histórica luta pela democracia, desde os dias de luta contra o regime ditatorial militar, até os dias atuais.
No domingo, dia 2 de abril, o Parque do Ibirapuera receberá a III Caminhada do Silêncio Pelas Vitimas da Violência de Estado, evento agora parte integrante do calendário oficial.
Finalmente, a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, vem realizando trabalho importante de reconstrução da memória coletiva por meio de sua Comissão de Direitos Humanos e seu Núcleo da Memória. O apoio da atual gestão aos processos de construção da Justiça de Transição no Brasil, são também notáveis.
Como se nota, Nuremberg inaugurou uma nova época para os Direitos Humanos, que é projetada pelas lutas democráticas e pelos Direitos Fundamentais até os dias de hoje.
A Justiça de Transição não possui prazo para terminar; ela é permanente. Embora tratemos de acontecimentos históricos relevantes, mas tristes, sua compreensão é essencial e indispensável para que as sociedades resistam às aventuras fascistas e ditatoriais, sempre presentes, como comprovam o 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos e o 8 de janeiro de 2023, no Brasil.
A sociedade e os cidadãos brasileiros precisam enfrentar seu passado remoto e recente, de autoritarismos e violações; compreendê-los e jamais repeti-los.
<blockquote>Pensar a barbárie é a ela resistir (Edgar Morin). </blockquote>

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De Nuremberg ao golpe de Estado de 31 de março de 1964

A luta por verdade, memória e justiça