Proteção de dados

De 1984 a Westworld: a era dos dados e da vigilância

A informação pessoal passou a ser um verdadeiro bem jurídico e econômico

Série Westworld. Crédito: Warner Bros. Television Distribution / Reprodução

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.” A frase, plenamente oportuna aos dias atuais, é parte do slogan do Partido, figura utilizada por George Orwell para representar o Estado totalitário em seu universo distópico, criado no fim da década de 1940.

O futuro, simbolizado pelo ano 1984 – antes distante –, prevê uma sociedade completamente autômata, onde não existe livre arbítrio nem liberdade: os indivíduos são monitorados e controlados, literalmente, de forma absoluta e integral. Assim como a mídia, a cultura e a ciência, que servem de ferramentas para alimentar o poder de quem domina e a alienação de quem é dominado.

O Grande Irmão, líder messiânico daquela desafortunada sociedade, é quem dita as regras do jogo: ele “está observando você”, ilustram os cartazes espalhados por cada canto do superestado. Lá, a privacidade, como tantos outros, é um termo obsoleto, abolido do dicionário e da memória das pessoas, que acreditam, sem questionar, nem sequer um dia ter existido.

As pessoas, constantemente vigiadas por aparatos tecnológicos – que inclusive captam áudio e vídeo –, acatam pacificamente aquilo que lhes fora imposto. Nesta distopia, a desinformação parece não incomodar. Afinal, como revoltar-se contra o que não é sabido?

“Se os dados são o destino, você traça o caminho”. Esse é slogan da empresa fictícia Incite, parte central da história contada pela série televisiva Westworld, criada em 2016.

O futuro, dessa vez simbolizado pelo ano 2052 – agora, mais distante –, mostra uma sociedade tecnológica e essencialmente refém da informação: uma corporação privada detém o monopólio de mercado e define a sorte de cada indivíduo com base em algoritmos e dados pessoais.

Dotada de um sistema de Inteligência Artificial disruptivo e inovador, a empresa de tecnologia oferece à humanidade uma maneira de navegar pelas milhões de pequenas decisões tomadas ao longo da vida, além de refletir e aprender com os milhares de anos de história humana registrada.

Em posse de incontáveis dados coletados – adquiridos, naquele universo, antes de promulgadas as leis de privacidade –, o sistema determina o destino das pessoas de forma pré-programada: as escolhas, transvestidas de livres e individuais, não tem a menor relevância. Afinal, de que vale a causa se a consequência já está imutavelmente traçada?

“Se alguém existir, haverá traços e, se houver conexões, haverá informações”. A emblemática frase compõe a apresentação de parte do projeto xueliang, ou Olhos Afiados, implementado no território autônomo de Xinjiang, região noroeste da China.[1]

O presente – agora, em 2020 –, reforça, em sua grande maioria, a consolidação da democracia e do respeito à liberdade e à privacidade como pilares fundamentais dos direitos individuais: em tese, representa a derrocada dos regimes totalitários em escala mundial.

O projeto, escalável a nível nacional, é reflexo de uma visão da vigilância de alta tecnologia – precisa, onipresente e infalível – em que os líderes da China investem bilhões todos os anos, fazendo do local uma incubadora de sistemas de policiamento cada vez mais intrusivos, que podem se espalhar por todo o país e além.

Dentre outras pretensões, a intenção é conectar as câmeras de segurança, que já monitoram estradas, centros comerciais e centros de transporte, às câmeras privadas, e integrá-las em uma plataforma nacional de vigilância e compartilhamento de dados.

O sistema utiliza, sobretudo, o reconhecimento facial e a inteligência artificial para efetivar o compartilhamento total de rede, a cobertura em tempo integral e o controle operacional e geográfico absoluto, monitorando as idas e vindas dos 1,4 bilhões de pessoas residentes no país.

1984 – 2052 – 2020. O futuro enfim chegou?

George Orwell, em sua obra atemporal, não quis causar temor desmedido, nem tampouco criar um universo inatingível, puramente fictício. O cenário de desesperança busca chocar; não como nos contos fantasiosos ou de horror, mas como nos que fazem refletir e trazer para si uma realidade palpável, a ponto de ser quase um passo a passo de como não fazer.

Com um prognóstico quase certeiro, Orwell previu, em um contexto de pós-guerra, como o poder concentrado em um único ente soberano, neste caso, o Estado, contribui para que se tenha o controle e o monitoramento absoluto da sociedade – individual e coletivamente –, de modo que seja completamente dissipada qualquer noção de privacidade e de liberdade individual.

Ocorre que, neste universo distópico, o meio utilizado é a repressão. Em alusão não só ao Socialismo Soviético, mas também a todos os regimes totalitários, surge aqui o novo Comunismo Inglês, que, como bem definem os representantes do Grande Irmão, alcançam o poder por meio da dor e do sofrimento.

Os indivíduos, então, temendo a punição, aceitam, como cordeiros, tudo o que lhes é imposto. A vigilância, exageradamente retratada pelo autor, atua reativamente, de maneira que todos sabem que estão sendo observados a todo tempo, porém não enxergam aquilo como uma aberração. A privação de direitos, para nós garantida constitucionalmente, à época, para aqueles cidadãos, não passava de uma prática já inserida na rotina cotidiana, passível, em caso de desvio de conduta previamente estabelecida, de severas sanções, inclusive físicas.

Em Westworld, em meados de 2052, a privacidade e a liberdade individual são conceitos amplamente conhecidos e que permaneceram vivos durante o transcorrer dos anos.

A série demonstra com precisão a importância de um dos principais ativos social e econômicos da atualidade: os dados. A Incite, empresa de tecnologia, detém uma quantidade massiva de informações pessoais de todas os cidadãos, adquiridos, porém, sem a ciência e o consentimento dos mais interessados, os próprios titulares dos dados.

A inteligência artificial, alimentada das informações de todas as pessoas do mundo, utiliza esses dados para definir o destino e as escolhas de cada um. Aqui, diferentemente do universo orwelliano, as pessoas não sabem que estão sendo monitoradas constantemente e, por isso, o status quo permanece inalterado por tanto tempo.

A vigilância, neste caso, é sorrateira, porém, tão devastadora quanto. O fato de existirem, sim, leis e regulamentações que acobertam os direitos essenciais ao tema, não impede que grandes corporações tenham o mais pleno controle da sociedade, de modo imperceptível aos olhos do leigo e da Lei.

De volta ao mundo contemporâneo e real, não nos parece que as duas realidades distópicas estão tão distantes assim. Por óbvio, são obras de ficção que visam o entretenimento, e, por isso, se valem de certos exageros propositais, fugindo da real concepção do que é certo ou errado; real ou falso; e possível ou impossível.

Fato é que, daí, extraem-se ensinamentos e provocações sobre uma discussão que aparenta nunca ter fim.

O termo privacy, enquanto conceito jurídico moderno, teve sua origem na sociedade burguesa americana do final do século XIX, por dois juristas americanos, Samuel Warren e Louis Brandeis, que, já sensíveis e atentos aos efeitos que o avanço tecnológico poderia provocar na vida das pessoas, teriam sido os primeiros a tratar do tema, por meio do famoso artigo “The right to privacy”, publicado na Harvard Law Review, em 1890.

Talvez as implicações atuais tenham superado as previsões passadas.

Ou não.

É certo que a privacidade acompanha a sociedade desde o início dos tempos. O direito de “ser deixado só”, como definiram os primeiros estudiosos, não mais se sustenta, em virtude do enorme fluxo informacional compartilhado, a cada segundo, e do acelerado processo de evolução tecnológica a que estamos expostos, que ampliam massivamente o volume de dados coletados e tratados, diariamente, no Brasil e no mundo.

E, pelo o que se vê, não há melhor momento para que se regulamente e proteja esses dados, uma vez que, na atualidade, a informação pessoal é considerada uma verdadeira mercadoria em torno da qual surgem novos modelos e formas de extrair valor monetário do intenso fluxo de informações pessoais, proporcionado pelas modernas tecnologias de informação. A informação pessoal, portanto, passou a ser um verdadeiro bem jurídico e econômico.[2]

Aumenta, então, o dever de cautela e de responsabilização do que afronta a privacidade da pessoa natural. Em curso das diretrizes europeias, ganha força a autodeterminação informacional e o poder de escolha do indivíduo: quanto aos anos 1984 e 2052, ambos são falhos; tanto a informação deslavada, descarada e repressora, quanto a omissiva e maquiada.

O controle desproporcional, seja do público ou do privado, é, sim, pérfido e perigoso. Ainda que haja, em tese, uma justificativa definitiva para todos os cenários (a guerra, no primeiro; a sanidade social, no segundo; e a pandemia, no terceiro), os excessos não se justificam. Do contrário, prevalece o mundo de Orwell.

Deve haver o meio termo. A nós, a missão de impedir a distopia.

 


[1] https://www.nytimes.com/2019/05/22/world/asia/china-surveillance-xinjiang.html

[2] DONEDA, Danilo (Org). A proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia. Escola Nacional de Defesa do Consumidor. Brasília: SDE/ DPDC, 2010. p. 17.