Paulo Fernando Pinheiro Machado

“O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.”                                                                                                                ― Joaquim Nabuco.
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Na semana que passou realizou-se a edição de 2023 do Fórum Econômico Mundial (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/forum-economico-mundial">FEM</a>), em Davos, na Suíça. O FEM foi fundado em 1971 pelo economista e engenheiro Klaus Schwab e se notabilizou, principalmente a partir dos anos 1990, por apresentar a visão da elite financeira internacional acerca dos rumos e destinos de um mundo globalizado. A edição deste ano do evento, contudo, ocorreu no ambiente do outono do processo de globalização, o que foi reconhecido pelo próprio moto do encontro: “cooperação em um mundo fragmentado.”
Gideon Rachman, <a href="https://www.ft.com/content/681a0e6a-5ffa-4d54-be1f-1abb574842d8">na sua coluna de 15 de janeiro para o Financial Times</a>, compara o ambiente internacional atual ao de 1914, magistralmente registrado pelo gênio de Thomas Mann em A Montanha Mágica, cujo enredo, coincidentemente, se passa justamente em Davos, em um clima de guerra e epidemia. “O medo assombrando o FEM é o de que um longo período de paz, prosperidade e integração econômica global possa estar se encerrando – exatamente como aconteceu em 1914”, desabafa Rachman. Já deixamos oficialmente o mundo do just in time para adentrar no do just in case.
A humanidade adentra 2023 sob a égide de uma “policrise”, isto é, um cenário internacional marcado por diversas crises simultâneas, em que cada qual não possui uma origem singular, constituindo-se em uma confluência de emergências oriundas de múltiplas e frequentemente desconhecidas causas. A maior dificuldade de um cenário de policrise para tomadores de decisão não é apenas o de identificar qual a medida correta a ser tomada, mas, principalmente, decidir se qualquer medida a ser tomada não pode mesmo piorar a situação pelas consequências não antecipadas das ações, gerando um ambiente de “turboparalisia”, isto é, um ambiente marcado por um ritmo frenético de atividade, mas com poucos ou nenhum resultado concreto, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principais-desafios-na-transicao-da-ordem-internacional-24062022">conforme já analisamos nesta coluna</a>.
Em uma chave explicativa análoga à imagem que utilizamos em nosso último livro, <a href="https://www.amazon.com.br/Centelhas-Tempestade-Diplomacia-Mundo-Transformação-ebook/dp/B09W42TTL4/ref=sr_1_1?keywords=centelhas+de+tempestade+a+diplomacia+em+um+mundo+em+transformação&amp;qid=1673976747&amp;sprefix=centelhas+de+%2Caps%2C434&amp;sr=8-1">Centelhas de Tempestade: a diplomacia em um mundo em transformação (Saraiva)</a>, a policrise atual se constitui de ao menos quatro subcrises principais, que se mesclam e confundem, tornando o exercício da liderança, seja ela pública ou privada, uma atividade extremamente complexa. As quatro subcrises são: econômico-financeira, estratégico-militar, político-social e ambiental-climática.
No plano econômico-financeiro, os efeitos das ações de combate à pandemia de COVID-19, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-deglobalizacao-e-o-renascimento-do-lloyd-brasileiro-08042022">conforme já abordamos aqui neste espaço</a>, provocaram uma disrupcão profunda nas cadeias globais de fornecimento, levando a uma realocação da produção em um movimento de desglobalização, no qual a lógica do in-shoring e do friend-shoring tomam o lugar do offshoring, que marcou o processo de globalização a partir dos anos 1990.
O movimento de desglobalização agrava o processo inflacionário global, causado principalmente pelo aumento da base monetária internacional promovido pelas iniciativas e quantitative easing. Ao provocar uma reorganização da produção em escala mundial, o movimento de desglobalização aporta um choque de oferta a um cenário de forte pressão inflacionária, jogando a humanidade em uma profunda <a href="https://www.weforum.org/agenda/2022/09/cost-of-living-crisis-global-impact/">crise dos custos de vida</a>, sentida nos quatro cantos do planeta.
No plano estratégico-militar, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-ordem-mundial-cleopatra-e-a-ucrania-01042022">como também já analisamos aqui nesta coluna</a>, o conflito no leste europeu se afigura como o primeiro capítulo de uma nova Guerra Fria, que, dentre inúmeras outras consequências, tem o condão de acirrar a crise econômico-financeira já mencionada. O conflito já provocou uma desestruturação considerável dos mercados agrícola e energético globais, jogando milhares de pessoas em uma situação de fome e insegurança alimentar, que por sua vez provoca movimentos e migração em massa entre continentes.
O aperto nos mercados agrícola e de energia tem sido intensificado pela aguda crise ambiental e climática que a humanidade está enfrentando. Nesse tabuleiro, também, o processo de acirramento da crise foi acelerado nos últimos anos pela persistência da manutenção do fenômeno La Niña pelo terceiro ano consecutivo. A humanidade tem testemunhado cenas verdadeiramente apocalípticas como as secas do Mississipi e do Danúbio. No sul do Brasil, por outro lado, as fortes chuvas têm provocado enchentes e deslizamentos.
Todas essas diversas subcrises acabam por confluírem e se retroalimentarem, provocando o acirramento de tensões político-sociais ao redor do globo. A premente crise do custo de vida aliada aos efeitos neuro-psicológicos tanto das medidas de isolamento social tomadas durante a pandemia quanto dos impactos que a exposição excessiva a redes sociais vem causando nas pessoas tem intensificado problemas sociais seculares e incentivado o acirramento da polarização política. Os espaços públicos e os canais gerais de diálogo, como a mídia, tem dado lugar à fragmentação excessiva das redes sociais e do confirmation bias dos algoritmos de inteligência artificial que selecionam as publicações individualmente. Estamos entrando em uma sociedade sem canais de diálogo.
Tudo isso parece apontar para uma quinta crise, que ao mesmo tempo perpassa todas as outras e está acima delas: uma crise espiritual de valores. A humanidade está rapidamente perdendo a fé nos seus valores mais tradicionais, em particular no poder de orientação do elemento transcendente que, comum a todas as religiões, nos ensina que a passagem por este mundo decaído é apenas uma oportunidade de nos elevarmos e de ajudarmos os outros a se elevarem na busca de uma redenção futura, em outro plano, em outro mundo. No ocidente, em particular, as sociedades pós-cristãs se estruturam a partir do erro gnóstico apontado por Eric Voegelin de imanentização do escaton, isto é, do abandono da metafísica e do transcendente pela sacralização da política e dos desejos materiais humanos. O resultado inevitável será o da reprodução maximizada dos erros e dos horrores do século XX.
A edição do FEM 2023 se deu em um mundo em frangalhos. O moto do encontro, “cooperação em um mundo fragmentado.”, não poderia ser mais apropriado, pois os diversos desafios que compõem a policrise atual somente podem ser enfrentados por uma concertação internacional. O que falta neste momento é justamente uma nova concepção abrangente de ordem global, na qual os Estados possam participar de forma construtiva e cooperativa. Mas para isso precisamos, primeiro, juntar os cacos espalhados dos nossos valores na escala individual. Como vaticinou Henry Kissinger em março passado, estamos em uma era totalmente nova. Finis origine pendet.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O fim depende do começo.

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JOTA

A edição de 2023 do Fórum Econômico Mundial e as crises que assolam o cenário internacional

Davos em policrise

A edição de 2023 do Fórum Econômico Mundial, sediada em Davos (Suiça) e as crises que assolam o cenário internacional.