Henrique Savonitti Miranda

Na semana em que se completam 700 (setecentos) anos da morte do Poeta Supremo (Sommo Poeta)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, apresentamos algumas reflexões sobre a estrutura jurídica que sustenta sua clássica Commedia<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Dante Alighieri, batizado Durante di Alighiero degli Alighieri – também conhecido apenas pelo hipocorístico Dante<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> – nasceu em Florença, entre 21 de maio e 20 de junho de 1265, e faleceu em Ravena, na noite de 13 a 14 de setembro de 1321<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A Comédia – título original da obra – é considerada o testemunho literário mais importante da civilização medieval, bem como uma das mais importantes obras da literatura universal.
A construção normativa da vida após a morte dantesca, 7 (sete) séculos após sua morte, continua a sugestionar o imaginário coletivo, de modo que, quando atualmente reflete-se a respeito de condenação eterna, não é mais suficiente simplesmente aludir ao Inferno, sendo igualmente necessário definir o círculo específico.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Ao contrário de seu contemporâneo Cino de Pistoia<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, poeta e jurista, Dante provavelmente não possuía formação jurídica, referindo-se a textos jurídicos em situações muito específicas, como, por exemplo, em suas obras Convivio (escrita nos primeiros anos de seu exílio, de 1304 a 1307) e Monarchia (na qual discorre sobre a relação entre o poder temporal, representado pelo imperador, e a autoridade religiosa, representada pelo papa, elaborada nos anos de 1312 e 1313). Todavia, inicialmente como político e agente público e, posteriormente, como condenado à morte, Dante foi um dos protagonistas da cultura jurídica da Baixa Idade Média.
Condenado à morte por sua Florença duas vezes (sendo a segunda condenação extensiva aos seus filhos), por razões políticas, Dante escreve sua Comédia, na qual a Justiça é quase a intérprete principal, como fruto do desejo de provar sua própria inocência. A tensão entre a justiça divina e a lei terrena que permeia toda a Comédia é uma forma de defender sua própria causa de perseguido político. Escrever o poema, revelando a hipocrisia do poder, poderia ajudar-lhe a restaurar sua honra e reputação para a posteridade. E ele atingiu esse objetivo magistralmente!
O interesse pelo pensamento jurídico de Dante inicia-se a partir do Risorgimento (movimento que resultou na proclamação do Reino da Itália, em 17 de março de 1861), momento no qual o poeta é alçado, pelos italianos, a símbolo de unidade nacional. O primeiro estudioso italiano a ocupar-se do aspecto jurídico dantesco foi Giovanni Carmignani, em 1865. Na primeira década do Século XX muitos estudiosos dedicaram-se a esse tema, com resultados ainda distantes uns dos outros<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em 2013, veio à lume a obra Dante and the Limits of the Law, de autoria de Justin Steinberg, professor de Literatura Italiana da Universidade de Chicago<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Estruturando sua análise em 4 (quatro) capítulos, Steinberg percorre as 4 (quatro) fronteiras do Direito exploradas no Poema Sagrado: “abaixo”, “além”, “acima” e “ao lado”, ou, em outras palavras, infamia, arbitrium, privilegium e pactum. Trata-se, a nosso ver, do primeiro estudo abrangente acerca da estrutura jurídica que sustenta a Commedia.
<blockquote class="jota-article__eye">Segundo Justin Steinberg, a obra do poeta florentino assenta-se em uma organização de clara matriz jurídica.</blockquote>
Dante imagina a vida após a morte como uma estrutura jurídico-administrativa altamente regulamentada, dotada de uma complexa rede de normas locais, estrutura jurisdicional hierarquizada, funcionários, punições, exceções e recompensas bem calculadas.
Em toda a Divina Comédia, Dante desempenha os papéis de promotor de justiça, advogado e juiz – denunciando, defendendo, condenando e absolvendo – em rituais jurídicos repletos de privilégios, imunidades e acordos.
Os casos extremos desempenham o papel central na concepção dantesca de justiça divina. Pode parecer paradoxal, mas se Dante cria uma elaborada geografia normativa é porque deseja explorar suas exceções. As regras do jogo são rapidamente assimiladas pelos leitores apenas para serem quebradas com a mesma velocidade: os pagãos são salvos, os condenados são perdoados, os juramentos quebrados, as sentenças redefinidas. O próprio relato da viagem realizada por Dante e Virgílio é, em si, uma exceção: o privilégio pessoal concedido a Dante para cruzar a vida após a morte, permanecendo imune às normas que ele mesmo criou.
Assim como devemos analisar as obras de arte do passado levando em consideração o imaginário estético da época, é igualmente imperioso historicizar as reflexões que a obra de Dante causou ao seu tempo, especialmente em matéria de regras e exceções.
Isso porque, antes do surgimento da concepção de Estado e sua consequente separação de poderes, a possibilidade de suspender uma determinada norma, ou melhor, de derrogá-la, era considerada orgânica ao ordenamento jurídico. Mesmo quando os rescritos imperiais (rescriptum principis) ou as dispensas papais eram contra ius – ou seja, violavam o Direito positivo – pressupunha-se que estavam fundamentados em um sistema superior de normas, isto é, nos princípios fundadores "constitucionais" do ius commune e nos preceitos do Direito Natural.
Essas exceções regulamentadas serviam para equilibrar as necessidades de justiça com a autoridade da lei, tornando o sistema jurídico adaptável, garantindo seu alcance universal. Nessa perspectiva, a exceção assegurava ao Direito a continuidade de aplicação, afastando-o do risco de se tornar letra morta diante de casos imprevistos<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
A principal diferença entre o conceito moderno de exceção e o medieval é que o primeiro tem caráter político, e, o segundo, jurisprudencial. Se o Estado soberano estiver ameaçado, as instituições podem, atualmente, invocar a exceção e afastar a aplicação da ordem jurídica. No sistema jurídico medieval, administrado por um corpo de juristas profissionais, a exceção expressava, por seu turno, a persistência do ordenamento jurídico.
Para esses juristas – que se consideravam "oráculos" da lei e cujo status e sustento dependiam da legitimidade do ordenamento jurídico – seria inconcebível afastar essa ordem para atender a uma necessidade política. Não se tratava, portanto, de um "estado de exceção", mas de um “sistema de exceções individuais” que permitia conciliar a validade do corpus normativo com as contingências da vida cotidiana<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Em consonância com a perspectiva jurídica medieval, Dante insere deliberadamente alguns elementos incongruentes em seu sistema de recompensas e punições, justamente para destacar esses “sistemas de exceção”.
A partir dessa visão histórico-normativa, Justin Steinberg afirma que séculos de comentários acabaram enfraquecendo a vitalidade de tais desafios interpretativos. Quando os estudiosos do Sagrado Poema deparam-se com situações que se chocam com as normas preestabelecidas – por exemplo, a absolvição de um pagão suicida como Catão – tendem a buscar justificativas doutrinárias que salvaguardem e reafirmem a coerência do texto. Apelando para um documento histórico, um precedente literário ou um princípio teológico, eles explicam – ou melhor, dissolvem – qualquer aparente contradição.
A anomalia é assim reabsorvida por leis racionais e abrangentes. Essa atitude fechada em relação às exceções deriva, em última análise, de uma concepção de Direito pós-iluminista. Nessa perspectiva, Direito é sinônimo de legislação, e, portanto, considera-se ilícito qualquer fenômeno que contraste com um determinado instrumento normativo. Inconscientemente guiada por tal abordagem legalista, a crítica literária moderna empenha-se para rastrear os antecedentes de casos problemáticos, tentando torná-los familiares e domesticá-los.
Na visão de Steinberg, diante de um “nó interpretativo”, os comentários modernos da Comédia oferecem ao leitor apenas duas possibilidades: trazer a aparente anomalia de volta às regras do além, ou questionar a onipotência divina. Ao reduzir a interpretação a uma escolha entre procedimento ordinário ou estado de exceção, esta abordagem crítica minimiza a liberdade de julgamento do leitor.
No entanto, Dante é um profundo defensor da importância do julgamento, tanto na esfera do Direito quanto na da arte. Para ele, o poder divino não está inteiramente isento das normas da ordem jurídica estabelecida: a exceção pode estar ancorada em um sistema de normas, e a lei pode tolerar a exceção. Confiando na capacidade de avaliação subjetiva, o poema estimula o leitor a refletir sobre essas exceções individuais que, em vez de serem delegadas a uma decisão soberana amorfa, são confiadas a uma exploração coletiva compartilhada.
É importante salientar que a obra de Steinberg, por mais atualizada e sofisticada que seja, não pretende nos oferecer um perfil sistemático do que Dante escreveu sobre o Direito; ao contrário, nos convida a pensar sobre como categorias, questões e práticas da jurisprudência medieval ajudaram o poeta a construir seu próprio universo fantástico e a orquestrar os encontros de sua jornada sobrenatural. A condição de infâmia, a arbitrariedade do juiz, a instabilidade do pacto e as múltiplas condições de privilégio são escolhidas, portanto, como chaves de acesso à imaginação literária de Dante.
Não se pode perder de vista, ainda, que a atitude impiedosa com os condenados não reflete as características da justiça medieval ou dantesca, do mesmo modo que as crenças de Dante sobre Direito e Justiça não são as nossas.
Dante convenceu-se de que o sistema jurídico florentino estava cada vez mais corrupto devido à contínua crise entre a Igreja e o Império. A topografia e a estrutura administrativa do Inferno devolvem uma visão perversa e surreal de uma cidade italiana corrupta. Por que esta cidade infernal não deveria ser governada por um ordenamento jurídico igualmente infernal? É o poder terrífico de uma justiça rígida e implicável, ou seja, a interpretação inflexível da lei e a impossibilidade de conceber a exceção que tornam a justiça infernal implacável e amedrontadora.
Demonstrando incrível atemporalidade, 7 (sete) séculos após sua morte, a obra do poeta fiorentino insere-se no debate contemporâneo sobre a utilização da justiça para fins políticos, das relações entre literatura e Direito, estado de exceção e soberania, justiça e equidade. Desafiando o leitor a enfrentar uma série de situações espinhosas, Dante nos convida a nos juntarmos a ele no papel peculiar de juiz.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Dante Alighieri é universalmente conhecido como Poeta Supremo e considerado o “pai da língua italiana”. O escritor foi o primeiro a compreender a importância do vernáculo e a redigir suas obras-primas em seu idioma nativo (o florentino, de 1300), contrapondo-se ao entendimento, à época disseminado, de que o latim era uma língua perfeita e que todos os novos idiomas, oriundos do latim, não possuíam valor. O fiorentino de Dante tornou-se a base do italiano moderno, de sorte que 90% (noventa por cento) das palavras utilizadas atualmente já estavam presentes na Divina Comédia (SANTAGATA, Marco. 20 finestre sulla vita di Dante. Milão: Mondadori, 2012. p. 38).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A expressão “divina” foi acrescentada a obra-prima do poeta florentino por Boccaccio, primeiro leitor e grande divulgador de sua obra. Em seu Trattatello in laude di Dante, de 1362, Boccaccio discorre sobre a “visão maravilhosa” que mostrou a Jacopo (filho mais velho de Dante) onde estavam os 13 (treze) cantos que faltavam a “divina Comédia” e eles não conseguiam localizar (BOCCACCIO, Giovanni. Trattatello in laude di Dante, 1362).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CONTINI, Gianfranco. Il Fiore e il Detto d’amore: attribuibili a Dante Alighieri. In: Opere minori di Dante Alighieri. Milão: Classici Ricciardi-Mondadori, 1970. pp. 895-901.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BOSCO, Umberto. Lessico universale italiano. v. 6. Roma: Istituto della Enciclopedia italiana - Treccani, 1968. p. 37.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Cino de Pistoia foi poeta e jurista italiano, amigo e contemporâneo de Dante. Sua obra jurídica mais relevante consiste em um importante comentário aos 9 (nove) primeiros livros do Código Justiniano, denominado Lectura in codicem, escrito entre os anos de 1312 e 1314 (BOSCO, Umberto. Lessico universale italiano. v. 17. Roma: Istituto della Enciclopedia italiana - Treccani, 1968. p. 100).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BRUGNARA, Gabriella. Dante e il diritto: la Commedia riletta. In: Corriere del Trentino. 27 set. 2016. p. 13.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> STEINBERG, Justin. Dante and the limits of the law. Chicago: University of Chicago Press, 2013.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> GROSSI, Paolo. L’ordine giuridico medievale. 3. ed. Bari: Laterza, 2017. pp. 29-38.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. v.1. Turim: Einaudi, 1995. p. 44.

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JOTA

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