Quando se trata do tão famoso metaverso, sempre existem muitas dúvidas, inclusive sobre a sua definição. Seria um único metaverso, ou estaríamos tratando, em verdade, de metaversos no plural? Quais as tecnologias envolvidas? O metaverso pertencerá a uma única empresa, ou vai destravar novas competições entre as big techs, como já tem sido noticiado? São diversos questionamentos que permeiam o tema e precisam ser amadurecidos.
De início, entretanto, é importante destacar que a concepção de metaverso, em seu sentido mais amplo, não é nova. O termo foi cunhado em 1992 por Neal Stephenson, em seu livro de ficção científica “Snow Crash”[1] e foi utilizado para descrever um mundo virtual baseado na Internet, no qual os usuários podem construir realidades digitais e compartilhar experiências por meio de seus avatares.
O advento da Internet, e especialmente da web, facilitou uma cisão que ainda se utiliza muito, inclusive nos nossos debates sobre direitos digitais e proteção de dados pessoais: a divisão entre online e offline, real e virtual. A ideia geral por trás do, ou dos, metaversos é ‘’borrar’’ essa linha, criar o ‘’onlife’’.
Luciano Floridi, filósofo que vem tratando muito sobre o tema, em um texto publicado em julho do presente ano,[2] destacou que o metaverso pode ser abordado em diferentes perspectivas. Pode ser entendido, por exemplo, como uma “nova plataforma”, um espaço digital em que a experiência é virtual, tridimensional, imersiva e com possibilidades cinéticas e táteis. Para o autor, o termo também é utilizado como um “catch-all term” (termo guarda-chuva), que acaba abarcando discussões sobre Web 3.0, blockchain, criptomoedas, NFTs, pelo fato de ser enxergado como uma espécie de “próximo passo no desenvolvimento da tecnologia digital, depois da web e da telefonia móvel”.
No entanto, assim como surgem oportunidades oriundas das mais diferentes perspectivas do metaverso, tais tecnologias também trazem desafios e riscos variados. Para Floridi, os principais desafios são: i) realismo - a experiência é estendida e realista apenas se comparada a uma tela, mas não se comparada à experiência sensorial completa do mundo físico; ii) interoperabilidade: existe a possibilidade de um metaverso ou diversos metaversos que, por diversas questões técnicas e econômicas, potencialmente permanecerão isolados; Por fim, iii) os efeitos sobre a própria noção de compartilhamento de espaços e experiências, e a escolha (ou falta de escolha) do indivíduo em relação a tal compartilhamento.
Em um ensaio bastante relevante sobre o tema[3], Nick Clegg, presidente de Global Affairs da Meta, por sua vez, concorda com o risco grande de haver uma fragmentação (por falta de interoperabilidade) e também aponta as preocupações, legítimas, das pessoas em relação a esse espaço, e se ele será uma experiência segura. Menciona que, se o metaverso operará com uma multiplicidade de atores e sem fronteiras, será necessário um conjunto de normas e padrões, públicos e privados, para garantir um ambiente de fato aberto e saudável.
Mas há, entretanto, diversas outras questões, muitas delas jurídicas e regulatórias que também merecem destaque. Tendo isso em vista, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa organizou o webinário “Metaverso: Regulação, dados e fronteiras”[4], que integra mais uma edição do LGPD em Movimento, projeto do Observatório da Privacidade[5]. O debate, que tem seus principais insights aqui destacados, contou com a participação dos seguintes representantes de organizações do terceiro setor que estão desenvolvendo pesquisas sobre o tema: Guilherme Alves (Safernet), Juliana Roman (IRIS) e André Fernandes (IP.Rec).
Iniciando a discussão sobre ambiente regulatório brasileiro e as movimentações com relação à implementação desse tipo de tecnologia, André Fernandes(IP.Rec) apontou a importância de se compreender que o projeto de metaverso que está sendo desenvolvido atualmente é também um projeto de mercado, o qual constitui um cenário “muito mais de futuro do que de presente”, apesar das diversas notícias espetaculosas que são veiculadas constantemente.
Isso porque, existem hoje várias organizações e empresas que apresentam o metaverso como um meio de geração oportunidades de negócios, empregos, e diversas formas de entretenimento, sem compreender de maneira concreta o seu estágio de desenvolvimento e seus riscos intrínsecos, tornando difícil uma análise crítica que possibilite separar o hype da realidade. As discussões sobre regulação do tema também são influenciadas por essa lógica, e às vezes partem do pressuposto de estarmos tratando sobre questões totalmente inéditas, desconsiderando o arcabouço normativo já existente, como a própria Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet.
Discutindo alguns pontos do projeto do IP.Rec, André salientou também a urgência de sair da dinâmica de “venda de futuro”, muito comum no Vale do Silício, que constitui em uma lógica de não mais buscar quais necessidades precisam ser atendidas a partir de aplicações tecnológicas, mas sim criar essas necessidades e “fornecer as aplicações que solucionam essa falta”. Isso gera um grande problema de apropriação de narrativa dos debates, e até do processo regulatório em si, que tanto no Brasil como em outros lugares do mundo, conforme destacado pelo pesquisador, acaba sendo feito de forma apressada, sem um acúmulo substancioso para compreensão do tema.
A perspectiva da proteção de dados pessoais no metaverso e os riscos atrelados à coleta massiva de informações, especialmente dados sensíveis, utilizados por tais tecnologias para garantir uma “maior imersão”, também precisa ser analisada. Nesse sentido, a pesquisadora Juliana Roman (IRIS) destacou que o projeto em desenvolvimento no IRIS visa realizar um mapeamento e análise de quais tipos de dados são coletados durante a utilização desses tipos de produtos/serviços, partindo sempre do pressuposto de coleta apenas do mínimo necessário, com base não apenas no artigo 6º, inciso III da LGPD, mas remetendo também o quanto definido pelo Tribunal Constitucional alemão na década de 80, uma das primeiras decisões pertinentes a dados pessoais em tal contexto.
Isso porque, seguindo uma lógica de que a “experiência é mais importante do que o produto”[6], muitas vezes os desenvolvedores de tecnologias imersivas se utilizam da premissa de garantir a melhor experiência do usuário como argumento “para um tratamento desmedido de informações pessoais, ainda que essas informações estejam amparadas por alguma base legal”, destacou a pesquisadora. A preocupação se agrava quando verifica-se várias iniciativas voltadas ao âmbito da saúde, que vão desde consultas virtuais[7] e simulação de cirurgias[8], até promessas de criação de um “metaverso médico”[9].
Por outro lado, é importante esclarecer que, sim, existem pontos positivos na utilização de tecnologias imersivas. Partindo para um setor específico, por exemplo, as dinâmicas do metaverso podem permitir a criação de novas metodologias de educação, ambientes de salas de aula imersivas que possibilitam diferentes rumos para o aprendizado, como a plataforma Roblox[10], desenvolvida pela Meta. No entanto, especialmente considerando que o público-alvo dessas iniciativas são crianças e adolescentes, o seu uso profícuo também deve ser analisado criticamente.
Uma maneira de demonstrar esse ponto de vista pode ser por meio do próprio exemplo mencionado. A plataforma Roblox, que apesar de ter sido criada em 2006, foi apontada recentemente como uma aposta de ferramenta pedagógica[11], já apresenta - ou, melhor dizendo, perpetua- antigos problemas[12] que envolvem a proteção de crianças no ambiente digital, como abuso sexual e cyberbullying.
Guilherme Alves (Safernet), em sua fala, destacou justamente a preocupação de que esses ambientes, por não terem seu desenvolvimento pautados em princípios constitucionais da proteção integral e prioridade absoluta - para garantir o melhor interesse de crianças e adolescentes-, podem acabar implicando os mesmos riscos já existentes[13] em outras tecnologias, além de reproduzir problemáticas de classe, raça, gênero.
De igual maneira, ao tratar sobre a criação de ambientes virtuais em que as pessoas podem moldar a sua aparência, por exemplo, ou “achar que essa aparência pode ser a aparência que elas gostariam de ter e se sentirem mais confortáveis”, o pesquisador destacou o impacto que isso pode gerar no público mais jovem, especialmente considerando o status de pessoas em peculiar situação de desenvolvimento. Se em um contexto em que 78% dos usuários de Internet com idades de 9 a 17 anos acessam redes sociais[14] e as comparações são feitas com outras pessoas supostamente “reais”, já tem o potencial de gerar dados que explicitam, por exemplo, que 38% das meninas de 04 (anos) de idade possuem insatisfações com seus corpos[15], o quadro se torna ainda mais preocupante quando as comparações passam a ser feitas por uma versão da criança, criada por ela mesma.
É notório, portanto, que todos os pontos levantados e discutidos têm uma característica em comum: a urgência por parcimônia. A euforia por novas experiências e desenvolvimento tecnológico definitivamente não pode ser relegada à inadequação, no entanto, também é importante cautela para que não se incorra no conto da história única[16], com requintes de solucionismo tecnológico[17], apostando no metaverso como o único caminho para a “nova fase da internet” e geração de oportunidades para os mais diferentes âmbitos.
Sendo assim, uma investigação pormenorizada do que já vem sendo desenvolvido, aliada a uma construção que tenha como pedra de toque os direitos e liberdades individuais dos indivíduos (com ainda mais proteção e garantia do melhor interesse quando crianças e adolescentes estiverem envolvidos) deve ser o ponto de partida. Com parcimônia e análise crítica pautada no acúmulo já existente de outras ondas de euforia tecnológicas (uso de reconhecimento facial, por exemplo), teremos a possibilidade de “metaversos” que repliquem menos do repetecos dos velhos equívocos[18].
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O texto foi escrito inicialmente como fonte norteadora para o webinário “Metaverso: Regulação, dados e fronteiras”, parte do projeto LGPD em movimento, desenvolvido pela Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. Após a realização da excelente discussão, foram adicionados alguns dos valiosos insights levantados pelos painelistas André Fernandes (IP.Rec), Juliana Roman (IRIS) e Guilherme Alves (Safernet), a quem nós deixamos aqui o nosso grande agradecimento.
[1] STEPHENSON, Neal. Snow crash. New York: Bantam Books, 1992.
[2]FLORIDI, Luciano. Metaverse: A Matter of eXperience. Philosophy & Technology September 2022. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=4121411. Acesso em: 16 set. 2022.
[3] CLEGG, Nick. Making the metaverse: What it is, how it will be built, and why it matters. Disponível em:https://nickclegg.medium.com/making-the-metaverse-what-it-is-how-it-will-be-built-and-why-it-matters-3710f7570b04. Acesso em: 16 set. de 2022.
[4] DATA PRIVACY BRASIL. LGPD em movimento. Youtube., 2022 Disponível em: Acesso em: 16 set. de 2022.
[5] OBSERVATÓRIO DA PRIVACIDADE. LGPD em movimento, 2022. Disponível em: https://www.dataprivacybr.org/documentos/lgpd-em-movimento-temas-chave-de-implementacao/?idProject=186. Acesso em: 16 set. 2022.
[6] NTT DATA Brasil. Metaverso. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=604636697676551. Acesso em: 19 set. 2022.
[7] PINHEIRO, Chole. A saúde está entrando no metaverso. O que vem por aí?. Saúde Abril, 2022. Disponível em: https://saude.abril.com.br/medicina/a-saude-esta-entrando-no-metaverso-o-que-vem-por-ai/. Acesso em: 19 set. 2022.
[8] FANTÁSTICO. Equipe de pesquisadores brasileiros realiza cirurgia no metaverso. G1 Globo, 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/07/31/equipe-de-pesquisadores-brasileiros-realiza-cirurgia-no-metaverso.ghtml. Acesso em: 19 set. 2022.
[9] TREATMENT. Treatment Announces Global Medical Metaverse. Treatment, 2021. Disponível em:https://treatment.com/2021/11/04/treatment-announces-global-medical-metaverse/. Acesso em: 19 set. 2022.
[10] PLU 7. Na luta pelo metaverso, Roblox tem um plano para conquistar o setor da educação: ensinar brincando. Plu 7, 2021. Disponível em: https://plu7.com/24608/tecnologia/na-luta-pelo-metaverso-roblox-tem-um-plano-para-conquistar-o-setor-da-educacao-ensinar-brincando/. Acesso em: 19 set. 2022.
[11] PACETE, Luiz. Escolas apostam no jogo Roblox como ferramenta de ensino. Forbes, 2022. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/03/escolas-de-ti-apostam-no-jogo-roblox-como-ferramenta-de-ensino/ . Acesso em: 19 set. 2022.
[12] CORDEIRO, Thiago. Uso do Roblox para jogos sensuais com crianças abre debate sobre os riscos do metaverso. Gazeta, 2022. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/roblox-jogos-sensuais-criancas-debate-sobre-riscos-do-metaverso/. Acesso em: 20 set. 2022.
[13]LIVINGSTONE, Sonia; STOILOVA, Mariya. The 4Cs: Classifying Online Risk to Children. Children Onlie Research and Evidence, 2021. Disponível em: https://www.ssoar.info/ssoar/bitstream/handle/document/71817/ssoar-2021-livingstone_et_al-The_4Cs_Classifying_Online_Risk.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.
[14] CETIC.BR. TIC Kids Online Brasil 2021: 78% das crianças e adolescentes conectados usam redes sociais. Nic.br, 2022. Disponível em: https://cetic.br/pt/noticia/tic-kids-online-brasil-2021-78-das-criancas-e-adolescentes-conectados-usam-redes-sociais/#:~:text=Entre%20crian%C3%A7as%20e%20adolescentes%20no,rela%C3%A7%C3%A3o%20a%202019%20(68%25). Acesso em: 20 set. 2022.
[15] PRETTY FOUNDATION. Why Pretty. 2022. Disponível em: https://prettyfoundation.org/why-pretty/. Acesso em: 20 set. 2022.
[16] BRANDÃO, Luiza. Solucionismo tecnológico e o perigo de uma história única. Instituro Internet e Sociedade, 2021. Disponível em:https://irisbh.com.br/solucionismo-tecnologico-e-o-perigo-de-uma-historia-unica/ Acesso em: 20 set. 2022.
[17] MOROZOV, Evgeny. To save everything, click here: the folly of technological solutionism. J. Inf. Policy, v. 4, n. 2014, p. 173-175, 2014.
[18] PEREIRA, Laura. O hype do metaverso e o repeteco de velhos equívocos. IP.Rec, 2022. Disponível em: https://ip.rec.br/blog/o-hype-do-metaverso-e-o-repeteco-de-velhos-equivocos/. Acesso em: 20 set. 2022.