José Eduardo de V. Pieri

Rodrigo Albero Caldeira Bastos

Felipe Schvartzman

Em matéria de dados pessoais, é comum o entendimento que certos dados poderiam ser utilizados livremente, por serem “públicos”. São informações que identificam ou são capazes de identificar pessoas naturais, disponíveis nos portais de autoridades governamentais, como a Receita Federal e os diversos Tribunais de Justiça, e até perfis existentes em redes sociais com configurações de privacidade abertas. Esses dados pessoais, inclusive, são utilizados por agentes de mercado para as mais variadas finalidades, desde consultas sobre um potencial empregado ou cliente até modelos de negócio inteiramente construídos na análise massificada de informações.
Porém, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)1, que entrará em vigor em agosto de 2020, dados pessoais acessíveis publicamente não deixam de receber a proteção legal, e sua utilização está sujeita a determinados princípios e regras. A classificação de um dado como pessoal, por si só, não implica um juízo automático a respeito da possibilidade (ou não) de sua divulgação.
Reputar um dado como pessoal significa apenas reconhecer que uma informação é relacionada à pessoa natural determinada ou determinável, sem que isso conduza a qualquer afetação necessária acerca do seu uso, admitindo-se que a lei permita (ou não) a sua publicização.
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A LGPD prevê que só pode haver tratamento de dados pessoais com fundamento em uma das bases legais. Por exemplo: tratamento de dados com o consentimento informado e inequívoco do titular; para a execução de um contrato; para o cumprimento de uma obrigação legal ou regulatória; no legítimo interesse do agente de tratamento de dados, entre outras. Para endereçar a hipótese de tratamento de dados pessoais tornados públicos, a Medida Provisória 869/18, que foi aprovada com alterações pelo Congresso Nacional e agora aguarda sanção ou veto do Presidente da República até o dia 8 de julho, adiciona disposição específica à LGPD.
O Art. 7º, § 7º, da LGPD, estipula que o tratamento de dados pessoais disponíveis publicamente, sejam eles tornados públicos pelo próprio titular ou disponibilizados por ente público, pode ser realizado para finalidades diferentes daquela que motivou sua publicização inicial.
<blockquote class="jota-article__eye">Devem ser observados nestes casos, porém, os propósitos legítimos e específicos para o novo uso dos dados, sendo o conceito do “propósito legítimo” a chave para avaliar a licitude de tal uso.</blockquote>
A ideia de legitimidade não é nova nesse debate. No contexto do legítimo interesse, o tema vem sendo discutido por autoridades e pesquisadores na Europa e no mundo desde a aprovação do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (RGPD) em 2016. Trata-se de base legal que permite o tratamento para finalidades legítimas consideradas a partir de situações concretas, como o apoio e promoção das atividades do agente de tratamento de dados. Mas a existência de uma finalidade legítima não é o único fator necessário para que o legítimo interesse fique configurado: nos termos da LGPD, as informações devem ser estritamente necessárias para atender tais finalidades, e seu uso deve ser equilibrado com os direitos e liberdades garantidos ao titular das mesmas.
Em uma primeira leitura, essas disposições criam a impressão de que o tratamento por terceiros de dados disponíveis publicamente se torna extremamente engessado. Sob essa ótica, para a aplicação do legítimo interesse como base legal, o responsável pelo tratamento teria que demonstrar a necessidade de utilização e sopesar seu interesse com os direitos do titular.
<a name="_GoBack"></a> Porém, a LGPD estabelece que o uso de dados pessoais tornados públicos deve atender ao propósito legítimo do titular, que é diferente de legítimo interesse. Apesar de a LGPD não trazer definição para o conceito de propósito legítimo, parece razoável interpretar que o propósito legítimo seria uma figura menos restritiva na LGPD, tratando-se de um pressuposto do legítimo interesse, mas um conceito autônomo. É que o legítimo interesse, para ser utilizado como uma base legal de tratamento de dados pessoais, pressupõe a existência de um propósito legítimo, mas o contrário não é verdadeiro. Assim, haverá legítimo interesse se, além de haver propósito legítimo, o tratamento de dados pessoais for estritamente necessário para atingir o interesse buscado, e esteja em equilíbrio com os direitos e liberdades garantidos ao titular dos dados.
Com a opção legislativa por exigir somente o propósito legítimo – e não legítimo interesse – para fundamentar o tratamento de dados disponíveis publicamente, depreende-se que a intenção do legislador foi criar um fundamento legal mais flexível para esse tipo de tratamento, reconhecendo a importância e finalidade de fontes públicas de dados pessoais. Na própria exposição de motivos da emenda parlamentar que levou à criação do Art. 7º, § 7º, relator reconhece que, “quando ele é publicamente acessível, o dado pessoal passa a ser um importante elemento para a realização de análises e estudos, [...] promovendo competividade, inovação, empregabilidade e prosperidade”.
Em um ambiente de análise de enorme volume de dados - big data - é comum haver usos secundários mais inovadores do que aqueles que justificaram a própria coleta original de dados pessoais. Daí a relevância desse tipo de tratamento e, como consequência, da discussão sobre o seu cabimento.
O objetivo da LGPD nunca pareceu ser o de proibir antecipadamente todo e qualquer uso secundário que dados pessoais possam permitir. No texto original, a única menção ao termo propósitos legítimos, ao menos com essa redação específica, está contida na definição do princípio da finalidade, segundo o qual o tratamento de dados pessoais deve observar a “realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades” (art. 6º, I). Em outras palavras, o tratamento posterior de dados pessoais já era possível quando a LGPD foi editada, contanto que as finalidades desse novo uso fossem compatíveis com os propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, o art. 7º, § 7º da LGPD, pode oferecer maior maleabilidade para o tratamento de dados pessoais disponíveis publicamente, mas também não deve ser compreendido como uma carta branca para uso irrestrito dessas informações – o princípio da finalidade aplicado às atividades de tratamento de dados pessoais deve prevalecer.</blockquote>
E, no mesmo §7º acrescentado pela nova redação da MP 869/2018, a LGPD ainda garante a preservação dos direitos do titular no caso de tratamento de dados disponíveis publicamente. Isso inclui, por exemplo, o direito do titular receber informações claras e precisas sobre o tratamento de suas informações pessoais, bem como de solicitar acesso a seus dados e exigir a correção de informações incorretas.
Ao mencionar os propósitos legítimos como fundamento para o tratamento posterior de dois grupos de dados pessoais – aqueles cujo acesso é público (art. 7º, §3º) e os tornados manifestamente públicos pelo titular (art. 7º, §4º) –, a MP 869/2018 parece conferir maior segurança ao uso de dados para novas finalidades não imaginadas por ocasião de sua coleta. É certo, porém, que o conteúdo normativo desses propósitos legítimos, que servirão de fundamento para o uso secundário de dados pessoais, ainda deve ser lido em atenção às finalidades de cada tratamento, a serem examinadas mesmo quando o acesso a esses dados for público.

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JOTA

Dados pessoais disponíveis publicamente não podem ser utilizados livremente, e estão sujeitos às proteções da Lei

Dados pessoais 'públicos' são, de fato, públicos?

Dados pessoais disponíveis publicamente não podem ser utilizados livremente, e estão sujeitos às proteções da Lei