Paulo L. Casagrande

Caroline Guyt França

Os últimos anos foram marcados por intensos debates relacionados à capacidade de empresas, em especial daquelas que operam plataformas digitais, de coletar e utilizar dados de clientes e usuários. Com a recente expansão da internet e do uso de computadores e smartphones – intensificados durante a pandemia em curso –, tornou-se possível angariar informações cada vez mais detalhadas sobre padrões de navegação e de consumo de cada usuário. Com isso, os dados pessoais ganham relevância estratégica cada vez maior. E, como não poderia deixar de ser, mais atenção dos operadores do direito antitruste1.
Nesse contexto, a possibilidade de que condutas envolvendo o acesso a dados sejam empregadas para excluir, prejudicar ou mesmo impedir a entrada de concorrentes pode parecer um problema novo. Contudo, a prática decisória do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) revela que esse não é o caso.
De fato, antes mesmo da ascensão em importância das plataformas digitais, o órgão analisou diversos casos em mercados mais "tradicionais", em que o tratamento de dados foi variável estratégica fundamental da conduta ou concentração em questão. 
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O primeiro caso a merecer destaque foi a investigação, no início dos anos 2000, de um suposto favorecimento, praticado pela Telemar (atual Oi), à sua coligada Telelistas no mercado de listas telefônicas, na região em que a operadora de telefonia detinha concessão. A conduta anticompetitiva consistiria, primordialmente, na oferta de acesso menos oneroso e de melhor qualidade ao cadastro de assinantes, em detrimento de outras empresas concorrentes.
A investigação foi arquivada após a assinatura de um Termo de Compromisso de Cessação de Conduta (TCC), por meio do qual a Telemar se comprometeu, dentre outras medidas, a ofertar o acesso ao cadastro de assinantes e o serviço de cobrança da lista telefônica em bases não discriminatórias.
Outro caso relevante teve início em 2005, quando a Vesper apresentou denúncia em face da Telemar por conduta baseada no controle da rede local de telefonia, o qual permitiria acesso privilegiado às informações sobre o tráfego telefônico nas redes de seus rivais, bem como do perfil de consumo de mais de 90% dos usuários dos serviços de telecomunicações de sua área de concessão. Conforme a representante, a Telemar teria se utilizado desses dados para a oferecer benefícios aos usuários de forma discriminatória e, com isso, fechar o mercado aos concorrentes.
O processo foi julgado apenas em 2015. O Conselheiro Relator Marcio Oliveira Junior votou pelo seu arquivamento, considerando que a prática poderia ser dividida em duas condutas: a obtenção e mapeamento de informações concorrenciais da concorrente e a realização de promoções. A primeira poderia ser considerada ilícita, mas já tinha sido objeto de análise e condenação pelo órgão regulador setorial, a ANATEL. Quanto à segunda, o Conselheiro entendeu que as ofertas não seriam predatórias (ou seja, abaixo do custo) e, por isso, não teria sido configurada uma infração concorrencial.
A conselheira Ana Frazão, contudo, abriu divergência. Em sua visão, as duas partes descritas pelo relator comporiam uma única conduta. A Telemar, como operadora incumbente, detinha acesso ao perfil de consumo de quase todos os clientes do mercado e, com base em tais dados, teria atuado para "sistematicamente impedir a entrada de qualquer novo concorrente, colocando sob risco a livre concorrência". O presidente Vinicius Carvalho acompanhou o voto da conselheira, e a Telemar foi condenada a pagar multa, estabelecida em seu patamar mínimo.
Já no âmbito do controle de estruturas, o Cade analisou parceria entre a empresa de publicidade digital Phorm e a Telefônica para a personalização da publicidades online com base em dados estatísticos coletados pela provedora de banda larga. O conselheiro Relator Ricardo Machado Ruiz entendeu que a operação não resultava em preocupações concorrenciais, uma vez que a parceria apenas permitiria a entrada de um novo agente no mercado de publicidade online.
Aspecto interessante do caso foi a apresentação de nota técnica pelo Departamento de Proteção de Defesa do Consumidor (DPDC), do Ministério da Justiça, expondo preocupações relacionadas à privacidade dos usuários de internet. Neste ponto, o Conselheiro esclareceu que a análise de impactos na privacidade não seria atribuição institucional do Cade.
O então presidente do Cade, Fernando Furlan, abriu divergência. A seu ver, considerando que a Phorm tinha feito parceria semelhante com a Oi, esta empresa poderia atuar como um agente de coordenação entre as duas grandes operadoras de banda larga. De forma complementar, Furlan apontou preocupações relacionadas à vantagem que a Telefônica e a Oi teriam no mercado de publicidade online, por também atuarem como provedoras de banda larga e, assim, terem acesso a um volume e qualidade de informações muito maiores do que concorrentes. Em razão desses riscos, ele votou pela aprovação da operação condicionada ao desfazimento da parceria da Phorm com a Oi.
O conselheiro Marcos Veríssimo, por sua vez, apontou em seu voto que a Telefônica e a Oi não poderiam ser consideradas concorrentes por atuarem em regiões geográficas distintas, o que afastaria preocupações relacionadas à coordenação entre si. Ademais, concluiu que, no momento da análise, havia várias outras estratégias de captação de dados sobre preferências dos usuários que poderiam atender ao mercado de intermediação publicitária. Com essas observações, o conselheiro acompanhou o voto do conselheiro relator pela aprovação da parceria, no que foi seguido pelos demais conselheiros.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, os primeiros casos analisados pelo Cade sobre o papel de dados pessoais como ativo concorrencialmente relevante ocorreram no setor de telecomunicações, em que um agente incumbente se encontrava em posição estratégica por deter o controle da maior parte da rede local de telefonia ou banda larga.</blockquote>
Nos últimos anos, os dados foram destaque em casos envolvendo o setor financeiro. Em 2016, no ato de concentração que tratou da formação de uma joint-venture entre os principais bancos brasileiros para a criação de um bureau de crédito, a principal preocupação do Cade foi com a possibilidade de os bancos discriminarem bureaus de crédito concorrentes no que se refere ao envio de informações, que é um insumo essencial para a atividade.
O conselheiro relator, Paulo Burnier da Silveira, considerou que o acesso a dados seria uma importante vantagem competitiva no mercado de concessão de crédito, e, no mercado de "cadastro positivo", ele teria o potencial de reduzir a assimetria de informação, o nível de inadimplência e, consequentemente, as taxas de juros.
Ao final, o Ato de Concentração foi aprovado mediante assinatura de um Acordo em Controle de Concentrações (ACC). Dentre outros compromissos, as requerentes concordaram em garantir o envio de informações de forma não discriminatória a todos os bureaus de crédito, bem como em não compartilhar as estruturas entre elas e o novo bureau, para que não houvesse interferência em sua autonomia e independência.
Já em 2018, no âmbito da análise da aquisição da XP Investimentos, o Itaú assinou ACC que incluía uma obrigação de não promover o direcionamento de seus clientes para as plataformas XP em detrimento de outras plataformas abertas, inclusive por meio do fornecimento de informações sobre seus clientes à XP Investimentos.
Por fim, no final do ano de 2020, o tribunal do do conselho homologou um TCC com o Bradesco no âmbito de um processo administrativo que visava a apurar suposta prática da instituição financeira para dificultar o acesso do GuiaBolso, um aplicativo de organização de dados e gestão financeira, às informações da conta corrente dos clientes que expressamente autorizaram tal acesso.
No TCC, o Bradesco se comprometeu a desenvolver interfaces de conexão que possibilitariam ao Guiabolso obter a oferta e captura do consentimento dos usuários que são clientes do banco e acessar os sistemas do Bradesco para coletar os dados dos usuários que fornecerem consentimento.
As breves descrições acima apontam que já por quase duas décadas o Cade lida com casos que, em seu cerne, tratam de aspectos destacados nos recentes relatórios governamentais estrangeiros quanto à relevância concorrencial do tratamento de dados pessoais: restrições no acesso a dados como possível estratégia anticoncorrencial; detenção de grande volume de informações como elemento a viabilizar possíveis condutas exclusionárias; relevância de remédios para viabilizar acesso não-discriminatório e eventuais considerações sobre privacidade no contexto da análise antitruste.
A fim de explorar ainda mais o valor desse track record, um estudo do comportamento dos mercados após a decisão da autoridade antitruste seria pertinente, para verificar se as ferramentas aplicadas foram eficazes para resguardar a concorrência nos mercados, e de que forma poderiam ser aperfeiçoadas. Assim, a avaliação da atuação do Cade no passado pode ser uma importante medida para que a autoridade possa se preparar para a análise de casos mais complexos no futuro.
** Por transparência, informa-se que Paulo Casagrande representou empresas de telecomunicações em alguns dos casos referidos no artigo
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=WAU2xWiR5DQ&list=PLfhZjWODW9JVuLFe6U_ulxCduBHTeECHC&index=1
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dados

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JOTA

Avaliação da atuação do Cade no passado pode ser uma importante medida para analisar casos mais complexos no futuro

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