Guilherme Magaldi Netto

Durante a Idade Média, as regras, que vinham da Antiguidade, sobre a prova da culpabilidade dos acusados em geral, as chamadas “ordálias”, só eram aceitas se a acusação fornecesse ao Tribunal o depoimento de, no mínimo, duas testemunhas oculares da cena criminosa. Uma única testemunha não era suficiente para a condenação, como dizia o famoso brocardo jurídico, tertius uno tertius nulo. Nascia ali a primeira garantia que se concedia ao réu contra o arbítrio da Justiça estatal. Obrigada, porém, a respeitar essa garantia, a Justiça criminal medieval se deu conta que não era fácil obter duas testemunhas presentes na cena do crime. Logo, condenar alguém passou a ser tarefa mais árdua do que quando eram usadas as “ordálias”.
O resultado disso é conhecido daqueles que estudam a história do Processo Penal. Sem duas testemunhas, a acusação precisava, a todo custo, da confissão do acusado. Daí outro brocardo jurídico, confessio est regina probationum; e a confissão se tornou a “rainha” das provas. Sem ela, era difícil condenar alguém.
Da confissão à tortura a distância foi bem curta. Extrair a confissão do réu era o objetivo do processo penal na Idade Média. Tudo se legitimava, até o sofrimento corporal, para obter a declaração de culpabilidade, que diziam ser “voluntária”.
Claro que esse tipo de sistema de administração da Justiça criminal tornou‐se incompatível com o chamado Século das Luzes e, sobretudo, com o advento e triunfo da ideia de Direitos Humanos. Assim como a Idade Média impôs limites às “ordálias”, com o tertius uno tertius nulo, a Idade Moderna também criou suas garantias aos acusados em geral, impondo limites à atuação da Polícia e do Ministério Público. Presunção de inocência; direito ao silêncio; ao due processo of law; direito ao contraditório; ao que os americanos chamam de cross‐examination, direito de contraditar testemunhas da acusação; proibição da autoincriminação, o privilege against self‐incrimination da 5a Emenda à Constituição americana; as regras sobre ônus da prova. Enfim, uma série de obstáculos que tornaram a atividade do Estado‐acusador altamente complexa.
Era de se esperar uma reação da Justiça criminal moderna , tal qual ocorrera na Idade Média. Nunca, todavia, por razões óbvias, com apelo à tortura, ao castigo corporal, já que não somos mais bárbaros como no tempo das “ordálias”. No entanto, uma coisa é certa: a administração da Justiça criminal em muitos países caminha em direção ao brocardo medieval, confessio est regina probationum. A confissão, muito mais do que o devido processo legal, ou a condenação beyond reasonable doubt, tornou‐se a forma mais prática, fácil e econômica de produzir condenações criminais.
O objetivo é bem simples. O processo penal, com todas as garantias oferecidas aos acusados, é caro, lento e, ao final, ineficiente, pois condena muito pouco e todo sistema de Justiça criminal só se legitima quando sua produção é maximizada. Ora, se o réu confessa e, em consequência, renuncia ao direito ao devido processo legal, tudo fica mais fácil – portanto, mais barato. Assim como na Idade Média a confissão proporcionou à acusação a oportunidade de livrar‐se do ônus de trazer a juízo duas testemunhas oculares , no processo penal moderno a confissão passou a ser o meio posto à disposição dos Promotores para “bypassar” o devido processo legal e as regras sobre o ônus da prova, facilitando‐se, desse modo, a condenação do réu. 
O exemplo mais gritante podemos encontrar na Justiça criminal dos EUA. Lá, acusação e defesa podem “negociar” a aplicação da sanção penal. O réu, de sua parte, em troca de favores oferecidos pelo Estado‐acusador (penas mais brandas, multas menores, condições carcerárias mais favoráveis) confessa a prática do delito e, ao mesmo tempo, renuncia ao direito constitucional ao trial, ou seja, renuncia ao direito de ser julgado por um júri imparcial, ao direito de contraditar as provas obtidas pela acusação e ao direito de não se autoincriminar. Chamam esse mecanismo de plea bargaining, guilty plea ou nolo contendere plea.
Essa Justiça Penal negociada soluciona , pasmem , 90% dos crimes cometidos em território americano e que são levados ao conhecimento das autoridades competentes. No caso, por exemplo, dos crimes de uso e tráfico de entorpecentes, esse número chega a 97%, segundo últimas estatísticas do Bureau of Justice Statistics. Isso quer dizer que apenas 10% dos casos penais são julgados pelos Tribunais, já que nos outros 90% os réus confessam e são sentenciados sem o trial by jury. Sim, é a confissão e não o jury trial o maior produtor de condenações criminais nos EUA.
Outro número importante. Se houvesse, por exemplo, uma redução de 90% para apenas 70% de casos solucionados pela confissão do réu (redução de 20%), nessa hipótese , com o aumento do número de processos a serem julgados pelo trial, o orçamento da Justiça americana teria de ser triplicado, sob pena de sucumbir ao excesso de processos.
Esqueçam, portanto, aquela visão mítica do cinema americano sobre julgamentos criminais nas Cortes dos EUA, onde defesa e acusação duelam até o fim. Muito pouco disso ocorre no dia‐a‐dia da Justiça americana. No dia‐a‐dia, acusação e defesa conspiram o tempo inteiro contra as garantias constitucionais do processo penal. À acusação só interessa a confissão do acusado; à defesa obter pena mais branda.
Extrair, portanto, uma confissão, quer na Idade Média, quer nos EUA do século XXI, era e ainda é o objetivo do Estado‐acusador. Os meios para obtê‐la evidentemente não são mais os mesmos. Como diria Foucault, a propósito do processo histórico de atenuação das sanções criminais, hoje, para se obter uma confissão, não se castiga mais o corpo do acusado; agora o castigo atinge a alma. O acusado, mutatis mutandis, encontra‐se na mesma situação de quem, diante de um assaltante com o revolver na mão, é obrigado a escolher entre a vida ou a morte (o gunman paradigm do direito americano). Vale dizer, o réu deve decidir entre, de um lado, o exercício de seus direitos e garantias constitucionais, arriscando‐se, todavia, a sofrer pesada sanção penal, até mesmo a pena de morte, ou, de outro lado, confessar, abandonar seus direitos e, em consequência, obter do Estado uma pena muito mais leve. Seria isso uma escolha livre e voluntária? A Suprema Corte deles disse que sim, mas por uma maioria muito pequena, 5x4, como se vê na decisão do caso Bordenkircher v. Hayes (antes, no caso North Caroline v. Alford, a Corte decidira nesse mesmo sentido por maioria também).
A expansão da confissão como único meio de prova não é, contudo, um fenômeno circunscrito ao direito americano. Outros países caminham nessa direção, ainda que de forma incipiente. Basta lembrar, inter alia, a Itália. O Código de Processo Penal italiano de 1989 criou o que eles chamam de ‘pattegiamento’, previsto nos artigos 444 a 448, assim “applicazione della pena su richiesta dele parti”. O pattegiamento também é um acordo entre acusação e defesa baseado na confissão do réu, exatamente como no plea bargaining.
Num país como a Itália, onde vigora com toda força o princípio da obrigatoriedade da ação penal, era de se esperar ataques ao instituto. O Prof. Ennio Amodio, da Universidade de Milão, lembrou, à época, que muitos processualistas italianos, indignados, diziam que o processo penal italiano havia sido pintado com as cores da bandeira americana! Mas o fato é 
que o pattegiamento vingou, embora não tenha na Itália a importância que o plea bargaining tem nos EUA.
A importância da confissão como meio de prova também vem ganhando corpo entre nós. Nossa legislação processual penal criou nos últimos anos mecanismo processuais baseados na confissão do réu. Acordo de leniência, delação premiada, hoje colaboração premiada, são inovações do nosso processo penal que retomam a ideia medieval da confissão como “rainha” das provas. A delação premiada, sobretudo, vem fazendo muito sucesso. Está em todos os jornais por força de seu uso em caso recente e famoso, a chamada Operação Lava‐Jato.
Para além das dúvidas técnico‐jurídicas que a delação premiada suscita, é importante refletirmos sobre os rumos desse instituto na prática cotidiana da Justiça criminal brasileira. O sucesso da delação, sua capacidade de aumentar o número de condenações, é inversamente proporcional à perda das garantias clássicas do processo penal. Quer dizer, quanto mais uso dela se fizer, quanto mais se acreditar nela como meio de se obter condenações, menores as chances de o processo penal tramitar sob a égide das garantias constitucionais. O réu que confessa e delata é premiado mas deixa de exercer direitos e garantias constitucionais, ou seja, não usufrui do devido processo legal, tal como acontece no bargaining americano.
A acusação, de sua parte, atraída pela eficiência do instituto, tenderá a recorrer a ele mais amiúde. Não é de se descartar, nesse cenário, o risco ou a tentativa de colocar o réu em posição como a do gunman paradigm (A bolsa ou a vida?) do direito americano, onde o acusado terá pouca margem de manobra para rejeitar proposta da acusação. Longe disso imaginar que réus serão torturados , castigados fisicamente para confessar e delatar, como na Idade Média; mas que extrair a confissão e a delação venha a se tornar o principal objetivo de Promotores de Justiça é hipótese plausível. Nos EUA isso já acontece todo dia, toda hora, sendo, pois, um alerta para nós também.

Balance

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JOTA

Extrair confissão, quer na Idade Média, quer no século XXI, era e ainda é o objetivo do Estado‐acusador

Da tortura à delação premiada

Extrair confissão, quer na Idade Média, quer no século XXI, era e ainda é o objetivo do Estado‐acusador