Júlia Arrais F. de L. e Sá

Imagine que o rei de Portugal lhe dá a missão de governar uma colônia no Atlântico e investigar se o trabalho escravo nela realmente foi abolido, deixando toda a sua vida para trás. No romance português Equador, Miguel Sousa Tavares narra a empreitada de Luis Bernardo Valença, que embarca rumo a São Tomé e Príncipe, no início do século XX, com a incumbência régia de apurar a realidade das relações trabalhistas na ilha e adaptá-las ao novo cenário mundial, enquanto mantém o progresso econômico das lavouras de cacau e café, sob a acusação de concorrência desonesta pelos ingleses.
A prática do dumping social nas relações de trabalho, na qual tem-se uma flexibilização desmedida dos direitos trabalhistas frente à majoração dos lucros, não é novidade dos dias de hoje. Tal prática não só afeta os trabalhadores, que veem diminuídos seus direitos constitucionalmente previstos, mas influencia as empresas do ramo que respeitam a legislação trabalhista, em virtude da criação de um ambiente de concorrência desleal resultante da diminuição dos custos operacionais.
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Diante disso, em decisão recente, a juíza Lávia Lacerda Menendez, da 8ª Vara do Trabalho de São Paulo, entendeu pelo reconhecimento de cerca de 15 mil vínculos empregatícios entre a Loggi e a L4B, donas de aplicativo de entrega homônimo, e os condutores motofretistas, em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
Segundo a magistrada, não pode ser dado tratamento diverso às Rés e às pequenas empresas de frete em dia com seus encargos trabalhistas, visto que significaria “[...] chancelar franca concorrência desleal entre as empresas, com indevido favorecimento de mercado. A lei preserva a livre concorrência, mas não a concorrência desleal, como se sabe.”
Além disso, foram reconhecidos os elementos característicos da relação de emprego, tais quais a habitualidade, a subordinação, a pessoalidade e a onerosidade. Restou consignado, ainda, que não há paridade negocial entre a Loggi e a L4B e os entregadores, os quais aderem a cláusulas unilaterais, e que a contratação do serviço em si não é feita diretamente pelo consumidor ao motofretista, mas sim à plataforma.
Em paralelo, no romance português, angolanos eram levados a São Tomé e Príncipe para trabalhar nas lavouras de cacau e café, firmando contratos de trabalho que sequer tiveram acesso, à remuneração ínfima, jornadas extenuantes e com duração de cinco anos, findos os quais sequer tomavam conhecimento, permanecendo nas ilhas indefinidamente. Um exemplo ainda mais concreto da situação: tratavam o recém-chegado Valença de “patrão”, desconhecendo qualquer outro tipo de relação com os portugueses.
No desenrolar da trama, Luis Bernardo começa a refletir o seu papel enquanto governador das ilhas caribenhas no combate a uma relação empregatícia subumana sob a fachada de um contrato de trabalho formal e livremente pactuado, chegando à conclusão de que se deixou levar por “[...] teia de razões e argumentos jurídicos, leis e tratados, contratos celebrados ou por celebrar, [...] todo um enredo em que já se confunde a razão jurídica com a observação dos factos [...]”, significando “tão simplesmente trabalho escravo disfarçado em papéis pseudojurídicos”.
Nesse sentido, a sentença acertadamente proferida não ignorou a importância da livre iniciativa para o progresso socioeconômico, mas deixou claro que tais avanços devem ser acompanhados pelo aspecto social, principalmente quando a flexibilização desmedida dos contratos de motofrete são dissimulados como instrumentos cíveis, que possuem menor custo às contratantes.
Diante disso, a aplicação do Princípio da Primazia da Realidade pela Justiça do Trabalho é medida ímpar para que sejam trazidos à tona, com todos os seus direitos inerentes, os vínculos empregatícios mascarados pelo puro formalismo de um contrato de prestação de serviços, cujo custo operacional é infinitamente menor, e que é instrumento chave na promoção práticas de dumping social.
Se o desencadear desse caso e de outros semelhantes se nortearem pelas palavras de Oscar Wilde, nas quais a “a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>, há esperança de que o limiar entre flexibilização para o desenvolvimento a todo custo e defesa dos direitos trabalhistas visando ao progresso econômico-social sustentável sejam cada vez mais nítidos e demarcados, assim como o “doutô” Valença sonhou naquela tarde em que embarcou rumo ao desconhecido.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Processo nº 1001058-88.2018.5.02.0008. Sentença disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/12/C23FF9E0B820CF_sentencaloggi.pdf
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<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Ensaio “A decadência da mentira - uma observação” (1889), de Oscar Wilde. Disponível em: https://www.portalentretextos.com.br/download/livros-online/adecadenciadamentira.pdf
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JOTA

Sentença não ignorou importância da livre iniciativa, mas deixou claro que avanços devem ser acompanhados pelo aspecto social

Da literatura à Loggi: reflexão sobre o disfarce das relações trabalhistas

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