Daniel Falcão

Andre Bueno da Silveira

“Há momentos históricos em que o caráter de um povo se manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se desnude na sucessão das frequentes anistias concedidas entre nós.”
Ministro Eros Grau, ADPF 153/DF
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O argumento apresentado neste artigo é o seguinte: a concessão de anistia para os crimes envolvendo o “Caixa 2” no âmbito das eleições é inconstitucional em razão de violação ao princípio da moralidade administrativa, aos princípios republicano e democrático e à proteção constitucional da normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico. Tal anistia apenas seria constitucional se ela fosse concedida por outra razão de interesse público que, submetida ao princípio de proporcionalidade, prevalecesse após o devido juízo de ponderação de valores.
A expressão “Caixa 2” é uma ampla e ambígua. Suscita, então, a dúvida: eventual anistia ao “caixa 2” abrangeria apenas a contabilidade paralela no âmbito das eleições ou também incluiria os crimes conexos (lavagem de dinheiro, corrupção, entre outros)?
Há jurisprudência centenária no Supremo Tribunal Federal no sentido de que a anistia abrange os crimes conexos. No Habeas Corpus n° 1.386, de 04/07/1900, o Relator Ministro Piza e Almeida entendeu, quanto à aplicação do Decreto n° 310 de 21/10/1895 em relação aos crimes de morte praticados em 12/10/1896: “É consequência do caráter geral da anistia que ela se estenda aos delitos acessórios que se prendem ao crime político.”. No mesmo sentido, no Recurso em Habeas Corpus n° 28.294, de 1942, segundo o Relator Ministro Philadelpho de Azevedo: “Estão incluídos na anistia ampla outorgada pelo Decreto n° 19.395 de 1930 em relação aos crimes políticos e militares e aos conexos com estes os delitos atribuídos a policiais de um Estado cometidos na perseguição de grupos sediosos que se movimentam no sertão.” Na ADPF n° 153/DF, de 29/04/2010, entendeu o STF: “No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988”.
Os argumentos de que não é possível anistiar algo que não é crime é apenas retórico. O objetivo de uma anistia do “Caixa 2” é extinguir a punibilidade dos crimes conexos, eventualmente praticados em sede de concurso de crimes. 
A Medida n° 8 (Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do “Caixa 2”), uma das 10 propostas de alteração legislativa do Ministério Público Federal (MPF), propõe a criação de dois tipos penais específicos: um para a contabilidade paralela e outro para a modalidade específica de lavagem de dinheiro praticada no âmbito das eleições[1]. Assim, o MPF propôs a criação de um tipo para enquadrar mais precisamente uma situação fática[2] e não promover a extinção da punibilidade das condutas conexas a esta situação, como corrupção, lavagem de dinheiro (independentemente da criação de um tipo especial), organização criminosa, peculato, entre outros.
A necessidade da aprovação explicitamente de uma anistia surge dessa situação. É possível argumentar que a mera aprovação da Medida n° 8 do MPF não seria capaz, por si só, de afetar a punibilidade dos crimes conexos, ou mesmo que isso fosse discutido judicialmente, a decisão levaria muitos anos. Por isso haveria necessidade de aprovação de uma anistia explícita, com uma redação, hipoteticamente e m linhas gerais, nos seguintes termos: “não será punível nas esferas penal, civil e eleitoral, doação contabilizada, não contabilizada ou não declarada, omitida ou ocultada de bens, valores ou serviços, para financiamento de atividade político-partidária ou eleitoral realizada até a data da publicação desta lei.”
Cabe, então, a pergunta: tal lei emanada da Congresso Nacional seria constitucional?
A resposta somente pode ser negativa, salvo se se admitir que “o príncipe” (o Estado, no caso, o Congresso Nacional) pode ser indulgente em relação a si mesmo (portanto, autoanistia) em relação à violação ao patrimônio público e à probidade administrativa (protegidos pelo princípio da moralidade administrativa) como meio de acesso ao poder em uma república democrática.
A anistia é uma das formas da chamada indulgência do príncipe (“indulgentia principis”)[3] e constitui causa de extinção da punibilidade (art. 107, II, Código Penal). Sua função é suavizar a aspereza da justiça (“supplementum iustitiae”), quando particulares circunstâncias políticas, econômicas e sociais, em períodos turbulentos, tornam inevitável a ocorrência de delitos[4]. Assim, o Estado perdoa a prática de infrações penais que, normalmente, têm cunho político, embora nada impeça que também seja concedida a crimes comuns, como meio de pacificação social[5]. 
O princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da Constituição), por sua vez, enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico – condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais. A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado (STF, ADI 2.661 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 5-6-2002, P, DJ de 23-8-2002.). A probidade administrativa é o mais importante conteúdo do princípio da moralidade pública (AP 409, voto do rel. min. Ayres Britto, j. 13-5-2010, P, DJE de 1º-7-2010). 
A proteção constitucional à normalidade e à legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico (art. 14, § 9º, da Constituição) faz com que atos que atentem contra essa proteção configurem “ilícitos eleitorais, sujeitando os beneficiários e os agentes às sanções de inelegibilidade, cassação de registro e perda do diploma[6]”, além da completa subversão do resultado eleitoral, da vontade expressa pelo eleitor e, consequentemente, mancha também a proteção constitucional à igualdade de competitividade nas eleições (TSE, ARO 718/DF, DJ 17-6-2005).
Quanto aos princípios republicano e democrático, na ADPF n° 153/DF, o STF utilizou o seguinte conceito: “num regime autenticamente republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que, ao delinquirem, executaram suas ordens”.
Nesse sentido, segundo Goffredo Telles Junior, a eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente pode também ser causada por arbítrio do Poder[7]. Com base em sua força ou no prestígio de sua demagogia, um governo autoritário pode, às vezes, impor à nação, discricionariamente, mandamentos conflitantes com o sentimento da coletividade, e violadores dos direitos dos cidadãos[8]. Tais mandamentos, incongruentes com o sistema dominante de concepções, são insólitos, extravagantes e não são normas, mas anormalidades[9]. 
Neste contexto, a autoindulgência do “príncipe” em relação ao “Caixa 2”, ou seja, a autoanistia eventualmente cogitada para os crimes de contabilidade paralela e crimes conexos de corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa, entre outros, é inequivocamente inconstitucional por violação ao princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CRFB) e aos princípios republicano e democrático (art. 1°, caput, da CRFB). 
Note-se que, neste caso, a inconstitucionalidade decorre de uma violação direta da Constituição e não é o caso de utilização do princípio da proporcionalidade. A utilização indevida do princípio da proporcionalidade, inclusive, pode levar ao reconhecimento de direitos que não existem (como um suposto direito de estudar em escolas com segregação racial[10]).
No presente caso, não se forma o raciocínio de proporcionalidade porque, para que isso ocorra, é necessário o conflito entre dois princípios. A análise de proporcionalidade necessitaria de uma contraposição à violação ao princípio da moralidade administrativa e também à permissão de utilização do proveito de crime para ascensão na democracia brasileira. 
A favor da anistia, se simplesmente fosse instaurado um raciocínio de proporcionalidade, seria reconhecido, implicitamente, a existência de um outro princípio constitucional contraposto à moralidade administrativa e à preservação da democracia brasileira que não existe.  
Ad arguendo, qual seria o princípio constitucional protegido a favor daqueles que eventualmente almejam a anistia? A resposta seria uma aplicação da lei (que não é propriamente retroatividade[11]) prejudicial em razão da efetiva implementação (enforcement) das regras de proteção ao patrimônio público e à moralidade administrativa e a outros crimes que tutelam tais bens jurídicos. 
Mas neste caso não existe proteção contra a retroatividade, porque não se trata de direito adquirido, uma vez não existe um direito adquirido de delinquir, e também não existe sequer expectativa de direito protegida, porque as leis a serem aplicadas já estavam em vigor, ou seja, não há proteção da expectativa de direito de impunidade. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro não oferece proteção contra esta aplicação da lei.
Para não se dizer que nunca seria possível uma anistia em casos semelhantes ao discutido neste artigo, ela somente seria admissível se houvesse contraposição de algum outro princípio ou de algum outro valor constitucional fundamental. Nesta hipótese, então, seria instaurada o raciocínio de proporcionalidade. Teria de ser uma outra razão de interesse público, protegida constitucionalmente, e que, após o exame de proporcionalidade, justificasse a anistia de crimes tão graves.
Em suma, a concessão de anistia para os crimes envolvendo o “Caixa 2” no âmbito das eleições é inconstitucional em razão de pura e simples violação ao princípio da moralidade administrativa e aos princípios republicano e democrático. Ainda que houvesse a possibilidade de utilização do raciocínio de proporcionalidade, o Congresso Nacional teria de apresentar uma razão de interesse público, que submetida a um exame de proporcionalidade, justificasse a edição de uma anistia como a descrita neste artigo. 

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[1]  A redação dos tipos penais propostas pelo MPF é a seguinte: “Art. 2º A Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, passa a vigorar acrescida dos arts. 32- A e 32-B a seguir: “Art. 32-A. Manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral. Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. § 1º Incorrem nas penas deste artigo os candidatos e os gestores e administradores dos comitês financeiros dos partidos políticos e das coligações. § 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), no caso de algum agente público ou político concorrer, de qualquer modo, para a prática criminosa.” “Art. 32-B. Ocultar ou dissimular, para fins eleitorais, a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, de fontes de recursos vedadas pela legislação eleitoral ou que não tenham sido contabilizados na forma exigida pela legislação. Pena – Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. § 1º Incorrem nas mesmas penas quem utiliza, para fins eleitorais, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, de fontes de recursos vedadas pela legislação eleitoral ou que não tenham sido contabilizados na forma exigida pela legislação. § 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se os crimes definidos neste artigo forem cometidos de forma reiterada.” 
[2] Conforme explica a proposta: “Propõe-se, também, a alteração da Lei das Eleições, Lei nº 9.504/1997, para tipificar, como crime, a conduta do “Caixa 2” – art. 32-A – e a variante eleitoral da Lavagem de Dinheiro, art. 32- B. São situações que apresentam “dignidade penal”, em razão de sua grande repercussão nas disputas eleitorais, que podem ser por essa prática desequilibradas. Além disso, há insuficiência das sanções extrapenais, como a rejeição das contas de candidatos ou partidos e mesmo a cassação do diploma que, por definição, só alcança candidatos eleitos. A quantidade de pena prevista para a conduta eleitoral de “lavagem” corresponde às penas da Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012, especialmente para evitar que ilícitos de idêntica gravosidade recebam sanção distinta.” Disponível em: &lt;http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_8_versao-2015-06-25.pdf&gt;. Acesso em 26/11/2016. 
[3] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, 18ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2016, p. 835. 
[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, ob. cit., p. 835. 
[5] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, ob. cit., pp. 835-836. 
[6] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12ª ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 378. 
[7] TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 215. 
[8] TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, ob. cit., p. 215. 
[9] TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, ob. cit., p. 215. 
[10] TSAKYRAKIS, Stavros, “Proportionality: An Assault on Human Rights”, In International Journal of Constitutional Law, n. 7, 2009, pp. 487-488. 
[11] MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed. São Paulo: Saraiva e IDP, 2009, pp. 501-508.

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JOTA

Violação ao princípio da moralidade administrativa e aos princípios republicano e democrático

Da inconstitucionalidade da anistia dos crimes de Caixa 2

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