Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Qual é o objetivo da vida – ficar rico? Todos aqueles sujeitos que estão ficando ricos poderiam estar dançando em torno do verdadeiro assunto da vida.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Paul A. Volcker</footer>
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<footer>“Não aprenderam nada nem esqueceram nada”, dizia Talleyrand dos Bourbon da França. Apeados do poder pela Revolução Francesa (1789-1799), a casa de Bourbon fora restaurada no trono após a queda de Napoleão em 1814, apenas para repetir os mesmos erros e ser novamente apeada pela casa de Orléans na Revolução de Julho de 1830. Todo o mundo merece uma segunda chance. Poucos sobrevivem para pedir uma terceira.
A mesma constatação do diplomata e estadista francês pode ser feita a respeito dos atuais barões do sistema financeiro internacional. Em uma reprise do processo que levou à crise financeira global de 2008, que se iniciou com o colapso do Lehman Brothers, o mundo assistiu atônito na semana passada à quebra do Silicon Valley Bank (SVB), o 16º maior banco norte-americano, que arrastou também o Silver Gate e o Signature, gerando temor de um colapso sistêmico como o de 2007-2008. Os efeitos, de fato, já se fizeram sentir do outro lado do Atlântico, com a quebra do Credit Suisse e sua rápida aquisição pelo rival UBS, o maior banco da Suíça.
Ninguém é profeta em sua própria terra, mas, como a leitora atenta bem deve se recordar, antecipamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/armadilhas-juridicas-para-o-quantitative-tightening-10062022">aqui nesta coluna</a> em junho do ano passado que a introdução de uma política monetária restritiva por parte do Federal Reserve (Fed), batizada de quantitative tightening (QT), se fosse mal calibrada, poderia, sim, gerar uma crise estrutural no sistema financeiro internacional. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/armadilhas-juridicas-para-o-quantitative-tightening-10062022">Na coluna de 16 junho de 2022</a>, alertamos especificamente para o fato de que existem armadilhas ocultas nas economias nacionais, que dificultam em muito a reversão de um processo histórico de quantitative easing (QE) como o que vinha sendo perseguido desde a crise de 2008.Alertamos, na época, que “o risco, cara leitora, é o de o processo de QT não ser dosado na medida correta, fazendo com que a operação saia do controle, gerando uma alta excessiva de juros e uma consequente falta de liquidez no mercado, produzindo uma quebradeira geral". E é exatamente o que está acontecendo agora. Quem avisa amigo é.
O cerne do problema, em linhas muito gerais, é bastante simples. Os bancos, e os intermediários financeiros em geral, operam um negócio baseado no arbitramento da diferença entre a taxa de juros pela qual eles tomam recursos e a taxa de juros pela qual eles emprestam recursos. Os depósitos de seus clientes, na verdade, são uma obrigação das instituições financeiras, pela qual elas têm de pagar juros. Uma parte desses depósitos são convertidos em empréstimos a outros clientes, que representam receitas para os bancos, ao passo em que outra parte é investida, normalmente em títulos de longo prazo. Esses títulos de longo prazo são renegociados no mercado secundário, caso o banco ou instituição financeira necessidade de recursos rápidos para honrar as suas obrigações no curto prazo.
Os riscos, cara leitora, de operações simples como essas, são raros, mas de efeitos devastadores. Trata-se dos <a href="https://www.wsj.com/articles/what-is-tail-risk-1441766937">tail risks</a> de que tanto fala Nassim Nicholas Taleb. São basicamente duas situações de risco sistêmico interno, nas quais uma corrida dos clientes aos seus depósitos, pode fazer com que o banco não consiga honrá-los todos ao mesmo tempo: ou porque a maior parte dos depósitos está realocada em empréstimos para outros clientes, ou porque o banco não consegue se desfazer dos ativos de seu balanço de pagamentos, por alguma razão, como, por exemplo, uma alta muito rápida das taxas de juros referenciais, que é o caso agora.
O que ocorre no momento atual é um misto das duas situações. Em um ambiente global de taxas de juros reais muito baixas ou mesmo negativas, como o que se verificou nas últimas décadas, as instituições financeiras acompanhavam a taxa de referência tanto para seus investimentos de longo prazo quanto para a rentabilidade que ofereciam para seus correntistas. Com a interrupção desse paradigma em meados do ano passado e o consequente processo de aperto monetário com alta progressiva dos juros, os clientes dos bancos passam a buscar opções mais rentáveis do que os depósitos em conta corrente e investimentos de poupança. Ao mesmo tempo, os títulos de longo prazo começam a pagar juros consideravelmente mais altos do que aqueles emitidos em um passado recente, retirando a atratividade dos mais antigos.
Com a alta dos juros, os títulos mais antigos, assim, tornaram-se invendáveis no mercado secundário da noite para o dia, impedindo que as instituições financeiras se desfaçam deles para levantar liquidez para honrar seus compromissos de curto prazo. Uma corrida aos depósitos, nesse cenário, poderia, sem dúvida alguma, tornar-se fatal.
E foi exatamente isso o que ocorreu. Repare a leitora que a base de clientes do SVB está nas start ups de tecnologia do Vale do Silício, na Califórnia. Justamente o setor mais impactado pela atual revolução da inteligência artificial, que explodiu em novembro passado com o lançamento do ChatGPT. Desde então o Vale do Silício já <a href="https://www.businessinsider.com/ai-could-replace-jobs-as-advances-coincide-with-tech-layoffs-2023-3">demitiu mais de 200 mil pessoas</a>, na maior redução em massa da história da indústria da tecnologia. Natural que as empresas pequenas e médias do setor corressem para seus depósitos neste momento de disrupção do mercado com a entrada de uma nova e revolucionária tecnologia, gerando uma crise sistêmica muito parecida com a de 2007-2008.
A ironia, cara leitora, é que a crise no sistema financeiro se dá mesmo após a avalanche de regulamentação que vem sendo imposta ao setor bancário global desde a crise de 2008. “Para garantir que uma crise como essa nunca mais volte a acontecer, o presidente Obama sancionou o Dodd-Frank Act de Reforma de Wall Street e de Proteção ao Consumidor. Maior reforma da história de Wall Street, o Dodd-Frank Act impedirá a tomada excessiva de riscos que levou à crise financeira”, <a href="https://obamawhitehouse.archives.gov/economy/middle-class/dodd-frank-wall-street-reform">rezam os arquivos da Casa Branca.</a> Talleyrand suspira.
Na mesma linha dos Bourbon da restauração, os bancos centrais propõem os mesmos remédios aplicados durante a crise de 2008, de socorro aos bancos e socialização das perdas, que apenas agravaram a situação, postergando o ajuste de contas que, mais cedo ou mais tarde, fatalmente virá. E o maior problema com esse processo de socialização das perdas é que ele gerou um dos maiores níveis de desigualdade da história, em processo que analisamos em nosso livro <a href="https://www.amazon.com.br/Centelhas-Tempestade-Diplomacia-Mundo-Transformação-ebook/dp/B09W42TTL4/ref=sr_1_1?crid=1B0LCYJ93SHVA&amp;keywords=centelhas+de+tempestade+a+diplomacia+em+um+mundo+em+transformação&amp;qid=1679361616&amp;sprefix=%2Caps%2C1640&amp;sr=8-1">“Centelhas de Tempestade: A Diplomacia em um Mundo em Transformação” (Saraiva)</a>. Trata-se de um injusto sistema de lucros privados e perdas coletivas.
A atual crise bancária, contudo, dá um passo além nesse processo. Como a leitora bem deve se recordar, a crise de 2008 criou a figura do “too big to fail”, isto é, de instituições “grandes demais para quebrar”, cuja falha, alega o argumento, poderia ter um “efeito sistêmico” por toda a economia global. Com a quebra do SVB, agora, alega-se que mesmo os bancos médios, como era o caso do SVB, também são “too big to fail”. A leitora não está errada se tem a sensação de que a deixaram na porta estacionando os carros.
O The Economist, <a href="https://www.economist.com/leaders/2023/03/16/whats-wrong-with-the-banks">em editorial</a>, defende que a solução passa pela imposição de ainda mais regulamentação sobre o setor financeiro internacional, que já sucumbe a uma intricada e ininteligível teia de normas, em especial após a edição do Dodd-Frank Act. “Os banqueiros vão odiar a ideia de ainda mais reservas de capital e regulamentação. Mas os ganhos com a segurança são vastos”, vaticina o prestigioso jornal. Será?
O problema, cara leitora, não está no âmbito da regulamentação, nem mesmo no dos mercados de títulos, como erroneamente alegam alguns. O problema está no âmbito da administração. Das estratégicas de alocação de portfólio e na ganância pura e simples.
Veja bem. Já de início há uma vulnerabilidade no padrão do mercado financeiro de tomar no curto prazo, por meio de depósitos, e investir no longo prazo, por meio de títulos. Essa estratégia, que é generalizada no setor, é vulnerável ao risco de uma elevação rápida das taxas de juros, como vimos acima. Como os depósitos são, via de regra, de curto prazo, a maioria dos países conta com um fundo garantidor para depósitos até um certo patamar. Nos EUA, por exemplo, que é o paradigma da economia global, a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) garante os depósitos bancários até o limite de US$ 250 mil.
Mas e o restante dos depósitos, isto é, o valor que exceder esse limite? No caso de uma crise, como a atual, eles estão perdidos? Depende. E depende principalmente da gestão da instituição financeira depositária, isto é, se ela estruturou uma operação de hedge e seguros para precaver-se dos riscos de um evento adverso. Contudo, <a href="https://www.economist.com/finance-and-economics/2023/03/16/how-deep-is-the-rot-in-americas-banking-industry">como bem demonstrou um estudo de Erica Jiang da Universidade da Carolina do Sul citado pela Economist</a>, “ainda que parte desses riscos podem ser protegidos por uma estratégia de hedge, isso é caro e é improvável que os bancos tenham feito muito disso”. Trata-se da velha história de não fazer seguro porque é “caro”. Greed is good.
Além de caro, a lógica do too big to fail opera um desincentivo às operações de hedge e de seguros financeiros. <a href="https://www.politico.com/news/2023/03/13/the-emergency-bank-rescue-that-almost-didnt-happen-72-hours-00086868?ref=notes-on-the-crises">O governo norte-americano estendeu a garantia do FDIC a todos os depósitos do SVB, mesmo aqueles que excediam o teto do seguro</a>. Para Niall Ferguson, <a href="https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2023-03-19/history-has-a-warning-for-jay-powell-on-how-to-handle-a-banking-crisis">"esse não é um comprometimento trivial do dinheiro dos contribuintes".</a>
“Não aprenderam nada nem esqueceram nada.” Para que, então, fazer um seguro “caro”, se as perdas serão ao final socializadas? A culpa é dos juros, do mercado de títulos, dos depositantes. A solução? Mais regulamentação, claro.
Há, contudo, um toque de justiça poética nesta crise. Barney Frank, um dos pais do Dodd-Frank Act, era membro do conselho de administração do Signature. “Nem mesmo em minhas fantasias mais loucas eu previ que o próprio Barney Frank faria parte do conselho de um dos bancos (Signature) que explodiria na próxima crise financeira”, <a href="https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2023-03-19/history-has-a-warning-for-jay-powell-on-how-to-handle-a-banking-crisis">desabafou Niall Ferguson</a>. Surreal. Deus quem punire vult dementat.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Post Scriptum. Este é o centésimo texto desta coluna. Agradeço enormemente o apoio do JOTA e o carinho que venho recebendo das leitoras e dos leitores assíduos deste espaço, que semanalmente me cobram a continuidade da coluna, em que pesem as inúmeras distrações e imprevistos da vida contemporânea.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Deus enlouquece a quem Ele quer punir.
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JOTA

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