Está em andamento no Supremo Tribunal Federal o relevante caso que trata da possibilidade de descriminalização do porte de drogas para consumo próprio (RE 635.659 – SP, Rel. Min. Gilmar Mendes). Até o momento duas correntes se formaram: votaram favoravelmente à descriminalização somente da maconha os Ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, enquanto o Relator votou no sentido de descriminalizar todas as drogas. O julgamento encontra-se suspenso desde o dia 10/09/2015 por pedido de vista do Ministro Teori Zavascki.

O voto[1] do Min. Roberto Barroso merece destaque eis que além de decidir pela descriminalização da maconha para consumo pessoal ainda estabeleceu critérios objetivos para o porte da droga com o objetivo de distinguir o usuário do traficante.

Propôs como parâmetro a quantidade de 25 gramas, com base no bem sucedido modelo português, mas ressaltou que “poderá o juiz, fundamentadamente, entender que se trata de traficante, a despeito da quantidade ser menor, bem como de que se trata de usuário, a despeito da quantidade ser maior.” Sendo esse o caso o ônus argumentativo do magistrado será maior. Acerca do plantio, votou por utilizar o parâmetro adotado no Uruguai que é de 6 (seis) plantas fêmeas.

O estabelecimento de critérios objetivos nitidamente reveste a decisão de caráter aditivo. Trata-se de técnica decisória em controle de constitucionalidade de matéria penal que encontra respaldo na doutrina nacional e estrangeira e nas jurisprudências da Corte Costituzionale e do Supremo Tribunal Federal.

Embora nenhum Ministro tenha abordado esse aspecto, parece que a ausência legal de parâmetros objetivos na quadra atual gera uma inconstitucionalidade por omissão parcial. Nesse sentido, o voto do Ministro Roberto Barroso mostra-se adequado estando em assonância com o modelo italiano de decisões desta espécie[2] já que a norma (art. 28, §2, da Lei 11.348/2006) é inconstitucional por omissão parcial enquanto não estabelece ..., ou não prevê ... ou omite... a quantidade de maconha necessária para caracterizar o consumo pessoal, pressuposto necessário para ser compatível com a Constituição[3]. Tal omissão cria no sistema vigente uma distorção que viola os princípios da igualdade, liberdade (art. 5º, caput, da Constituição) e segurança jurídica, eis que comumente a etnia ou a condição social influenciam de forma determinante na tipificação do autor como usuário ou traficante, recaindo esta última de forma massiva sobre negros e pobres.

Caso o Supremo simplesmente declare a inconstitucionalidade da norma sem estabelecer critérios objetivos a omissão parcial mencionada subsistirá no sistema jurídico penal, permitindo uma lacuna perigosa no ordenamento. A criação normativa no caso é conditio sine qua non para se admitir a descriminalização da maconha para consumo pessoal. Como o caso trata da atipicidade da conduta necessariamente deve ser criado um parâmetro distinguindo o usuário do traficante, sob pena de manter vigente uma omissão que viola a Constituição.

Ademais, ao adicionar conteúdo normativo em vez de apenas declarar a inconstitucionalidade da norma, o voto do Ministro Roberto Barroso prestigia a presunção de constitucionalidade do dispositivo, porquanto o acolhimento da demolição da lei deve ser visto como ultima ratio diante da forte interferência do Judiciário quando declara uma inconstitucionalidade.

A adição de conteúdo normativo para “salvar a lei” é menos invasiva do que o efeito demolitório completo resultante da declaração de inconstitucionalidade. A criação normativa judicial não se confunde com a criação legislativa (STF, 85060, Rel. Min Eros Grau, 1ª T, Dj. 23/09/2008, Dje. 12/02/2009). Conforme ressalta Lenio Streck[4]: “Quando se adiciona sentido ou se reduz sentido (ou a própria incidência de uma norma) estar-se-a fazendo algo que vai além ou aquém do texto da lei, o que não significa afirmar que o Tribunal está legislando. Pelo contrário. Ao adaptar o texto legal à Constituição, a partir dos diversos mecanismos hermenêuticos existentes, o juiz ou tribunal estará tão somente cumprindo sua função de guardião de constitucionalidade das leis.”

O estabelecimento de critérios objetivos pelo Judiciário não exclui a atuação do legislador omisso, sendo evidente e desejável que haja a criação normativa devida dentro da sua margem de conformidade. A atuação normativa judicial possui óbvio caráter supletivo e precário, de modo a abrir portas para um diálogo entre o Judiciário e o Legislativo.

O Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do aborto de fetos anencéfalos (ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, Dj. 12/04/2012, Dje. 20/04/2012), ainda que não o tenha feito de forma expressa, em verdade, prolatou uma sentença aditiva in bonam partem. Embora a maioria do Tribunal tenha se posicionado pela atipicidade da conduta, a nosso sentir - acompanhando a minoria formada - o STF, através de uma interpretação conforme, criou uma sentença aditiva in bonam partem incluindo, na prática, uma excludente de ilicitude ao crime de aborto.

Neste sentido manifestou-se o Ministro César Peluso em seu voto: “No fundo se trata – e nisso não há dúvida alguma – de criar, à margem da interpretação das normas de caráter penal, mais uma excludente de ilicitude.”. Na mesma linha, votou o Ministro Carlos Velloso: “Pretende-se, mediante interpretação da lei penal conforme a Constituição, instituir uma terceira excludente de criminalidade relativamente ao crime de aborto”. A Ministra Ellen Gracie em seu voto refere-se à prolação de sentença aditiva: “Circunstâncias há, porém, em que as disposições de inconstitucionalidade tornam necessário o preenchimento de lacunas criadas pela própria decisão, por isso, fala-se em efeitos aditivos que podem ter as sentenças dos Tribunais Constitucionais.”

O Ministro Gilmar Mendes em seu voto, além de reconhecer o uso de tal técnica e dos seus efeitos, fomenta sua utilização, diferentemente de seus pares, criando, inclusive, condições para que o aborto de fetos anencéfalos fosse realizado. Ademais, ressalta que as sentenças aditivas surgem como uma ferramenta importante no combate à omissão inconstitucional ratificando a superação do ultrapassado paradigma kelseniano de legislador negativo.

Da mesma forma já se manifestou a Corte Constitucional italiana pela possibilidade de prolação de sentenças aditivas penais in bonam partem com restrição da aplicação da norma penal, ou aplicação da norma mais favorável em virtude do princípio da igualdade, ou até mesmo com criação de novas hipóteses mais benéficas.

No caso da sentença 27 de 1975 - criação de uma hipótese de aborto -, foi declarada a inconstitucionalidade por omissão parcial (dichiarazione di parziale illegittimità costituzionale) do art. 546 do Código Penal na parte em que não previa que a gravidez poderia ser interrompida quando a gestação ulterior implicasse dano, perigo, gravidade, comprovada por médico, cujo fundamento fosse inevitável para a saúde da mãe. Entendeu-se que o dispositivo violara os arts. 31 e 32 da Constituição Italiana que preveem a proteção da maternidade, a saúde como direito fundamental e a impossibilidade da lei violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana.

Na sentença 354 de 2002, foi declarada a inconstitucionalidade do art. 688, 2, do Código Penal, na parte em que pune com pena de prisão de 3 a 6 meses qualquer um que, em lugar público, é pego em estado de manifesta embriaguez, se o fato é cometido por agente que já possui uma condenação por crime doloso contra a vida ou integridade física individual. Os argumentos se lastrearam na violação de dispositivos constitucionais: art. 3 – direito à dignidade e igualdade -, art. 25, 2, – princípio da legalidade – e 27, 3,- a pena não pode conter tratamento desumano ou deve servir a reeducação do condenado. A sentença enfatizou a questão da desproporcionalidade com a criação de uma hipótese que violava o princípio da igualdade, já que direcionava a norma penal, de forma irrazoável, para uma categoria específica de sujeitos: os alcoólatras. Segundo a ratio decidendi isso violaria também os princípios da lesividade, legalidade e materialidade da lei penal, nos termos do art. 27, 3, da Constituição Italiana.

Na sentença 101 de 1999, a Corte declarou a inconstitucionalidade por omissão do art. 376, 1, do Código Penal, na parte em que não previa a retratação como causa de não punibilidade, para aquele que, seja a pedido da polícia ou sob delegação do Ministério Público, para fornecer informações sobre a investigação, tenha prestado declarações falsas no todo ou em parte, mas depois se retratava. Também nesse caso a sentença aditiva foi prolatada pela violação do princípio da igualdade, art. 3 da Constituição Italiana, eis que o Código Penal previa outras hipóteses de retratação (Prestação de falsas informações à polícia ou ao MP; falso testemunho; falsa perícia; favorecimento pessoal) inclusive aquela do caso em comento, mas somente quando feita ao Ministério Público e não à polícia. Ressaltou a Corte na fundamentação que “o princípio da igualdade é uma exigência na margem de conformidade do legislador”, ou seja, deve funcionar como norte da atuação legiferante em matéria penal.

Ressalte-se que há entendimento do STF (Recurso Extraordinário 254.818, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 8-11-2000, Plenário, DJ de 19-12-2002) admitindo a edição de Medidas Provisórias in bonam partem - que abolem crimes ou lhes restringem o alcance, extingam ou abrandem penas ou ampliam os casos de isenção de pena ou de extinção de punibilidade -, apesar da vedação expressa do texto constitucional para essa espécie normativa tratar sobre matéria relativa a direito penal (art. 62, §1º, I, b). Vale mencionar outro aspecto que não é objeto de alarde doutrinário: trata-se da atuação normativa da Administração Pública em âmbito penal. Basta pensar na possibilidade de influência na seara criminal pela ANVISA - normas penais em branco heterogêneas que precisam de complementação -, de modo que, na prática, é a própria agência reguladora quem declara a ilicitude de determinada substância através de uma Portaria.

No âmbito do Direito Penal, o estabelecimento de critérios objetivos por meio de sentença aditiva está em consonância com o princípio da taxatividade, que sempre deve nortear a criação legislativa, no sentido de trazer previsibilidade clara ao cidadão acerca do parâmetro punitivo, funcionando como condição de possibilidade da isonomia e da segurança jurídica.

Por fim, conforme reiteradamente sustentado pelo Min. Gilmar Mendes, o controle de constitucionalidade das leis em matéria penal deve ser baseado em níveis de intensidade (HC 104.410, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 6-3-2012, Segunda Turma, DJE de 27-3-2012).

Podem ser distinguidos três níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); - se a norma é devida ou equivocada para proteger o bem jurídico. Ou seja, se as medidas adotadas pelo legislador mostram-se idôneas à efetiva proteção do bem jurídico fundamental. “A norma somente poderá ser declarada inconstitucional quando as medidas adotadas pelo legislador se mostrarem claramente inidôneas para a efetiva proteção do bem jurídico fundamental.”; b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); - “O exame de constitucionalidade compreende primeiramente a verificação de se o legislador buscou inteirar- se, correta e suficientemente, da situação fática existente à época da promulgação da lei.”

Ou seja, levam-se em conta os diagnósticos e prognósticos; c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). Nesse terceiro nível, o Tribunal examina se a “medida legislativa interventiva em dado direito fundamental é necessariamente obrigatória, do ponto de vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes.” É a manifestação da proporcionalidade em sentido estrito. Porém, segundo ele, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, “deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais.”

A proposta feita no voto do Min. Luís Roberto Barroso contribui sobremaneira para o Direito Penal e Constitucional, encontrando amplo respaldo jurídico. As jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e da Corte Constitucional italiana, bem como os entendimentos acerca do controle de constitucionalidade das normas penais endossam a possibilidade de descriminalização para consumo pessoal e do consequente estabelecimento de critérios objetivos, sob pena de manter em vigor omissão inconstitucional perigosa. Vale relembrar que o voto admite a alteração da qualificação a despeito da quantidade, mediante fundamentação do juiz - hipótese na qual o ônus argumentativo do magistrado deverá ser maior -, revelando deferência ao texto do §2º, do art. 28 da Lei 11.348/2006. A criação judicial tem caráter supletivo e precário, razão pela qual, ao fim e ao cabo, o Legislativo deverá atuar levando em conta os princípios da taxatividade, proporcionalidade e igualdade.

Como afirmou o próprio Ministro Roberto Barroso em artigo publicado na RBPP[5]: “(...) a jurisdição constitucional desempenha papel de maior destaque quando o Poder Legislativo não tenha atuado. É nas lacunas normativas ou nas omissões inconstitucionais que o STF assume papel de eventual protagonismo. Como consequência, no fundo no fundo, é o próprio Congresso que detém a decisão final, inclusive sobre o nível de judicialização da vida”.

A omissão do Legislativo e a delicadeza do tema certamente alçarão o Supremo a uma posição de destaque na arena nacional, havendo ou não a criação de parâmetros pelo Tribunal. Destarte, o estabelecimento de critérios objetivos é medida que se impõe, eis que constitucionalmente adequado e imprescindível para atribuir coerência e segurança jurídica a esse célebre precedente.

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Agradeço aos amigos Luis Guilherme Lacerda e Renato Barcellos pelas críticas e sugestões ao presente artigo. Ambos são exemplos de amizade e comprometimento profissional. Sou igualmente grato à Professora Dra. Valeria Piergigli que me auxiliou substancialmente na pesquisa que realizei quando estive na Universidade de Siena, na Itália.

[1] Afirma que o papel do Estado deve ser o de a) desincentivar o consumo; b) tratar os dependentes; e c) combater o tráfico. No item III de seu voto, ele traz dois argumentos fáticos e filosóficos: i) a guerra às drogas fracassou; ii) o Brasil possui peculiaridades que levam o tráfico a uma posição de forte poder. Sob o ponto de vista jurídico aduz que existem três fundamentos legitimadores da descriminalização à luz da Constituição brasileira: i) a violação do direito de privacidade; ii) a violação da autonomia individual; e ii) a violação ao princípio da proporcionalidade. Em seu voto entende que é essencial estabelecer um critério objetivo para distinguir consumo de tráfico em razão de dois fatores: i) “O primeiro, naturalmente, é diminuir a discricionariedade judicial e uniformizar a aplicação da lei, evitando que a sorte de um indivíduo fique ao sabor do policial ou do juiz ser mais liberal ou mais severo.”; ii) “O segundo é pragmático: “os jovens de classe média para cima, moradores dos bairros mais abonados, como regra, são enquadrados como usuários; os jovens mais pobres e vulneráveis, que são alvo preferencial das forças de segurança pública, são enquadrados como traficantes.”

[2] Para um aprofundamento sobre o tema Cf. MALUF, André Luiz. Lei do Mandado de Injunção abre portas para sentenças aditivas. Conjur, 25 de julho de 2016; Cf. DOUGLAS, William; ARAÚJO, Eugênio Rosa de.; CHAVES, André Luiz Maluf. Omissão Inconstitucional e Revisão Geral Anual dos Servidores Públicos. Impetus, Niterói, 2ª Ed. 2016. Cf. CHAVES, André Luiz Maluf; RODRIGUES-PEREIRA, Thiago. Sentenças Aditivas e a Atuação Criativa do STF: Um Estudo Comparado entre Brasil e Itália. In: Felipe Asensi. (Org.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. 1ed. Rio de Janeiro: Ágora21, 2015, v. , p. 23-52.

[3]Cf. BELLOCCI, GIOVANETTI, Il quadro delle tipologie decisorie nelle pronunce della Corte Costituzionale, 2010; e MALFATI, PANIZZA, ROMBOLI, Giustizia Costituzionale. 4a Ed, Giappichelli Editore, Torino, 2013.

[4] Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, RT, 2013, p. 753.

[5] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, 2015 p. 45.

Critérios objetivos para o porte de drogas

Omissão inconstitucional e sentenças aditivas