Gabriel de Carvalho Sampaio

O país assiste atônito à atual crise do sistema penitenciário. O número de mortes já a insere como a maior desde o massacre do Carandiru. 
Em resposta a esse quadro, as principais propostas do Governo Federal, contidas no Plano Nacional de Segurança Pública[1], mostram-se equivocadas e não enfrentam o cerne das questões que tornaram insustentável o atual modelo, como o encarceramento em massa e a ausência de condições de promoção da harmônica integração social dos presos, como prevê nossa legislação.
Além disso, o plano não trata com prioridade a proibição de prisões em delegacias, onde as violações aos direitos dos presos, além de especialmente mais agudas, geram desvio de atividades de policiamento. Propõe, ainda, a ampliação da permanência de presos por crimes com violência ou grave ameaça para patamares superiores aos atualmente aplicados a crimes hediondos.
Destaca-se, que o Governo Federal autoriza destinação de volumosos recursos aos estados para aquisição de equipamentos para presídios deixando de assegurar recursos para efetivação da devida assistência à pessoa presa, como projetos de acesso à saúde, criação de vagas de trabalho e estudo, ou  a implementação de alternativas penais, p. ex.
As medidas listadas não estão à altura do que exige o insustentável quadro de encarceramento em massa, em que o Brasil é o 4º país com maior número absoluto de presos no mundo, com um total de mais de 622 mil presos. Possuímos, ainda, um déficit de mais de 250 mil vagas, sendo que, na contramão dos países com maior número de presos, registramos média de aumento da população prisional de 7% ao ano (sendo de 10,7% apenas considerando as mulheres presas). Mais de 37 mil presos em carceragens de delegacias[2], 40% de presos provisórios (sem condenação). Apenas 13% dos presos participam de alguma atividade educacional, e 20% trabalham. Doenças como tuberculose e Aids atingiram níveis epidêmicos - a título de exemplo, uma pessoa presa tem chance 28 vezes maior de contrair tuberculose do que o resto da população.
O principal crime que mantêm as pessoas presas é o tráfico de drogas (28%). Condutas como o furto representam 13% dos presos, mais do que o percentual de presos por homicídio (10%).[3]
A realidade aponta para a necessidade imperiosa de racionalização do modelo de responsabilização, sem o qual crises como as atualmente vividas se sucederão, como aliás já tem se sucedido nas últimas duas décadas, podendo-se citar: Massacre do Carandiru, São Paulo, com 111 mortos, em 1992[4]; Massacre da Papuda, Distrito Federal, com 11 mortos, no ano 2000[5]; Megarrebelião de São Paulo, em 2001, com 29 presídios tomados e 16 mortos[6]; Chacina do Urso Branco, Porto Velho-RO, com 27 mortos, em 2002[7]; Chacina na Casa de Custódia de Benfica, Rio de Janeiro/RJ, com 30 mortos, em 2004[8];  ataques do PCC, com 24 rebeliões, ataques a delegacias e bases policiais e um saldo de 564 mortos, conhecido como “crimes de maio”[9], em  2006; Chacina de Pedrinas, São Luís do Maranhão, com 18 mortos, em 2010[10].
O grave problema do encarceramento em massa e o alto índice de superlotação das unidades prisionais exige a correção da atual política de drogas, principal responsável por esse fenômeno. O tema merece debate social profundo e racional, devendo-se reconhecer que o vertiginoso aumento das prisões por tráfico (que triplicou entre 2006 e 2014), não reduziu o consumo de drogas e também não desarticulou as organizações que o controlam. Pode-se dizer que o resultado foi o contrário, o modelo ajudou na organização de facções e suas atividades criminosas. 
O modelo de criminalização do tráfico de drogas presente em nossa legislação é baseado no incorreto pressuposto de que seu rigor é capaz de proteger a saúde pública. É forçoso reconhecer, contudo, que as drogas que mais geram demandas e recursos da saúde pública são legalizadas (tabaco e álcool) e controladas por grandes empresas de inserção internacional. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apontam que o uso abusivo de álcool resulta em 2,5 milhões de mortes ao ano; 9% das mortes de jovens entre 15 e 29 anos são relacionadas ao uso de álcool, este considerado o terceiro maior fator de risco para desenvolvimento de outros males de saúde.[11] Em relação ao tabaco, a OMS revelou que ele mata mais da metade dos seus usuários, isto é, aproximadamente 6 milhões de pessoas a cada ano, sendo que mais de 5 milhões são resultados direto do uso, enquanto mais de 600.000 são resultado do fumo passivo. A organização trata o problema como uma epidemia e como um dos maiores problemas de saúde pública do planeta.
Por outro lado, quanto à lucratividade desses negócios, segundo dados de 2009, as cinco maiores indústrias de bebidas alcoólicas do mundo possuem valor de mercado de mais de US$ 227 bilhões. Já no âmbito da indústria de tabaco, em 2010, o total das receitas das seis maiores empresas mundiais do setor chegou a US$ 346,2 bilhões.[12]
Não é demais destacar que, apesar de todo rigor punitivo, assim como os investimentos globais em repressão, o tráfico ilícito de drogas mantém sua alta lucratividade e a movimentação extraordinária de recursos financeiros, como demonstra o próprio Escritório das Nações Unidas de Combate às Drogas (UNODC). Segundo a entidade, o tráfico de drogas ilícitas pode contabilizar entre 17 a 25% de todos os rendimentos do crime, cerca de metade do produto do crime organizado transnacional, o que equivale de 0,6% a 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) global. Em termos de fluxos financeiros somente o tráfico de cocaína pode ter gerado um lucro de US$ 85 bilhões em 2010 e já havia gerado US$ 84 bilhões em 2009, demonstrando claramente que esta é a atividade que mais gera renda ao crime organizado transnacional, cujos proventos totais podem ter chegado a US$ 870 bilhões em 2009.[13]
Esses dados apontam de forma clara o fracasso do atual modelo, que ainda traz graves consequências para os índices de violência, impulsionados pelo tráfico ilegal de armas, por exemplo, que gerou 42,3 mil mortos por armas de fogo em 2014, segundo o último mapa da violência[14].
Diante da complexidade do problema, respostas mais elaboradas são urgentes e precisam ser debatidas abertamente com a sociedade. Nesse sentido, a transição para a regulamentação do comércio de drogas se afigura como a política mais adequada, pois assegura ao Estado a regulamentação da produção, que permite o controle sobre as substâncias produzidas, reduzindo danos à saúde de usuários. Também se possibilita a ampliação de recursos para políticas de redução de danos e conscientização sobre as consequências do consumo. Além disso, permite o acesso seguro e controlado às drogas, protegendo usuários do ciclo da violência. 
O processo de transição para esta realidade também exige debate em âmbito internacional, com troca de experiências com países como o Uruguai e estados norte-americanos, acompanhado de medidas que modifiquem a legislação interna, como a imediata descriminalização do uso de drogas, a despenalização (aplicação de alternativas penais) das condutas sem natureza econômica e praticadas sem emprego de violência ou por organização criminosa.
Outro tema que exige enfrentamento para equacionar a crise do sistema penitenciário diz respeito às prisões provisórias, que representam 40% da população prisional e só pode ser superado com medidas mais efetivas para aplicação das demais medidas cautelares alternativas à prisão disponíveis em nossa legislação, em especial a monitoração eletrônica, em casos mais graves, além da imposição de prazo de até 90 dias à prisão preventiva, exigindo-se fundamentação mais rigorosa para sua aplicação, onde se apontem os motivos de não aplicação de outras medidas cautelares. Aprovada essa medida deve ser feita a imediata revisão de processos de réus presos, priorizando-se aqueles que se encontrem em unidades superlotadas e em delegacias.
Em relação às alternativas penais, deve-se assegurar o aumento das hipóteses para aplicação, autorizando o juiz a cominá-las sempre que entender adequado, além de torná-la obrigatória para casos em que a pena for compatível com regime aberto ou semiaberto. Deve ser adotada em todos os casos de crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça, hipóteses em que a reparação da vítima deve implicar na extinção da punibilidade da conduta.
Deve haver critérios mais rígidos para a produção de leis penais, que não podem ser tratadas como a mais fácil saída para a reprovação social de condutas. Assim, deve-se estabelecer quórum especial (o mesmo de PEC, 3/5 em cada casa legislativa) para a criação de novo tipo penal, agravamento de pena ou de seu regime de cumprimento, e necessidade de estudo de impacto para autorizar sua tramitação (com as estimativas de incremento da população carcerária e as condições materiais para que o sistema penitenciário seja capaz de comportar novos presos).
Deve ser criada imposição legal para que as unidades da federação que possuem déficit de vagas e presos em delegacias apresentem planos que detalhem as providências a serem tomadas para assegurar o cumprimento da legislação que rege a execução penal, especialmente no que toca à promoção da integração social do preso e garantia de todos os seus direitos não atingidos pela prisão. Referida obrigação deve constituir condição para acesso a futuros repasses de verba federal.
A essas propostas deve se somar a edição de novo decreto de indulto, que retome avanços dos decretos anteriores.[15]
Nesse quadrante se insere a necessidade de articulação de um Pacto Republicano em torno do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Pacto republicano porque as medidas necessárias envolvem não apenas as autoridades do Poder Executivo, mas de todo o sistema de justiça criminal (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensorias Públicas, Poder Legislativo, etc.). A medida não é nova. O Brasil já experimentou três outros pactos similares, sendo o primeiro deles datado de 2004, para tratar da reforma do sistema de justiça.[16]
O país já conta com um Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária[17], construído pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), em 2015, contendo, no campo da política criminal, 10 medidas, dentre as quais: alteração da atual política de drogas, diferenciando hipóteses sem natureza econômica e o tratamento entre usuário e traficante; novo tratamento para os crimes contra o patrimônio, com redução de pena para os praticados sem violência e extinção de punibilidade para casos de reparação da vítima; redução das prisões provisórias, implementando alternativas já previstas em lei, fixação de prazo para julgamento de presos provisórios e sua separação dos já apenados, etc. No plano da política penitenciária, outras 10 medidas, das quais merecem menção: a necessidade de implantação de sistema de alternativas penais, uso da monitoração eletrônica para desencarceramento, fortalecimento da política de integração social, com tratamento digno do preso, investimento em política de reintegração social, abordando o trabalho, assistência social, educação e saúde da pessoa presa.
Como se pode observar, as medidas propostas demandam o engajamento de atores de todos os Poderes e de todas as esferas da federação, sendo fundamental que contem também com o engajamento da sociedade civil organizada para sua avaliação, qualificação, monitoramento e fiscalização, o que apenas será possível por meio de um pacto republicano. O atual Plano Nacional de Segurança Pública não se mostra capaz de cumprir esse papel.
Reprovável que, nesse contexto, o Ministério da Justiça esteja se pautando pelo diversionismo, a desqualificação de críticas e partidarização do debate, como se demonstrou pela autoritária modificação na composição do CNPCP, bem como por sua reação à renúncia de conselheiros. 
O curso das periódicas crises do sistema penitenciário só será interrompido com a tomada de medidas que enfrentem o cerne dos problemas de nosso sistema, o que exigirá coragem, amplo debate com a sociedade e governos que gozem de legitimidade, conduta republicana e capacidade de liderar um grande pacto social.
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[1] Disponível em: <a href="http://www.justica.gov.br/noticias/plano-nacional-de-seguranca-preve-integracao-entre-poder-publico-e-sociedade/pnsp060117.pdf">http://www.justica.gov.br/noticias/plano-nacional-de-seguranca-preve-integracao-entre-poder-publico-e-sociedade/pnsp060117.pdf</a> 
[2] A respeito: relatório da organização Human Rights Watch, disponível em: <a href="https://www.hrw.org/legacy/portuguese/reports/presos/index.htm">https://www.hrw.org/legacy/portuguese/reports/presos/index.htm</a> 
[3] Dados disponíveis em: <a href="http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf">http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf</a> 
[4] A respeito: <a href="http://www.terra.com.br/noticias/especial/carandiru/episodio.htm">http://www.terra.com.br/noticias/especial/carandiru/episodio.htm</a> 
[5] A respeito: <a href="http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/papuda.htm">http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/papuda.htm</a> 
[6] A respeito: <a href="http://brasil.estadao.com.br/blogs/arquivo/a-maior-rebeliao-da-historia/">http://brasil.estadao.com.br/blogs/arquivo/a-maior-rebeliao-da-historia/</a> 
[7] A respeito: <a href="http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/chacinas-brasil/chacinas-brasil-04.htm">http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/chacinas-brasil/chacinas-brasil-04.htm</a> 
[8] A respeito: <a href="http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u95117.shtml">http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u95117.shtml</a> 
[9] A respeito: <a href="http://www.observatoriodeseguranca.org/imprensa/cronologiapcc">http://www.observatoriodeseguranca.org/imprensa/cronologiapcc 
</a>[10] A respeito: <a href="https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2010/11/09/termina-rebeliao-em-presidio-de-sao-luis-18-morreram.htm">https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2010/11/09/termina-rebeliao-em-presidio-de-sao-luis-18-morreram.htm</a> e <a href="http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1394160-presos-filmam-decapitados-em-penitenciaria-no-maranhao-veja-video.shtml">http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1394160-presos-filmam-decapitados-em-penitenciaria-no-maranhao-veja-video.shtml</a> 
[11] ALCOHOL. World Health Organization, Media Centre. Disponível em: <a href="http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs349/en/index.html">http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs349/en/index.html</a> 
[12] TOBACCO Companies. The Tobacco Atlas.  Disponível em: &lt;http://www.tobaccoatlas.org/industry/tobacco_companies/text/&gt; 
[13] Dados extraídos da publicação: UNODC. Estimating illicit financial flows resulting from drug trafficking and other transnational organized crimes. Research Report. 2011. Disponível em: http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/Studies/Illicit_financial_flows_2011_web.pdf. 
[14] Disponível em: <a href="http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf">http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf</a>, p. 16. 
[15] Sobre o assunto esclarecedor o texto da jurista Marina Lacerda: <a href="http://justificando.cartacapital.com.br/2016/12/23/natal-sem-perdao-os-retrocessos-no-indulto-de-temer/">http://justificando.cartacapital.com.br/2016/12/23/natal-sem-perdao-os-retrocessos-no-indulto-de-temer/</a> 
[16] http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfDestaque_pt_br&amp;idConteudo=173547 
[17] Disponível em: <a href="http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/cnpcp-1/imagens-cnpcp/plano-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria-2015.pdf">http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/cnpcp-1/imagens-cnpcp/plano-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria-2015.pdf</a>

hand of a prisoner

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JOTA

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