Ana Carpinetti

Renato Henrique Caumo

De forma simples, pode-se dizer que os criptoativos são todos a mesma coisa. O problema, contudo, é que a literatura especializada no assunto não é uniforme em definir o que seria essa “coisa”, embora existam pontos de convergência relevantes quanto aos conceitos gerais.
Na definição adotada pela OCDE em conhecido trabalho sobre o tema<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[1]</a>, e que resume bem esses pontos de convergência, criptoativos são “ativos financeiros digitais baseados em tecnologias de registros distribuídos (…) e criptografia como parte de seu valor percebido ou inerente”.
De uma maneira menos técnica, um criptoativo (ou token<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[2]</a>) é um registro virtual que representa alguma “coisa” no mundo digital, e que não necessariamente precisa ter correlação com outra “coisa” no mundo não digital, cuja transferência eletrônica entre titulares é processada por meio de tecnologias de registros cadastrais criptografados.
Resta apenas identificar que “coisa” no mundo digital seria essa. E isso não é tarefa fácil, já que um criptoativo pode representar diferentes coisas. E é justamente por isso que a tributação dos criptoativos tem se mostrado um desafio tão grande para as autoridades fiscais, pois o criptoativo (em si) não representa nada, dado que o seu significado (no mundo não digital) depende muito de suas características subjacentes, e do uso que será feito dele em cada caso concreto.
Assim, tem-se que os criptoativos parecem apresentar uma certa natureza “referencial”. Vejamos alguns exemplos concretos:
<ol>
<li>um token pode ser uma representação de uma criptomoeda sem outras funções intrínsecas (e.g. bitcoin) e, nesse caso, provavelmente será utilizado de maneira parecida com uma “moeda tradicional” (fiat). Contudo, um token de criptomoeda também pode apresentar uma utilidade intrínseca, como servir de meio de pagamento para operações realizadas em determinado ecossistema financeiro ou operacional (e.g. ethereum, cardano/ADA), ou ter o seu valor referenciado em moedas fiat (e.g. tether e USDC), e, nesse caso, provavelmente terá usos mais próximos de um ativo financeiro;</li>
<li>Um criptoativo também pode ser representativo de um bem físico (e.g. um token pode representar uma quota-parte do título de propriedade de um ativo não digital, como um quadro, ou o direito de uso de uma cadeira cativa num estádio de futebol). Em alguns casos, um token pode até mesmo ser “resgatado” por utilidades do mundo não digital (e.g. o token SOCKS pode ser trocado por pares de meias virtuais…<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[3]</a>, mas nada impede que seja criado um token passível de troca por bens físicos), hipótese em poderá ser transacionado de maneira semelhante a uma mercadoria, ou talvez como um “certificado de mercadoria”, como seria o caso de um conhecimento de depósito ou warrant;</li>
<li>Não obstante, nada impede que um criptoativo seja representativo de um bem inteiramente virtual (e.g. a propriedade de uma obra de arte digital, como alguns tokens não fungíveis que representam certos punks, gatinhos ou macacos chateados) e, nesse caso, provavelmente será transacionado de maneira semelhante a um “direito”;</li>
<li>Um token também poderia ser representativo de uma participação financeira em algum empreendimento (veja-se o caso das “organizações autônomas descentralizadas”, ou DAOs<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[4]</a>, que pretendemos abordar em maiores detalhes noutra oportunidade), ou mesmo de uma aplicação financeira sui generis (como algumas operações de finanças descentralizadas, ou DeFis) e, neste caso, talvez seja transacionado como um contrato de investimentos ou valor mobiliário<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[5]</a>.</li>
</ol>
Essa breve lista não exaustiva de exemplos sequer chega perto de evidenciar os inúmeros usos e possibilidades que podem ser atribuídos a criptoativos transacionáveis por meio de registros sequenciais de transferência eletrônica, pois praticamente “quaisquer coisas” com as quais se possa estabelecer uma relação representativa de propriedade são, em princípio, passíveis de serem representadas por tokens.
Disso, até agora, seria possível inferir que um criptoativo “deveria” ser tributado de acordo com as suas características intrínsecas e/ou o uso que será feito dele, como as autoridades fiscais do Reino Unido parecem ter sugerido<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[6]</a>. Por essa proposta das autoridades britânicas, quando um token tiver características e/ou for utilizado como um “ativo financeiro”, “bem intangível”, ou “valor mobiliário”, ele deverá ser tributado como tal.
Ocorre que essa abordagem referencial provavelmente ensejará enormes dificuldades práticas, pois a julgar pelos estudos da OCDE, a maioria dos sistemas fiscais existentes foi desenhada para tributar operações envolvendo categorias bem definidas de ativos, e não operações envolvendo ativos “camaleônicos”, que a depender do contexto se comportam de formas diferentes, mas que no fundo não são uma coisa e nem outra<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[7]</a>.
Com isso, a abordagem referencial possivelmente levaria a incontáveis disputas entre Fisco e contribuintes, pois por melhor que seja a regulamentação editada, certamente existirão características comuns a duas ou mais categorias de ativos/operações que, potencialmente, permitirão classificar um token de maneiras diferentes a depender da interpretação em cada situação concreta, encorajando a litigiosidade tributária.
Outra abordagem para o assunto parece ser a tentativa de enquadrar os criptoativos em categorias pré-determinadas e fixas. Esse enfoque já foi adotado pelas autoridades fiscais de diversos países — como dos Estados Unidos<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[8]</a>, que, de maneira ainda limitada, indicaram entender que as criptomoedas devem ser tratadas como “propriedade”, ou do Brasil<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[9]</a>, para as quais tanto os criptoativos quanto as criptomoedas representam “ativos financeiros” para fins fiscais.
Uma possível crítica a essa abordagem é que a “categorização forçada” é terreno fértil para os planejamentos tributários, além de apresentar um grande potencial para distorcer a atuação dos participantes da economia digital.
Imaginemos que as autoridades fiscais de determinado país definam que todos os criptoativos são “propriedade” (bens intangíveis), e que a tributação sobre essa categoria de bens seja “menor” do que a tributação que recai sobre “bens físicos” (como mercadorias ou propriedades imobiliárias, por exemplo) ou “ativos financeiros”.
De imediato, surgirá a oportunidade de criar tokens representativos da propriedade de bens físicos ou ativos financeiros, e que poderão ser transacionados no lugar dos bens físicos ou dos ativos financeiros propriamente ditos, substituindo parte da tributação que incidirá em algumas etapas intermediárias da cadeia econômica daquelas outras operações, dado que os bens físicos ou ativos financeiros representados pelos tokens não serão transacionados até que sejam “resgatados” por algum beneficiário final/adquirente do token que os representa.
Há também o risco decorrente de uma eventual inconsistência de classificação dentro de um mesmo sistema, pois uma autoridade fiscal (e.g. federal) poderia classificar os criptoativos de uma maneira e, em seguida, outra autoridade fiscal do mesmo país (e.g. estadual ou municipal) poderia classificar o mesmo ativo de outra maneira, de acordo com a sua conveniência arrecadatória.
Dito tudo isso, nos parece que a identificação da melhor abordagem para tributar as “várias coisas” que os criptoativos podem representar ainda depende de maiores discussões entre os vários atores interessados no assunto, como governos, agentes econômicos e universidades, e que, atualmente, ainda não foi identificada uma solução verdadeiramente adequada.
Pela perspectiva brasileira, resta continuar contribuindo com os debates e acompanhar como os Poderes Executivos e Legislativos, em todos os níveis da Federação, irão se posicionar sobre o assunto.
Por fim, não podemos esquecer que a legislação brasileira em vigor já poderia ser aplicada a muitas operações envolvendo criptoativos, e ainda que diversas normas não tenham sido concebidas especificamente para essas transações, talvez não seja necessário reinventar a roda.
<hr />
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[1]</a> OECD (2020), Taxing Virtual Currencies: An Overview Of Tax Treatments And Emerging Tax Policy Issues, OECD, Paris. <a href="http://www.oecd.org/tax/tax-policy/taxing-virtual-currencies-an-overview-of-tax-treatments-and-emerging-%20tax-policy%20issues.htm">www.oecd.org/tax/tax-policy/taxing-virtual-currencies-an-overview-of-tax-treatments-and-emerging- tax-policy issues.htm</a>, acessado em 01.03.2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[2]</a> Não se busca, neste breve artigo, adentrar o debate sobre a diferença entre “criptomoeda” (coin ou native token), comumente utilizada para denominar aqueles tokens de pagamento nativos de uma blockchain e que representam uma proposta de meio de troca, e tokens propriamente ditos, que, a partir de uma blockchain, funcionam como a representação digital de um ativo (inclusive moedas fiat).  Para fins da presente discussão, parte-se da premissa que (em alguma medida) criptomoedas também são tokens.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[3]</a> <a href="https://www.criptofacil.com/par-de-meias-vira-token-e-ja-vale-quase-1-milhao-ao-valorizar-1-324-000/">https://www.criptofacil.com/par-de-meias-vira-token-e-ja-vale-quase-1-milhao-ao-valorizar-1-324-000/</a>, acessado em 01.03.2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[4]</a> Securities and Exchange Comission.  Release No. 81207, Jul. 25, 2017.  Report of Investigation Pursuant to Section 21(a) of the Securities Exchange Act of 1934: The DAO, disponível em <a href="https://www.sec.gov/litigation/investreport/34-81207.pdf">https://www.sec.gov/litigation/investreport/34-81207.pdf</a>, acessado em 01.03.2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[5]</a> Ressaltamos o curioso caso judicial (em andamento) no qual a Securities and Exchange Comission (equivalente estadunidense da Comissão de Valores Mobiliários brasileira) acusa uma empresa norte-americana de supostamente utilizar os tokens de sua emissão como valores mobiliários (securities), o que ela contesta vigorosamente.  Disponível em <a href="https://www.plainsite.org/dockets/4fneo9k2n/new-york-southern-district-court/securities-and-exchange-commission-v-ripple-labs-inc-et-al/?/">https://www.plainsite.org/dockets/4fneo9k2n/new-york-southern-district-court/securities-and-exchange-commission-v-ripple-labs-inc-et-al/?</a>, acessado em 01.03.2022.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[6]</a> HMRC Internal Manual: Cryptoassets. Disponível em <a href="https://www.gov.uk/hmrc-internal-manuals/cryptoassets-manual/crypto10100">https://www.gov.uk/hmrc-internal-manuals/cryptoassets-manual/crypto10100</a>, acessado em 01.03.2022.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[7]</a> Assim como as criptomoedas não podem ser verdadeiramente consideradas “moedas”, por lhes faltar características indispensáveis como o curso forçado e o suporte institucional de um Estado soberano, um token SOCKS obviamente não é uma meia, e um token DAO não é uma ação representativa do capital social de uma empresa.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[8]</a> Internal Revenue Service.  Notice 2014-21.  Disponível em <a href="https://www.irs.gov/pub/irs-drop/n-14-21.pdf">https://www.irs.gov/pub/irs-drop/n-14-21.pdf</a>, acessado em 01.03.2022.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[9]</a> Secretaria da Receita Federal do Brasil.  IRPF:  Perguntas e Respostas.  Disponível em <a href="https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/declaracoes/dirpf/pr-irpf-2021-v-1-2-2021-04-29.pdf">https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/declaracoes/dirpf/pr-irpf-2021-v-1-2-2021-04-29.pdf</a>, acessado em 02.03.2022.

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