Ana Carolina Haliuc Bragança

Crimes ambientais são associados, tradicionalmente, à ideia de criminalidade de menor potencial ofensivo ou de menor gravidade, em função das baixas sanções atribuídas a muitos dos tipos penais constantes da Lei n. 9.605/1998. Contudo, a realidade, em especial na Amazônia, aponta para uma situação diferente. Cada vez mais, os crimes ambientais associam-se a outras tipologias delitivas, como crimes de falso, corrupção, lavagem de ativos, evasão fiscal e, por vezes, crimes violentos –  redução a condição análoga à de escravo, exploração sexual, ameaças e violências contra populações tradicionais. Em especial no caso de crimes ambientais relacionados à extração ilegal de minérios, delineiam-se relações em que se favorece, por meio do recurso mineral, a lavagem de ativos derivados de outros delitos,  a exemplo de corrupção de agentes públicos e tráfico de drogas. Não fosse o suficiente, os crimes ambientais geram danos não apenas ao meio ambiente, mas às populações humanas. Os efeitos do desmatamento já são sentidos no sul amazônico, com diminuição da temporada de chuvas e prejuízo à agricultura local. No Pará, os povos Munduruku estão contaminados por mercúrio. Alter do Chão, um paraíso de turismo ecológico, foi manchado por poluição derivada de garimpos no ano de 2022. As mudanças climáticas são sensíveis em todo globo, e a Amazônia ocupa um papel de destaque na estabilidade do clima da América do Sul e do planeta como um todo.
Toda essa complexidade por muito tempo foi obscurecida, no Sistema de Justiça, em função da ainda presente e arraigada ideia de menor potencial ofensivo dos crimes ambientais. Essa ideia produz uma dupla e cruel seletividade. Por um lado, ela impõe a espada do sistema criminal sobre pessoas que praticam crimes de fato menos graves, de constatação mais fácil em fiscalizações ambientais rotineiras, e que acabam por atrair a possibilidade imediata de oferecimento de propostas de transação penal. Crimes contra a fauna com menor alcance e desmatamentos menores em áreas privadas encontram-se nessa categoria. Por outro lado, os processos mais gravosos, associados a outras tipologias delitivas, que operam valendo-se de mecanismos para ocultação dos efetivos responsáveis pelas atividades danosas, ficam fora do alcance do Direito Penal, porquanto, para que esse universo seja enxergado, ele requer um olhar investigativo e acusatório diferenciado, que a informalidade e celeridade dos trâmites de Juizados Especiais não permite desenvolver. Assim, os pequenos são enxergados e punidos, enquanto os grandes não apenas passam ao largo do Sistema de Justiça, como são por vezes enaltecidos pelas sociedades locais como grandes empreendedores, pioneiros, mantenedores das economias regionais.
O primeiro desafio do Sistema de Justiça no enfrentamento ao crime ambiental organizado é reconhecer que essa seletividade existe e revertê-la, para que casos menos graves possam ser tratados na esfera administrativa e civil, quando suficientes. O Direito Penal é ultima ratio, é subsidiário, é fragmentário. É justamente a não-aplicação desses princípios que gera a seletividade às avessas: não se admitindo que, ao se querer processar criminalmente tudo, o que é de fato importante fica de fora, segue-se penalizando o fraco e protegendo o forte. A solução alternativa é reconhecer que a seletividade é incontornável e que o princípio da obrigatoriedade da ação penal deve ser mitigado em prol da adoção de critérios objetivos e claros, dentro dos Ministérios Públicos, observadas as peculiaridades locais e regionais, para identificação das hipóteses em que o Direito Penal se faça realmente necessário.
Dou, aqui, o exemplo do Amazonas: ao longo do ano de 2021, houve 7.828 alertas de desmatamento no Estado, segundo a Plataforma MapBiomas. Mais de 80% desse montante incide sob áreas de dominialidade da União Federal, como apura periodicamente o Estado do Amazonas, no âmbito de seu Plano de Prevenção e Controle ao Desmatamento e Queimadas. São 1.987km2 desmatados em um ano, uma área quase três vezes superior ao Município de Florianópolis. Se fosse viável que cada alerta ensejasse uma atuação do Sistema de Justiça, em um único ano haveria ao menos seis mil novos procedimentos na Justiça Federal e órgãos associados, a serem manejados por uma única vara federal especializada em meio ambiente, e quatro Procuradores da República. Esse é um único tema sob responsabilidade da Justiça Federal, a ele somando-se outras questões de extrema relevância, como o enfrentamento à exploração ilegal de ouro, ao tráfico internacional de animais silvestres, a grilagem de terras públicas federais, a exportação de madeira ilegalmente extraída. Esse cenário é o sonho de grandes criminosos: um sistema de justiça ocupado demais com casos de pequeno impacto e com capacidade limitada de processamento de grandes redes criminosas.
Antes que se argumente ser o acordo de não persecução penal o mecanismo pensado pelo Sistema de Justiça para solução desse problema do manejo de pequenos casos, já que, no caso de crimes ambientais, ele pressupõe a punição imediata e reparação do dano, observo que o instituto, na prática, enfrenta limitações nessa seara. Em um contexto de indefinição fundiária, como o vigente na Amazônia,  a identificação de quem seja o efetivo autor do crime exige diligências adicionais ao cruzamento de dados entre área desmatada e titulares declarados junto ao Estado. Isso porque, com frequência, as pessoas que se apresentam como possuidores ou proprietários em registros públicos, como Cadastro Ambiental Rural e SIGEF/INCRA, não são aquelas que efetivamente ocupam a terra. Esse raciocínio não se aplica à responsabilidade civil ambiental, mas apenas à responsabilidade criminal, que é subjetiva, e exige prova de quem seja o efetivo autor, imediato ou mediato, da conduta delitiva. Se não há elementos para denunciar, não há acordo a ser proposto, e o caminho correto seria a instauração de procedimentos investigatórios – mais de 6.000 novos no Amazonas apenas para 2021 e para casos de desmatamento a corte raso, rememore-se. E mesmo quando o acordo é possível, por haver justa causa suficiente ao oferecimento de denúncia, a reparação dos danos é muito raramente aceita, já que esses danos são muito vultosos e a mobilização de capital necessária é, ao tempo em que inescapável, indigesta para aqueles a quem se propõe um ANPP.
Vale lembrar, ainda, que muitos no rol de “pequenos” são pessoas descapitalizadas, que investiram tudo nos próprios ilícitos ambientais, o que compromete inclusive a reparação de danos em função de sentença criminal condenatória. Mobilizar o Direito Penal em contextos como esse é ineficiente e, mais do que isso, desanimador para todos os operadores do Direito que intervêm na persecução penal. Uma ação civil pública cumpriria muito melhor a mesma função de proteção ao meio ambiente, com parâmetros diferenciados para responsabilização, tendo em vista a adoção, no Direito Brasileiro, da responsabilidade civil objetiva por danos ambientais.
Em suma, o Sistema de Justiça precisa avançar no entendimento de que a inexistência de seletividade é, em si, uma seletividade, que favorece grandes criminosos ambientais e mitiga a capacidade do Estado de responder  à complexidade das redes de criminalidade ambiental organizada na Amazônia. O desenvolvimento de um olhar investigativo, acusatório e sancionatório adequados, dentro dos parâmetros de legalidade e de tecnicidade do Direito Penal, pressupõe a capacidade do Sistema de Justiça de debruçar-se sobre casos mais graves com profundidade e zelo. Para isso, o primeiro passo é reconhecer que o Direito Penal deve ser reservado a um número limitado de situações, na esteira da construção de um Direito que se valha de vários instrumentos reparatórios e sancionatórios, à medida da respectiva necessidade, a fim de fortalecer a proteção eficaz ao meio ambiente, e não de reproduzir uma burocracia que têm insistentemente falhado nessa intenção.

amazonia meio ambiente

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JOTA

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