Gabriel Nogueira Dias

Leonardo Peixoto Barbosa

Ao aniversário de 10 anos da entrada em vigor da nova lei concorrencial Brasileira (Lei nº 12.529 ou “LDC”), foi sancionada, no último dia 18 de novembro a Lei n.º 14.470/2022, dedicada a turbinar de vez as chamadas ações de reparação privada por danos decorrentes de práticas de cartel (ARDCs).
Proposta pelo então Senador Aécio Neves (PSDB) em 2016 a partir de clara inspiração nos treeble damages do direito anglo-saxão, a iniciativa congressual exsurge como reforço à política pública de proteção e defesa da concorrência no País, que, ao menos até hoje, vem se desenvolvendo, em primeiro plano, através da persecução (i) administrativa, via Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (Art. 36 da Lei nº 12.529/2011); e (ii) penal, via Parquet e Cortes, nos casos de crimes contra a ordem econômica (art. 4º da Lei n.º 8.137/1994); e, apenas aqui e acolá, (iii) através de ARDCs, haja vista o art. 927 CC c/c art. 47 da LDC.
Com efeito, longe de se alterar o “CADEcentrismo” que marca tão fortemente o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, busca-se, isso sim, incrementar o seu nível geral de enforcement e benefícios concretos aos lesados através, por assim dizer, d’uma manobra estratégico-normativo em pinça. Assim, em uma visão de helicóptero, trata-se, d’um lado, de aumentar ainda mais o sexy appeal de tradicionais instrumentos de colaboração (e.g. acordos de leniência e de cessação de conduta) da atual persecução administrativa realizada pelo CADE, conectando seus benefícios não apenas à conhecida eliminação/redução de multas administrativas e/ou consequências penais, mas também a um menor potencial lastro indenizatório no âmbito de ações cíveis de reparação àqueles que decidirem “cooperar”. D’outro lado, almeja o recém-aprovado novel diminuir custos de transação àqueles que ousam movimentar a máquina judiciária pátria ao dissipar em definitivo importantes dúvidas e incertezas jurídicas ligadas ao contencioso cível por reparação de danos concorrenciais, melhor sistematizando, pois, clássicos temas como aquele sobre o prazo prescricional das ações.
Em termos mais acadêmicos, se é verdade que “qui bene distinguit bene docet”, a Lei n.º 14.470/2022, organizada em “caixinhas”, deixa-se retratar a partir de três grandes grupos de medidas inovadoras.
No primeiro grupo de medidas, destinado a criar incentivos (financeiros) para a propositura das ações, está a inédita previsão do direito à reparação em montante equivalente ao dobro do dano sofrido decorrente de ato anticompetitivo coordenado (cartel ou influência à adoção de conduta concertada), conforme estabelece o novo art. 47, §1º, da LDC. Não fosse a já mencionada inspiração alienígena<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, a ideia de que “o errado”, “o ilícito” deve ser castigado “em dobro” vem mais recentemente grassando no nosso ordenamento em diferentes campos jurídicos, como, por exemplo, no direito do consumidor (v. CDC art. 42, § único – repetição em dobro por cobrança indevida) ou no direito civil e regulatório, haja vista a drástica previsão – julgada, a propósito, constitucional pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a><a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> – do artigo 8º da Lei 10.209/2001, que confere ao transportador de carga o recebimento de todo o frete em dobro, caso não tenha recebido o vale-pedágio adiantado.
No segundo grupo encontram-se disposições para bem equilibrar esforços investigativos do CADE (persecução pública) e fomento à persecução privada. À luz (i) da importância dos acordos de leniência e TCCs (Termos de Compromisso de Cessação) ao CADE (i.e. fonte fundamental ao recebimento de provas à condenação de empresas, bem como fator de desestabilização de cartéis); e (ii) do fato de que tais acordos não implicavam ausência do dever de reparação previsto no art. 47 da LDC, age a Lei n.º 14.470/2022 para “ajustar os incentivos” e proporcionar aos celebrantes de tais acordos nova carta de imunidade, agora ao dever de reparação em dobro cumulada com a isenção de responsabilidade solidária por prejuízos causados a terceiros.
No último grupo inserem-se, então, aquelas disposições que visam a dar maior clareza às regras processuais aplicáveis às partes de ARDCs. De modo firme, estabelece-se (i) a inexistência de presunção de repassasse de sobrepreço por ente prejudicado pela conduta anticompetitiva, a qual precisa ser provada pelo demandado (inversão do ônus); (ii) que o prazo prescricional de cinco anos para ações reparatórias deve ser contado somente após a publicação da decisão final do CADE; e (iii) que as decisões do CADE são aptas à concessão da chamada tutela provisória de evidência (CPC, art. 311) e que pode antecipar, no todo ou em parte, o mérito do processo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Isto posto, nos próximos anos, tempos e movimentos das ARDCs perante o Judiciário certamente dirão se o legislador contribuiu decisivamente à maior eficácia de tal instrumento no Brasil. Desde agora, não obstante as inovações legislativas acima, vale manter no radar algumas questões práticas que certamente povoarão as discussões jurídicas sobre o tema nos próximos anos.
A uma, a nova legislação se mostra focada na dissuasão de ilícitos de natureza coordenada (cf. art. 36, §3º, I e II da LDC) com relação aos incentivos econômicos que pretende erigir. Ocorre que o universo de infrações concorrenciais é sabidamente muito mais amplo, a incluir, por exemplo, abusos de posição dominante através de restrições verticais e práticas unilaterais. Desse modo, em que pese a opção legislativa esteja alinhada à dominante “religião do antitruste”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> e ao seu “dogma”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> maior de que o cartel deve ser tradicionalmente entendido como a infração mais nociva ao livre mercado, seria razoável discutir a pertinência da garantia do mesmo direito a pleiteantes que tenham sofrido danos resultantes do abuso unilateral por agente(s) com substancial poder de mercado. Alguns estudos, inclusive, apontam para a importância de tais demandas no cenário da persecução concorrencial privada no Brasil<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, o que é tanto mais verdade em mercados com agentes monopolistas e, por definição, um número reduzido de players.
A duas, o pacote de medidas legais que ora entra em vigor pode despontar alguns percalços práticos no que tange às ações movidas independentemente de decisão prévia do CADE. Regras atinentes ao prazo prescricional podem, na prática, afigurar-se imprecisas ou deslocadas: faz sentido a suspensão do prazo prescricional do direito de reparação de danos por ilícito concorrencial de forma incondicionada para as infrações que o CADE não apura, ou cuja apuração ocorre após décadas de seu encerramento?
A três, considerando que as multas do CADE são aplicadas de forma muito dura no caso de cartéis<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> e que sua – cada vez mais comum – judicialização pode levar, em um segundo momento, a um movimento – cada vez mais incentivado – de transação entre a Administração e o administrado, como ficariam os incentivos econômicos às ARDCs se, em um segundo momento, a decisão do CADE fosse desconstituída, seja a partir do reconhecimento da invalidade do ato administrativo, seja inclusive a partir de transação com a Administração em que a própria existência do ilícito e danos ao mercado fosse colocada em xeque?
A quatro, em relação à inexistência de presunção de repasse do sobrepreço (pass-on theory), cumprirá, como visto, ao réu comprovar que o autor realizou o repasse do sobrepreço de produtos cartelizados que foram adquiridos, perdendo, assim, total ou parcialmente, direito à indenização. Ocorre que tal prova é extremamente complexa e certamente demandará o acesso a documentos específicos do próprio autor. Caso reste estabelecido que tal ônus é incomensurável, o juiz poderá invertê-lo (CPC, 373, §1º) ou ainda garantir acesso a documentos específicos da contraparte. De mais a mais, tal presunção poderá resultar em dificuldades adicionais àqueles que busquem reparação por danos indiretos decorrentes justamente do repassasse do sobrepreço (e.g. consumidores que adquirem um produto elaborado a partir de insumos vendidos com sobrepreço em razão d’um cartel).
Por fim, quanto à maior facilidade na concessão de tutela da evidência, apenas a prática poderá nos demonstrar sua utilidade efetiva nas ARDCs. Em se tratando de tutela provisória concedida após a decisão do CADE, a cessação do ilícito anticompetitivo é um pressuposto. Como tal, o principal remédio a ser requerido deveria ser o pedido de indenização. A quantificação do montante dos danos é, porém, tida como um dos mais intrincados desafios da reparação privada, por vezes exigindo a utilização de diversos métodos econômicos e a elaboração de diferentes cenários contrafactuais<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Ou seja, pode ser o remédio certo para a lide errada.
Em conclusão, se a origem e bons propósitos da nova Lei n.º 14.470/2022 são, de fato, indiscutíveis e merecem a priori aplausos, incerto é, ainda, seu real efeito incremental ao fortalecimento do direito concorrencial Brasileiro como um todo, sendo sintomático que sua promulgação – ao menos até o momento – não despertou no mundo empresarial o rebuliço típico da Lei Malaia nos momentos finais do Estado Novo<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Tal ponto inspira atenção. Se a eficácia não é critério de validade normativa<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, à legitimidade social ela é conditio sine qua non<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. Como diria o conhecido ditado cunhado por Immanuel Kant „Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Questões práticas terão aqui, portanto, um papel relevante, como, por exemplo, (i) a velocidade e acuracidade técnica das partes e dos julgadores na aplicação de direito tão novo à nossa cultura judicial indenizatória; e (ii) o eficiente “encaixe” entre o tempo e qualidade do processo administrativo sancionador no CADE e a busca pela indenização privada em juízo, pois, no mundo real, o passar do tempo costuma ser Senhor-maior da injustiça.
Mais do que recepcionar no nosso ordenamento institutos que incrementam a possibilidade de punição ao particular, parece essencial à boa aplicação antitruste ativar igualmente ferramentas de constante avaliação dos concretos efeitos da mudança legislativa à política pública almejada. Vigiar e punir não basta. Ganhos reais à sociedade demandam tempo e perseverança institucional, com esforços que vão além da tradicional atividade legislativa. Nesse campo, seja pelo Estado, seja pela sociedade civil, boas inspirações igualmente não faltam<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre a construção do sistema Brasileiro de defesa da concorrência, v.
VENANCIO FILHO, Alberto. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico: o direito público econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968, e, mais recentemente, CABRAL, Mário André. A construção do antitruste no Brasil 1930-1964, São Paulo, 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para reflexões sobre o tema da multiplicação da indenização a partir d’uma perspectiva pátria, v. PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Defesa da concorrência e bem-estar do consumidor. Tese de Doutorado, São Paulo, 2010.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ADI 6031, de relatoria da i. Ministra Carmén Lucia Antunes Rocha.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Apenas uma disposição do projeto convertido na Lei n.º 14.470/2022 foi vetada pelo Presidente da República: aquela que determinava que os celebrantes de acordos de leniência e TCC com o CADE deveriam assumir compromissos arbitrais com as partes interessadas em ajuizar suas demandas via tal foro.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> V. ROCKEFELLER, Edwin S. A Religião do Antitruste, São Paulo, 2009.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> V. INGLEZ, Ricardo de Souza. O Dogma do Cartel e a seletividade do direito concorrencial brasileiro, São Paulo, 2022.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Cf. BARBOSA, Leonardo Peixoto. A compatibilização dos enforcements concorrências público e privado: a dimensão pública da persecução privada. Mestrado em Direito, Universidade de São Paulo: São Paulo, 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Na interpretação do art. 37 da LDC, o CADE tem tradicionalmente abraçado patamares iguais ou superiores a 15% do faturamento bruto da empresa no ramo da atividade empresarial em que ocorreu a infração.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> TITO, Fabiana Ferreira de Mello. Ensaios sobre danos de cartel: metodologias de cálculo do sobrepreço, efeito repasse (pass-on) e multa ótima. Doutorado Direto em Teoria Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Conforme narra CABRAL, Mário André “A lei provocou um rebuliço que marcou os momentos finais do Estado Novo. A UDN, por meio do brigadeiro Eduardo Gomes, em discurso proferido em Belo Horizonte em 15 de julho de 1945, asseverou que o decreto “alarmou as corporações econômicas, a generalidade das classes, a totalidade dos indivíduos”. Entidades representativas do comércio, da indústria e da agropecuária tornaram público manifesto contrário a Lei Malaia, como publicou o jornal Folha da Manhã, de São Paulo, em 25 de julho de 1945”, in: Primeiro passo na política antitruste brasileira, Lei Malaia completa 70 anos, https://www.conjur.com.br/2015-dez-12/mario-cabral-primeira-antitruste-lei-malaia-completa-70-anos.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> KELSEN, Hans, Reine Rechtslehre, 2a Ed., 1960, Tübingen.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> SOUSA SANTOS, Boaventura de. Toward a New Legal Common Sense: Law, Globalization, and Emancipation, Routledge, 1995.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> “Pode ser correto em teoria, mas não funciona na prática” (1793). Desenvolvendo a mesma discussão, mas com um olhar mais contemporâneo, cf. JESTAEDT, Mathias. Das mag in der Theorie richtig sein... Vom Nutzen der Rechtstheorie für die Rechtspraxis, Mohr Siebeck, 2006.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> V., por exemplo, recente avaliação sobre a aplicação da Diretiva 2014/104 realizada pela CE em 2020 in <a href="https://ec.europa.eu/competition/antitrust/actionsdamages/report_on_damages_directive_implementation.pdf">https://ec.europa.eu/competition/antitrust/actionsdamages/report_on_damages_directive_implementation.pdf</a>. Há, igualmente, inúmeras iniciativas acadêmicas no mesmo sentido, dentre as quais LABORDE, Jean-François. Cartel damages actions in Europe: How courts have assessed cartel overcharges (2019). Disponível em: <a href="https://www.concurrences.com/en/review/issues/no-3-2021/pratiques/102086">https://www.concurrences.com/en/review/issues/no-3-2021/pratiques/102086</a>.

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JOTA

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