Ricardo Prado Pires de Campos

Ouvi do poeta Ferreira Gullar<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, numa entrevista concedida à imprensa, que somente a civilização, somente a cultura era capaz de vencer o animal que existe no homem. A frase me pôs a pensar e, na ausência de alternativa válida, acabei concordando com o poeta.
Realmente, a natureza humana é essa, animal racional, mas animal. Somos seres violentos, vivemos num mundo violento, e nos acostumamos a usar a violência para muitas finalidades. Usamos métodos brutos para conquistar um território, para conquistarmos bens e até para a conquista da presa e de acasalamentos. Na idade da pedra, era assim.
Ainda hoje, em muitos rincões continua assim.
O que fez o homem se civilizar foi a cultura. O conhecimento do funcionamento das coisas, o funcionamento da natureza, e o conhecimento de si mesmo, fez com que, gradativamente, o ser humano fosse substituindo o uso da violência por outros métodos de solução de conflitos.
No reino da selva quem manda é o leão, o animal mais bravo, mais forte, o carnívoro.
No reino dos homens, não foi diferente. Tivemos centenas ou milhares de reis e imperadores sanguinolentos, que se mantiveram no poder graças à força de suas garras ou de seus exércitos. Ainda hoje, continuamos a presenciar alguns membros dessa espécie (que esperemos estar em fase de extinção).
Conforme o ser humano foi conquistando a terra, submetendo os animais, extinguindo seus inimigos, foi permitindo-se, gradativamente, substituir a violência por métodos pacíficos, ou por métodos onde o uso da violência é controlado.
O Direito surgiu como forma de controle da violência. Com a criação dos Estados, com a concentração do poder nas mãos dos reis, foi preciso instituir uma forma de controle sobre os prepostos. Era preciso garantir que a vontade do rei prevalecesse e não a vontade do feitor da localidade, e aí o Direito ganhou robustez e se expandiu, incorporando-se nas sociedades.
Antes do Direito, as religiões impunham o controle na sociedade. As pessoas eram manipuladas com as ideias de Céu e de Inferno. Na ausência de polícia, era preciso criar um mecanismo que segurasse as pessoas, mesmo quando estavam longe da civilização. Nada como incutir na mente humana o autocontrole. As ideias de Céu, Inferno e pecado são altamente eficientes quando bem incrustadas nas pessoas.
A dificuldade é que para doutrinar as pessoas é preciso ter acesso a elas, é preciso poder discursar para elas, é preciso convencê-las. Bem, nem todo mundo se deixa convencer. Não, facilmente.
As religiões repetem seus discursos há séculos, algumas há milênios, mas nem todos são convertidos.
O Direito não exige conversão, basta estar no território do Estado que está sujeito a suas leis, mas tem um inconveniente, precisa de funcionários que façam executar as leis: policiais, delegados, fiscais, promotores, juízes. O rol é enorme, o trabalho é diário e incessante.
Todo esse esforço de catequização ou de imposição das leis visa a permitir que tenhamos uma sociedade mais pacífica, que não se destrua, que não se mate em guerras intermináveis e em contendas sem fim.
As notícias diárias estão aí para não nos deixar esquecer de quanto essa luta é inglória, mas, também, do quanto é necessária.
Para viver em paz, é preciso lutar. Os <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/porte-de-arma-para-procuradores-de-estado-stf-08032022">defensores das armas</a> dizem que só haverá paz quando todos estiverem armados. O problema é que parte dos armados fazem uso de suas armas, e matam outras pessoas.
E nessa guerra armada, como ficam as crianças? Terão armas também? A partir de qual idade deverão ou poderão ser treinadas? Desde o momento que conseguirem sustentar o peso do revólver ou do fuzil?
É óbvio que sempre teremos pessoas sem condições de lutar, no sentido de lutar de arma em punho: crianças, bebês, enfermos, idosos, pessoas com incapacidade mental ou física para o combate. Essa circunstância nos levou a terceirizar o combate a violência para um determinado grupo de pessoas: constituímos as polícias e as forças armadas. E para tentar controlá-los, porque a força sempre leva a possibilidade de abuso, criamos as corregedorias, os oficiais, os delegados, os juízes, os generais.
Esses mecanismos funcionam na vida pública, com todas as virtudes e os defeitos que conhecemos.
E na vida privada?
Dentro de casa, quem controla os pais? Até pouco tempo, era quem controlava o pai, agora, infelizmente, isso passa a atingir também a mãe, embora em menor número.
O homem, na vida pública, sempre fez do recurso ao uso da violência uma forma de ação. Aos poucos, o Estado e o Direito foram reduzindo o espaço desse uso. A mulher já faz muito tempo que descobriu outras formas mais sutis de solução de conflitos, por vezes, até induzindo o comportamento violento de outrem, mas ela própria, usualmente, não empunhava uma arma, não desferia o golpe fatal, usava outrem para fazê-lo.
Numa residência dessas, como vivem as crianças? Quem as protege? E principalmente, quem as protege da ira paterna ou materna?
Quando a agressão vem do vizinho, do colega de escola ou de outrem, a criança pode contar com seus pais, mas quando a agressão vem destes, contar com quem?
Ultimamente, os professores estão sendo preparados para diagnosticar essa triste realidade de uma sociedade ainda inculta e incivilizada, que agride, maltrata, abusa, violenta e mata suas próprias crianças.
Quando surgiu o caso de Isabella Nardoni, o choque público foi enorme. As pessoas não acreditavam que o próprio pai pudesse matar sua filha, uma criança de cinco anos de idade jogada da janela de um edifício. As provas mostraram que não apenas era possível, mas essa era a triste realidade.
Agora, com o assassinato de Henry Borel, de quatro anos de idade, criança que foi reiteradamente torturada pelo padrasto com a complacência da mãe, chegamos a triste constatação de que sequer o vínculo da maternidade é capaz de obstar tamanha brutalidade.
Os seres humanos são animais que só a civilização consegue pacificar. Somente a cultura, somente o autocontrole, somente uma consciência crítica que possua valores elevados pode abrir mão de seu próprio poder: o poder de matar ou de agredir a outrem.
Somente os pais que se recusam a levantar a mão contra seus filhos podem fazer cessar a violência contra as crianças.
A grande maioria dos abusos sexuais não vem de pessoas de fora da casa, mas da própria família. Muitas pessoas não sabem lidar com sua própria sexualidade, aliás, não se nasce sabendo, é preciso aprender, é preciso falar sobre, é preciso educar, é preciso civilizar também a sexualidade. Ainda temos muito a evoluir nesse ponto, pois há dezenas de ideias erradas nesse tema que se perpetuaram ao longo dos séculos e que a ciência e a escola terão longo caminho para desconstituir, enfrentando a ira dos genitores.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13010.htm">Lei 13.010</a>, de 26 de junho de 2014, ficou conhecida como a Lei do Menino Bernardo, porque surgiu em atenção a mais uma vítima da violência familiar contra as crianças. O menino Bernardo Boldrini, então com 11 anos de idade, também foi assassinado pelas pessoas que deveriam protegê-lo.
A lei passou a proibir toda e qualquer forma de agressão contra a criança, inclusive a “palmada para fins de correção”. Palmada nunca corrigiu ninguém, apenas permite que os pais exaltados com a afronta ao seu poder, possam destilar sua ira contra a criança rebelde.
A rebeldia é essencial na vida. Todos nós temos nossos momentos, e precisamos ter. Quem nunca se rebela, vira dócil demais. Cordeiro em terra de lobos não tem vida longa. Os pais precisam compreender os momentos de rebeldia das crianças e da juventude. Eles são passíveis de solução com boa conversa, mas isso exige que os pais sejam educadores, o que pressupõe cultura e educação; nem sempre presentes.
O Direito, independente de sua força coercitiva, possui um valor cultural enorme quando define rumos, prioriza valores, estabelece a direção de uma sociedade e determina limites para seus membros. Fixar a linha determinante entre o permitido e o proibido é uma das tarefas do Direito.
Quando a lei diz taxativamente que não pode bater, que não pode agredir, que não pode ameaçar, nem humilhar, a lei estabelece limites claros<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> para a postura dos pais e educadores, e, assim, permite a prevenção de inúmeras violências que podem deixar de existir quando as pessoas forem cultas, entenderem a finalidade da lei e se autolimitarem visando a coibir a ira humana que encontra terreno tão fértil para se propagar quando vê uma vítima indefesa.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> JOSÉ RIBAMAR FERREIRA (nascido em São Luiz, MA, em 1930, e falecido no Rio de Janeiro em 2016)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art.18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão;
II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente; ou c) ridicularize.”
(Lei 8.069 de 1990 - Estatuto de Criança e do Adolescente, na redação da Lei 13.010 de 2014).

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JOTA

Fixar a linha determinante entre o permitido e o proibido é uma das tarefas do Direito

Crianças indefesas

Quando a lei diz taxativamente que não pode bater, ameaçar ou humilhar crianças, estabelece limites para a postura dos pais e educadores