Kleber Zanchim

Marlos Augusto Melek

Os Distressed deals, ou negócios envolvendo ativos estressados, são bastante recorrentes em jurisdições estrangeiras, mas, no Brasil, ainda não ocorrem com a frequência desejada. Um dos passivos mais amedrontadores aos investidores é o trabalhista, particularmente nas negociações extrajudiciais, as quais precisam ser impulsionadas para o bem da economia brasileira. O presente artigo evidencia como organizar tal passivo na Recuperação Extrajudicial - RE.
A opinião corrente é de não ser possível utilizar, para os trabalhistas, a modalidade de RE prevista no artigo 163 da Lei n° 11.101/2005, em que se estendem aos não anuentes, compulsoriamente, os efeitos do plano de recuperação firmado por 60% dos credores de cada espécie. A resistência decorre do artigo 161, §1°, da citada lei, que sinaliza, em exegese gramatical, a inaplicabilidade do capítulo da RE aos créditos derivados da legislação do trabalho.
Ocorre que o direito laboral mudou bastante desde a edição da Lei n° 11.101/2005. Ao tempo desta, a autonomia privada do empregado ainda era bastante restrita e a dimensão negocial de suas avenças não era facilmente admitida pelos Tribunais. Sequer havia possibilidade de rescisão consensual do contrato de trabalho, o que deve ter influenciado o legislador na decisão de evitar a vinculação compulsória dos créditos trabalhistas ao plano de RE. Afinal, a RE nada mais é que um negócio jurídico entre a empresa recuperanda e seus credores, pressupondo a possibilidade de estes transigirem sobre seus créditos.
O princípio da irrenunciabilidade de direitos, que informa o Direito do Trabalho como bem explorado por Francesco Santoro-passarelli, propugna não poder o trabalhador, em regra, dispor de direitos na vigência do contrato de emprego, tendo em vista seu estado de subordinação no vínculo empregatício. Entretanto, ausente ou mitigada tal subordinação, pode o obreiro transigir com base em seus legítimos interesses.
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Com a reforma introduzida na CLT pela Lei n° 13.467/2017, a hermenêutica merece nova configuração. O chamado “negociado prestigiado sobre o legislado” ganhou contornos de princípio na relação de emprego, na linha de que a autonomia privada do empregado deve ser valorizada com maior grau de liberdade contratual e menor interferência estatal. Esse princípio permeia várias das regras trazidas na reforma, sendo uma delas particularmente importante para a RE: o novo artigo 484-A. Segundo esta norma, o contrato de trabalho pode ser extinto por acordo entre empregador e empregado, sendo devidas as seguintes verbas: (i) por metade, o aviso prévio indenizado e a indenização do saldo do FGTS, e (ii) na integralidade, as demais. Não há dúvidas, pois, sobre a viabilidade de o empregado transigir sobre o término de seu vínculo laboral.
Se até regras constitucionais podem ser relativizadas perante determinados casos concretos, quanto mais os artigos da Lei 11.101/2005 sobre as relações de trabalho, que devem ser interpretados de modo sistêmico com a nova CLT. É certo que a vontade da coletividade representa a solução democrática, com respaldo no texto celetista desde 1943, cujo artigo 8° dispõe que “nenhum interesse de classe ou particular prevalecerá sobre o interesse público”.
Nesse sentido, nada impede credores trabalhistas de firmarem um plano de RE a disciplinar a quitação de eventuais rescisões com vistas ao interesse público da preservação da empresa. O artigo 484-A não traz regramento quanto ao prazo pagamento. Dada a máxima de que onde o legislador não ressalvou, não cabe ao intérprete fazê-lo, estão autorizados parcelamentos aderentes à situação econômico-financeira da recuperanda. Logo, deve-se considerar que existe, hoje, abertura para o empregado integrar a RE, afastando-se a limitação do artigo 161, §1°, da Lei n° 11.101/2005.
Vale lembrar, ainda, que a reforma trabalhista trouxe a figura do chamado empregado hipersuficiente, que recebe o dobro do teto do benefício do RGPS e possui curso superior. Ele goza de licença legal para negociar diretamente com seu empregador, podendo inclusive dispensar a proteção sindical, prevalecendo sua vontade até sobre instrumentos coletivos, desde que não haja violação à Constituição Federal. Assim, plenamente factível que, a partir da Lei 13.467/2017, consiga-se, por exegese teleológica, axiológica, histórica e, principalmente, orgânica, superar a barreira da inclusão dos créditos trabalhistas na RE.
Resta a questão sobre a possibilidade de extensão dos efeitos do plano aos credores trabalhistas não aderentes. A solução passa pelo sindicato, a quem cabe, nos termos do artigo 8°, III, da Constituição Federal, a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria. Isso vale também para o trabalhador não sindicalizado, já que a entidade sindical representa a todos, indistintamente. A jurisprudência trabalhista admite a representação extraordinária do sindicato mesmo quando este atuar na proteção de direitos individuais homogêneos.
Se, por exemplo, a recuperanda já tiver obtido anuência de 60% dos seus empregados, pode levar o plano de RE para homologação judicial e requerer ao magistrado que intime o sindicato a se manifestar, a fim de assegurar a representação dos 40% não aderentes. Se for o caso, a entidade sindical poderá apresentar as objeções à homologação do plano enumeradas no artigo 164, §3°, da Lei n° 11.101/2005, quais sejam (i) não preenchimento do percentual mínimo de adesão dos empregados (60%), (ii) utilização do plano para prática de atos fraudulentos ou (iii) descumprimento de qualquer outra exigência legal.
A participação do sindicato produz uma espécie de acordo coletivo adjeto ao plano de RE, sendo o seu reconhecimento pelo Poder Judiciário um direito dos trabalhadores (artigo 7°, XXVI, da Constituição Federal). Ora, se 60% dos empregados firmaram o negócio jurídico recuperacional com a empresa, a entidade sindical não tem razões de mérito para se opor, sobrando-lhe somente as questões formais relativas ao pactuado.
A vontade majoritária dos empregados deve orientar a atuação do sindicato, com amparo no mandamento do artigo 8° da CLT de que nenhum interesse particular ou de classe deve prevalecer sobre o interesse público – no caso, a preservação da empresa. Portanto, cabe à entidade sindical apenas prestar assistência no sentido de instruir o processo de homologação da RE na hipótese de haver algum ato ilegal em desfavor dos empregados.
Acrescente-se que o artigo 8°, §3°, da CLT, também incluído na última reforma, consagra o princípio da autonomia da vontade coletiva. Se esta é formada, quantitativamente, pelo quórum legal da RE e, qualitativamente, pela participação da entidade sindical na verificação da legalidade do plano, o juiz poderá homologar o acordo atribuindo-lhe eficácia mais extensa para abranger os não aderentes, que estarão devidamente representados pelo sindicato no processo.
O fundamento da homologação está no próprio artigo 163, §1°, da Lei n° 11.101/2005, quando estabelece que o plano obriga a todos os credores de um grupo de mesma natureza e sujeito a semelhantes condições de pagamento, caso dos credores trabalhistas.
O Projeto de Lei n° 10.220/2018, orientado a modernizar o sistema de insolvência no Brasil, parece estar alinhado ao entendimento ora apresentado ao remover a já mencionada restrição do artigo 161, §1°, ao mesmo tempo em que inclui nele um §9° dando aos créditos trabalhistas o mesmo tratamento da recuperação judicial, conforme disciplinado no plano de RE.
<blockquote class="jota-article__eye">Em resumo, diante do princípio do “negociado prestigiado sobre o legislado” e da atual autorização legal para rescisão consensual do contrato de trabalho, a restrição da aplicação da RE aos credores trabalhistas não se justifica ontologicamente.</blockquote>
Da mesma forma, em havendo intimação do sindicato para se manifestar a respeito da homologação do plano nos termos do artigo 164, §3°, da Lei n° 11.101/2005, os empregados dissidentes estarão adequadamente representados, formando-se um acordo coletivo adjeto à RE que, pelo princípio da autonomia da vontade coletiva, permite ao magistrado tornar o plano vinculante a todos os trabalhadores.
Explorados esses caminhos, ficam atendidos os desígnios da lei falimentar de conservar, sempre que possível, a fonte produtora, eleita pelo legislador como um bem social supranormativo a impor exegese sistêmica do texto legal.
Nesse cenário, distressed deals celebrados a partir de RE estarão, do ponto de vista da legislação do trabalho, suficientemente resguardados porque (i) os empregados terão exercido tanto a autonomia individual como a coletiva no tocante ao plano e (ii) terá havido controle judicial sobre a legalidade do acordo, tornando sem lastro eventual questionamento relativo à situação dos créditos trabalhistas, pois a presença do sindicato elimina a hipossuficiência no âmbito jurídico.

trabalho verde e amarelo

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JOTA

Se até regras constitucionais podem ser relativizadas, quanto mais os artigos da Lei 11.101/2005 sobre as relações de trabalho

Créditos trabalhistas na recuperação extrajudicial e distressed deals

Se até regras constitucionais podem ser relativizadas, quanto mais os artigos da Lei 11.101/2005 sobre as relações de trabalho