Dando seguimento à segunda fase do projeto Observatório do TIT-SP, em que são analisadas decisões recentes da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), o objetivo deste texto é avaliar o tema central do acórdão resultante do julgamento do recurso especial interposto nos autos do processo DRT 15 4.117.801-4, publicado em 3 de dezembro de 2021, de relatoria do Juiz Ítalo Simonato.
Segundo o relato da decisão, trata-se de acusação de creditamento indevido de ICMS relativo à aquisição de material qualificado pelas autoridades ficais como de “uso e consumo do estabelecimento”, correspondente a pneus utilizados pelo contribuinte na prestação de serviço de transporte.
A autuação havia sido mantida no julgamento em primeira instância e parcialmente cancelada no julgamento da 10ª Câmara, em decisão da lavra do juiz Raphael Zulli, justamente no ponto que será analisado neste artigo – créditos de pneus. O AIIM comportava outros itens, que não chegaram a ser analisados pela Câmara Superior, eis que o recurso fazendário somente atacou o ponto desfavorável ao estado na decisão da 10ª Câmara.
Segundo a decisão em análise, não haveria dúvidas de que os pneus “são empregados na atividade de prestação de serviço de transporte rodoviário e, por óbvio, são consumidos/desgastados na prestação do serviço, cujo desgaste é diretamente proporcional ao volume de serviço de transporte prestado pela recorrida. Entretanto, o indiscutível desgaste sofrido pelos pneus não se dá imediatamente — ou, aos menos ortodoxos, em curtíssimo espaço de tempo —, tendo durabilidade variável, mas certamente perdurando por, no mínimo, dezenas de milhares de quilômetros rodados. Tal desgaste — não imediato, mas gradual, reforce-se — contraria a jurisprudência prevalecente desta Câmara Superior, no sentido de que o direito ao crédito de materiais condiciona-se ao seu consumo integral e imediato”.
Na opinião do autor, o simples fato de serem “empregados na atividade de prestação de serviço de transporte” já seria suficiente para permitir o creditamento, sempre que o serviço seja tributado ou, acaso não o seja, haja previsão de manutenção dos créditos correspondentes. Esse era o meu entendimento nos tempos em que tive a honra de pertencer aos quadros do E. Tribunal e continua sendo o atual. Entretanto, o objetivo desse artigo não é o de contrapor o acórdão nesse ponto, mas focar em outro aspecto da bem fundamentada decisão em análise: a premissa de que a permissão para o crédito de ICMS sobre a aquisição de pneus, sendo o seu desgaste não imediato, “contraria a jurisprudência prevalecente desta Câmara Superior”.
De fato, o tema não é inédito na Câmara Superior e as decisões anteriores são, realmente, contrárias aos contribuintes. Conforme pesquisa com os termos “ICMS crédito pneus transporte” na página eletrônica do tribunal, existem quatro decisões em recursos especiais sobre o tema, das quais em três houve conhecimento do recurso e julgamento de mérito no ponto objeto deste texto. Além da decisão em comento, foram proferidas mais duas decisões: AIIM 2133666-0, publicada em 5 de fevereiro de 2015, e AIIM 4056201-3, publicada em 13 de dezembro de 2017.
A primeira decisão (AIIM 2133666-0), de relatoria do Juiz Celso Barbosa Julian, foi unânime ao negar o direito ao crédito. Ao entender que “os pneus utilizados pela recorrida para reposição em sua frota de caminhões não se consomem imediatamente durante a prestação do serviço de transporte”, a decisão foi a de que não haveria a possibilidade de creditamento, tendo citado tanto o paradigma levado pelo recurso especial fazendário (DRT-15-682185-2010) quanto a decisão das Câmaras Reunidas no processo DRT-06-714150-05 como fundamentos.
Ocorre que as duas decisões citadas na decisão do AIIM 2133666-0 não enfrentam diretamente a matéria.
No caso da primeira (DRT-15-682185-2010), a construção da fundamentação para a negativa ao crédito sobre os pneus se inicia com a afirmação de que “o contribuinte somente tem como compensar o imposto cobrado nas operações anteriores, se houver uma etapa posterior de comercialização de mercadorias sujeitas ao ICMS, por isto que não se admite o credito de material de uso e consumo”. Prossegue a decisão pontuando que “corrobora esse pensamento o texto da Decisão Normativa mencionada pela Representação Fiscal, CAT-01/2001, pois, para fazer jus ao crédito, deverá o contribuinte demonstrar que o consumo se deu nas atividades da empresa alcançadas pelo tributo estadual.”
A decisão segue com a afirmação de que “a matéria já foi submetida ao crivo do Poder Judiciário, considerando-se constitucionais as restrições trazidas pela LC-102/00, que disciplina o regime de compensação do imposto estadual”, e que “em síntese, os argumentos da Recorrente são pela defesa da tese do crédito financeiro, em oposição ao crédito físico do ICMS. Este dissenso de opiniões é antigo e também já foi submetido à apreciação do STF”, finalizando com a citação da ementa do julgamento do RE 447470 AgR / PR.
Como adiantado, a fundamentação adotada, com a máxima vênia, não enfrenta diretamente a questão dos créditos dos pneus. Isso porque, primeiramente, a DN CAT 1/2001 apenas trata de créditos de combustíveis ao tratar da possibilidade de créditos no contexto de serviços de transporte e faz considerações genéricas sobre bens de uso e consumo, sendo que nada é dito, nesse particular, quanto aos pneus ou mesmo à necessidade de desgaste/consumo imediato para que possa haver o creditamento. Além disso, ao fazer digressões sobre a impossibilidade de aproveitamento de créditos financeiros, a decisão não pontua exatamente como seria a aplicação desse critério no contexto de uma atividade de prestação de serviços, totalmente distinta das atividades de industrialização e comercialização, e usa como paradigma uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que trata de empresa fabricante de bebidas (ou seja, não guarda qualquer relação com os serviços de transporte de cargas).
Já a segunda decisão citada (DRT-06-714150-05) tratou de caso de pneus e câmaras de ar utilizados em frota própria para entrega dos produtos comercializados aos seus clientes, em julgamento de caso de outra empresa fabricante de bebidas, o que também é matéria totalmente distinta e não deveria ter sido adotada automaticamente como fundamento do julgado.
Por sua vez, a segunda decisão da Câmara Superior sobre o tema, relatada pelo juiz Gianpaulo Camilo Dringoli, vai na mesma linha, ao entender que “por se tratar de peça ou parte do ativo imobilizado, não há como admitir o crédito relativo aos pneus adquiridos, ainda que sejam utilizados na prestação do serviço”, bem como que “essa matéria é antiga, e a jurisprudência desta Corte tem sido consistente no sentido de que a substituição de peças ou partes relativas a ativo imobilizado não permite o aproveitamento do crédito do imposto destacado na nota fiscal de aquisição”. Além disso, a referida decisão, ao contrapor as teses que defendem “crédito financeiro” e “crédito físico” para fins de creditamento do ICMS, aponta se filiar à segunda corrente, pois essa teria sido a adotada pela Lei Complementar (LC) 87/96 e pelo STF no julgamento do RE 195.894-0/RS.
Com relação aos pontos dessa decisão, primeiramente há que se ponderar se os pneus, realmente, poderiam ser classificados como “partes ou peças de ativo imobilizado”, por se tratar de produtos consumíveis (tanto quanto combustíveis, óleos lubrificantes etc.). Por essa razão, parece ser inaplicável, aos pneus, o mesmo raciocínio utilizado nos julgamentos do TIT-SP que tratam de partes e peças de ativo imobilizado, além do fato de — novamente — ser questionável sua aplicação à atividade de serviços de transporte sem as necessárias razões para essa aplicação.
Ademais, a decisão do STF citada (RE 195.894-0/RS) é de caso concreto referente a uma indústria fabricante de tintas e solventes, que tem como matéria fatos geradores ocorridos antes da publicação da LC 87/96, foi proferido pela Segunda Turma (não pelo Pleno) e não conheceu do recurso extraordinário interposto (ou seja, não houve julgamento de mérito). Logo, essa decisão é totalmente inadequada para servir de parâmetro à solução de um caso concreto de créditos de pneus na atividade de transporte já na vigência da LC 87/96, sobretudo quando não são apontadas, de maneira clara e direta, as razões pelas quais as diferenças nas circunstâncias concretas de cada caso podem ser superadas.
Nesse julgamento, seis votos foram desfavoráveis à posição prevalecente, conforme o voto condutor do juiz Carlos Americo Domeneghetti Badia, que sustenta que “a matéria foi inicialmente disciplinada pelo Convênio ICMS 66/88, que com força de lei complementar adotou postura restritiva, asseverando (artigo 31, inciso III), que não ensejaria direito a crédito ICMS decorrente da ‘entrada de mercadorias ou produtos que, utilizados no processo industrial, não sejam nele consumidos ou não integrem o produto final na condição de elemento indispensável a sua composição’”.
Prossegue o voto aduzindo que “a partir deste contexto normativo a jurisprudência fixou premissa na linha de que somente as mercadorias ou produtos — ou, por outras palavras, insumos — que atendessem tais premissas (consumo ou integração no produto final) é que ensejariam creditamento. Mas o Convênio ICMS 66/88 foi revogado e a Lei Complementar nº 87/96 ampliou a possibilidade de tomada de créditos (artigo 20, parágrafo 1º), fazendo referência tão somente à necessidade de vinculação dos insumos à atividade própria do contribuinte, abolindo a necessidade de sua integração ao produto final”.
Além disso, o voto aponta que essa inovação legislativa já foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), tendo citado a ementa do Recurso Especial nº 1175166/MG, para concluir que “a evolução era necessária e teve sua razão de ser, pois a anterior premissa de que cuidou o Convênio ICMS nº 66, de necessidade de consumo ou integração ao produto final, decorria de conceito ultrapassado e que fazia sentido apenas quando aplicado às atividades comerciais/industriais puras e descabido diante do novo ICMS, que a partir da CF de 1988 passou a incidir também sobre prestação de certos serviços”.
A mesma linha argumentativa foi adotada pelo voto vista do juiz Edison Aurélio Corazza no julgamento mais recente do AIIM 4.117.801-4 (objeto central deste texto), que foi concluído pelo mesmo placar de 10 a 6 a favor do estado.
Por tudo isso, além de não contar com uma unanimidade nos dois julgamentos de mérito mais recentes, embora seja certo que a Câmara Superior adote a linha de que são indevidos os créditos de ICMS sobre as aquisições de pneus, aparentemente os fundamentos adotados nas decisões anteriores às do processo DRT 15 4.117.801-4 não enfrentam diretamente a matéria, ao apontar precedentes distantes da situação concreta, sobretudo pela transposição automática de decisões aplicadas a contribuintes industriais a casos de prestadores de serviços sem justificar essa transposição entre situações tão díspares.
E mesmo a decisão objeto central desse artigo (4.117.801-4), embora adote seus próprios fundamentos, cita precedentes aplicáveis a outras atividades para justificar a exigência de “consumo imediato” para que os pneus sejam creditáveis. E o faz de forma absolutamente consciente, ao apontar que “embora a jurisprudência verse, via de regra, sobre os materiais utilizados em processos produtivos, penso que mesmo entendimento aplica-se aos materiais empregados na atividade de prestação de serviços. Nesse sentido, o excerto da decisão paradigma (DRT-15-294988-02), dispondo que ‘os pneus utilizados pela recorrida para reposição em sua frota de caminhões não se consomem imediatamente durante a prestação do serviço de transporte, o que lhe retira a possibilidade de creditamento’ (fls. 467)”.
Desse apanhado de precedentes, restam algumas dúvidas quanto à posição do tribunal quanto ao caso concreto: como aplicar a dicotomia “crédito físico X crédito financeiro” se a prestação de serviços é algo imaterial, ou seja, se não ocorre a saída física ou a entrega de algo tangível ao consumidor/contratante? A não cumulatividade a ser considerada na prestação de serviços não deveria ser interpretada por uma ótica diferente daquela pensada na saída de mercadorias?
Nessa linha, faz sentido exigir “consumo integral e imediato” para que o crédito seja possível, mesmo sabendo que essa postura praticamente esvazia as possibilidades de creditamento na atividade das transportadoras e, assim, ameaça a própria não cumulatividade do ICMS?